Sociedade

Como os trabalhadores conquistaram o final de semana

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TAJ ALI – Na Batalha de George Square, em 31 de janeiro de 1919, milhares de trabalhadores em greve entraram em confronto com a polícia em um confronto sangrento sobre as demandas por uma semana de 40 horas.

O final de semana não nos foi dado de bandeja pela classe dominante – foi disputado com unhas e dentes pela classe trabalhadora.

Quem de nós estranha a expressão “Graças a deus, finalmente é sexta!”, após uma daquelas semanas complicadas? De modo geral, nosso tempo está regulado pelos cinco dias úteis de trabalho. E os fins de semana como a oportunidade para descansar, para atividades de lazer e diversão, assim como de maior tempo para a família e amigos.
Nunca nos foi dado a conhecer nada muito além deste padrão.

Entretanto, o final de semana é um fenômeno relativamente moderno — e não nos foi entregue de bandeja! O final de semana, bem como outros direitos que temos hoje, é resultado de duros combates, a ferro e fogo, da classe trabalhadora. Passaram-se muitos anos, décadas, de luta por dezenas de milhares de trabalhadores, antes que o fim-de-semana, como nomeamos sábado e domingo hoje, pudesse existir.

Na Grã-Bretanha pré-industrial, o trabalho era determinado pelas estações do ano e pelas horas da luz natural. Além disso, os sistemas de trabalho ainda não se haviam estabelecido, ainda não existiam relógios de ponto nas fábricas, nem o controle de cada momento do dia de trabalho, como hoje acontece — seja nos escritórios ou na Amazon. De várias formas, os trabalhadores de então detinham  mais controle sobre suas próprias vidas do que agora.

Logo sobreveio a consolidação do capitalismo industrial, acompanhado das formas coletivas de emprego, da padronização dos salários, e da crescente delimitação entre trabalho e (limitado) lazer. Não era nada raro para os trabalhadores fabris trabalharem por dezesseis horas em ambientes sujos e perigosos, mais exauridos pelo sufocante calor de fábricas projetadas sem janelas ou ventilação.

Para a maioria dos trabalhadores, não havia alternativa — eles eram obrigados a cumprir uma extensa e extenuante jornada, para sobreviver. Mas o equilíbrio entre tão degradante trabalho e a mitigação que o tempo de lazer proporciona, estava prestes a ser contestado.

Segunda-feira santa

Antes do estabelecimento da semana de cinco dias úteis, as segundas-feiras constituiam o ponto alto da semana para muitos trabalhadores britânicos. No início do século XVII, a tradição de absenteísmo dos artesãos especializados nas segundas-feiras tornou-se conhecida como a “Segunda-feira Santa”. Estes trabalhadores trabalhavam por inúmeras horas, de terça a sábado, e consideravam que um único dia de descanso, iniciado no sábado até o fim do domingo, era insuficiente.

O boticário e escritor John Houghton descreveu o começo deste hábito em 1861:

“Quando nas malharias, ou na fabricação de meias de seda, tecelões e tecelãs ganhavam bom pagamento pelo trabalho, era raro ver essa categoria trabalhando nas segundas e terças-feiras, mas passar a maior parte do tempo na cervejaria ou na jogatina. Entre os trabalhadores da tecelagem, o comum é beber na segunda-feira, lidar com suas dores de cabeça na terça-feira, e na quarta-feira… ter suas ferramentas quebradas”.

Os trabalhadores de várias indústrias, como as de tecelagem e de minério, eram pagos no sábado, e então tinham uma sobra de dinheiro para gastar na segunda-feira. As “Segundas Santas” eram combatidas ferozmente pelos donos das fábricas e expressivamente pelo Clero que associava tal conduta ao alcoolismo e degradação moral — no entanto, seu controle tornou-se cada vez mais difícil por parte das autoridades. Originada como hábito de um grupo de trabalhadores pouco mais especializados, a Segunda Sagrada, nos meados do século XIX, difundiu-se nas fábricas e usinas, e afirmou-se como uma instituição popular na sociedade britânica.

Para muitos, as segundas-feiras eram uma chance para recuperar-se da ressaca de uma bebedeira na noite anterior; para outros, era só outro dia.

Intrinsecamente decorrente da “Segunda Santa” foi o crescimento de uma cultura de lazer comercial, com eventos musicais e teatros apresentando encenações neste dia. Para aqueles mais sóbrios, havia a opção de passar o dia visitando o jardim botânico ou assistindo a uma partida de críquete. ‘The Jovial Cutler’, uma tradicional canção de Sheffield, do século XVIII, retrata o espírito desse tempo

Brother workmen, cease your labour,
Suspenda a labuta, irmão trabalhador

Lay your files and hammers by
Largue de lado a lima e o martelo,

Listen while a brother neighbour
Ouça o cantar do irmão companheiro

Sings a cutler’s destiny:
Que conta a saga do cuteleiro:

How upon a good Saint Monday,
De como a Santa Segunda-feira,

Sitting by the smithy fire,
Habituados na forja e ao calor da fogueira,

We tell what’s been done o’t Sunday,
Fez nosso domingo alongar

And in cheerful mirth conspire
E mais alegrias inspirar.

A “Early Closing Association” 

Com as “Segundas Santas” associadas a bebedeira e jogos “profanos”, as instituições religiosas, visando reduzir tal expansão, defendem a redução das horas de trabalho no sábado, o que poderia incentivar maior frequência nos domingos à Igreja. Donos das indústrias e demais empregadores, acompanharam essa medida na esperança de confrontar a tradição do absenteísmo dos trabalhadores nas segundas, e aumentar a produtividade.

Em 1842, para esta campanha, foi criada a Early Closing Association (Associação pela Antecipação do Fechamento), um grupo formalmente composto pelos trabalhadores do comércio — desejosos da redução de sua jornada aos sábados — em todo território nacional.

A Associação teve o apoio e liderança dos notáveis reformadores sociais Samuel Carter Hall e George Passmore Edwards. Este grupo tinha filiais em todo o país e pressionou o Governo, com a pretensão de assegurar as tardes livres no sábado, em troca de um dia inteiro de trabalho na segunda. O meio-período de trabalho aos sábados para os trabalhadores da indústria e fábricas só se tornou realidade 25 anos depois, através da lei do Factory Act de 1867.

Já em 1886, o parlamentar e fundador da Irish Home Rule League (Liga Irlandesa pela Autonomia Local) Myles William Patrick O’Reilly, discorreu no Parlamento sobre os méritos do fechamento antecipado e conclamou que este meio-dia livre fosse estendido a todos os funcionários públicos. Isso beneficia, disse ele, uma série de trabalhadores, inclusive os das ferrovias e do serviço postal, já que os próprios empregadores elogiam seus benefícios, em termos do ganho de produtividade e da moral da força de trabalho. Suas palavras foram veementemente contestadas pelo Secretário do Interior, Hugh Childers, ao responder que os funcionários públicos não estavam sobrecarregados, e que encerrar o expediente na metade do dia no sábado ameaçaria interesses do governo.

Mas Childers não poderia impedir o que já era uma demanda com crescente adesão pública. Trabalhadores de diferentes indústrias encontraram maneiras de solucionar seus próprios casos: trabalhadores de lojas, por exemplo, que frequentemente trabalhavam até mais tarde, apelaram à população para fazer compras no início do dia. Algumas empresas chegaram a concordar em reduzir a jornada de trabalho apenas durante a semana, mas a grande maioria acabaria por concordar que fechar mais cedo aos sábados era a melhor solução. Após décadas de campanhas e lutas dos comerciários, o Act Shop (Lei das Lojas), em 1911, foi aprovado, autorizando a metade de um dia por semana (além do domingo) como folga, para os funcionários das lojas.

Uma vez que o direito tinha sido concedido a determinados trabalhadores, era impossível deter sua propagação, não só regulando o tempo de jornada de outras categorias profissionais, como também seus desdobramentos no denominado tempo do lazer.

A introdução da saída às 15h no sábado, a que nos habituamos, não é coincidência: este novo padrão de trabalho vinha configurar e promover o progresso do futebol como o entretenimento favorito nos anos 1890, com a maioria das fábricas a fechar às 13h ou 14h. As principais ofertas de lazer foram transferidas de segunda-feira para sábado à tarde, consagrando a meia jornada, pré-dominical, como norma.

O final de semana da modernidade

No início do século XX, as centrais sindicais levaram a luta mais além, empenhando-se em assegurar um fim de semana de 2 dias completos, na fórmula de 1 semana com 40 horas trabalhadas semanais, e o compromisso de 8 horas de trabalho diário. Esta demanda ensejou muitas disputas industriais.

Como exemplo, há o ocorrido em janeiro de 1919, em Glasgow, quando milhares de ex-soldados britânicos, voltando da Primeira Guerra — são, salvos, e desempregados — disputam um mercado de trabalho quando simplesmente não havia postos de trabalho suficientes para todos. A cidade de Glasgow naquela época destacava-se como um polo de mão de obra qualificada.

A STUC, Scottish Trade Union Congress (Congresso de Uniões Sindicais Escocesas) e o Glasgow Trades and Labor Council (Conselho Sindical e Trabalhista de Glasgow) reuniram-se, e propuseram reduzir a jornada semanal nas indústrias, de 54 para 40 horas, o que permitiria que o emprego pudesse ser distribuído mais justamente. Porém, a resistência a essa proposta, por parte dos donos das indústrias, levou a uma greve de 40 horas, talvez o mais notável confronto local, em Clyde.

40.000 trabalhadores das indústrias de engenharia e construção naval de Clyde  participaram. Eles conseguiram a adesão  dos trabalhadores das centrais elétricas locais (de Port Pundas e Pinkston), que cortaram o abastecimento de energia para Glasgow. Milhares de mineiros, dos poços nas vizinhas Lanarkshire e Stirlingshire, logo seguiram seus passos. No espaço  de poucos dias, uma explosiva greve geral  estava acontecendo em Glasgow, com piquetes relâmpagos, liderados pelos ex-combatentes da Grande Guerra, “disparados” por toda a cidade.

Estima-se que aproximadamente 100.000 pessoas estiveram presentes durante a manifestação no dia 31 de janeiro de 1919, pela jornada semanal de 40 horas — a infame Batalha de George Square. Ela tornou-se conhecida como “Sexta Feira Sangrenta”, devido à resposta brutal do governo, que enviou tropas e tanques para dissolver a manifestação A violência dos cassetetes policiais resultou em muitos e graves ferimentos, inclusive em David Kirkwood — mais tarde eleito parlamentar pelo partido trabalhista que, de tão golpeado, desmaiou.

A greve não foi vitoriosa, porém deu lugar a alguns tipos de concessão, como o retorno dos trabalhadores grevistas da engenharia e construção naval que, na volta ao trabalho, passaram a cumprir uma jornada de 47h semanais em vez das 57h, a qual eles se sujeitavam antes. Mais do que isso, a greve produziu um impacto político em Glasgow, com representantes do partido trabalhista Independent Labour vencendo em 10 de seus 15 distritos eleitorais nas eleições gerais de 1922.

Um dos eleitos foi George Buchanan,  sindicalista escocês, antigo estampador da indústria naval, que nunca esqueceu suas raízes. Em maio de 1925, ele fez um discurso apaixonado em defesa do projeto da Lei de Horas no Trabalho Industrial, que propunha a redução da semana de trabalho para todos os trabalhadores:

“Vi homens no trabalho, e vi rapazes, cumpridores da jornada, em pé na bancada, mas incapazes de manter os olhos abertos ao concluir suas tarefas diárias. Peço aos oponentes ao projeto das Horas que eles não esqueçam destes fatos, quando falarem como se estivessem fazendo a análise de uma situação econômica.

Eles já trabalharam em um estaleiro e viram o que acontece? Estiveram lá às 6h da manhã? Aqui ouvimos falar muito das provações, processos e problemas do comércio. Será que os honrados membros gostariam de estar em um estaleiro às 6h da manhã de um dia gelado, com o frio comendo até seus ossos, sem nada no estômago, pois  se atrasariam, fazendo uma refeição decente antes de pegar no batente, das 6h até as 21h?

Já vi homens nos estaleiros que não podiam comer o desjejum porque seus estômagos estavam tão esvaziados, que não conseguiam digerir direito uma refeição quando ganhavam. Isso não era incomum, mas no entanto só ouvimos falar dos empresários e donos dos estaleiros, e alguns membros desta Casa nos levariam de volta àqueles velhos tempos, se deixássemos.”

Determinadas empresas, não deixaram de contribuir a seu modo, para o aumento da disseminação da semana de trabalho padronizada. Em 1933, a indústria química Boots tinha um estoque excedente em uma nova fábrica. A prática usual na época era demitir trabalhadores para compensar a falta de demanda. A Boots, entretanto, decidiu reduzir a semana de trabalho, permitindo que seus trabalhadores tivessem um fim se semana de 48h, para evitar demissões. Uma pesquisa realizada por Richard Redmayne depois concluiu que os trabalhadores ficaram mais satisfeitos, mais saudáveis, e menos propensos a faltar.

Não faltavam evidências de que essa prática se tornaria padrão. Os sindicatos aumentaram o número de seus membros para 3 milhões durante a Segunda Guerra, e no fim do conflito mundial ficaram mais fortes, social e politicamente.

Isto foi acompanhado pela disseminação de acordos de reconhecimento feitos por diversas indústrias no pós-guerra, que permitiu que os sindicatos, ao negociar com os empregadores, obtivessem pelo menos o básico: o fim de semana de 2 dias, o padrão básico. Por anos e anos, os sindicatos nunca deixaram de negociar acordos setoriais e, assim, no pós-guerra britânico, o fim de semana de 2 dias inteiros tornou-se norma.

“O fim de semana não foi uma graça caída dos céus. Ele é o resultado de mudanças sucessivas, advindas ao longo de uma série de lutas, com derrotas e vitórias, e da resistência inabalável do movimento da classe trabalhadora.”

Amplas coalizões com instituições religiosas e simpatizantes no Parlamento e em outras instâncias de poder foram fundamentais — inclusive com a União Europeia, que instituiu a Diretriz do Tempo de Trabalho, que em 1993 estabelecia uma semana de no máximo 48h de trabalho. Mas a força motriz que impulsionou o direito ao fim de semana, bem como muitos outros direitos ou demandas atendidas hoje, foi orientada pela classe trabalhadora organizada.

Recentemente, um projeto-piloto de semana de trabalho de 4 dias revelou-se “um grande avanço”, já que 56 empresas das 61 participantes adotaram a mudança. Os trabalhadores relataram sentir-se menos estressados e dormir melhor, e os empregadores relataram taxas maiores de satisfação dos clientes. A TUC, Trade Union Congress (Central Sindical Britânica) apoia a alteração para os  4 dias.

O movimento dos trabalhadores organizados não arrefecerá sua luta pela implantação da futura semana de 4 dias trabalhados, da mesma maneira que atuou e conquistou no passado o atual fim de semana de 2 dias. Na medida que o governo tem em vista reprimir ainda mais a força renovada do movimento dos trabalhadores, é hora de reacender o espírito de luta.

Fonte da matéria: Como os trabalhadores conquistaram o final de semana – https://jacobin.com.br/2023/08/como-os-trabalhadores-conquistaram-o-final-de-semana/

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