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Ensaio sobre a nova geopolítica, em quatro mapas

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Pablo Ibañez e Gustavo Westmann  – O documento que selou recentemente a parceria “sem limites” entre a Rússia e a China, por meio do qual os países mostraram alinhamento em relação às disputas que envolvem a Ucrânia, chamou a atenção por uma passagem muito didática: alguns países, liderados pelos EUA, estariam minando a estabilidade estratégica global, com base em ideologia herdada da Guerra Fria e persistindo em impor a democracia ocidental. Mesmo citando a missiva, diversos analistas ocidentais insistiram em chamar a escalada do conflito na Ucrânia de mais um episódio da Guerra Fria 2.0.

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Com poucas exceções, as opiniões no Ocidente têm reforçado uma visão simplificada do conflito, reiterando a culpa do presidente russo pela tensão regional, alegando que suas ações carecem de legitimidade e que o Ocidente não deve fazer concessões às ambições imperialistas do grande vilão soviético. Em que pese a retórica adotada pela OTAN, e pelos EUA, o próprio presidente Biden afirmou que não pretende enviar tropas para a Ucrânia. Ao contrário, eles estariam retirando tropas e diplomatas do país.

A Rússia, com interesses diretos no país vizinho, passou a usar força para impedir a Ucrânia de aderir à OTAN. E tudo indica que Putin só vai parar se as concessões da organização e da Ucrânia com relação aos acordos em discussão forem claras. O avanço da OTAN desde 1949, quando foi criada, é nítido, passando de doze países a trinta, chegando fisicamente a distâncias de centenas de quilômetros da fronteira russa (ver mapa). Em plenos anos 2020, essa investida tornou-se insustentável. Zelenski blefou, os russos pagaram para ver.

Por baixo da ponte da globalização passaram-se mais de trinta anos do fim da Guerra Fria, com transformações inimagináveis na economia e na geopolítica mundial. Observaram-se teorias dos mais diversos matizes sobre as beneficies desse período; guerras assentadas tanto na necessidade de contenção do terrorismo, quanto nas “belezas” do modelo político ocidental e um crescimento vigoroso da Ásia no cenário internacional – econômico, geopolítico e institucional (ver mapa principal com as organizações lideradas pelo Oriente). Não se trata mais de um mundo em estágio de descolonização, nem tampouco de um conflito assentado em cisões extremas como aquelas definidas pelo termo “cortina de ferro”. Não há necessidade alguma de alinhamento assertivo a um dos lados e as grandes potências – econômicas e militares – estão presentes nas diversas regiões de distintas maneiras.

A Guerra Fria acabou. Isto precisa ficar claro. Caso contrário, estaremos tentando ajustar uma vestimenta de inverno ao verão tropical. Vivemos hoje uma ascensão de novos polos asiáticos, ainda pouco discutida entre os ocidentais. É inevitável que gere confusões. O fato de termos uma aproximação entre Austrália, EUA, Índia e Japão, através da formação do QUAD (ver mapa), por exemplo, não tem impedido em nada os passos firmes que os russos ou chineses têm dado regional e globalmente, inclusive dentro desses mesmos países.

O conflito na Ucrânia, injustificável da forma como está ocorrendo, mostra-se também como resultado das frustrações do governo russo com uma decadente ordem mundial dominada pelos EUA e da incapacidade dos países emergentes de criar uma ordem efetivamente multipolar. Indiferente do que venha a acontecer daqui para frente, o Ocidente perdeu. A invasão pode até acabar com uma derrota russa, mas gerou um conflito de altíssimo grau de tensão dentro do continente europeu. Impensável há pouco tempo e com consequências catastróficas. Sem contar a possibilidade de que venha a ter um desfecho liderado por esforços diplomáticos chineses, o que tornaria ainda contundente a derrocada.

Mais do que uma nova Guerra Fria, o que se vê nos dias de hoje é o início do fim de uma era calcada exclusivamente em valores ocidentais, supostamente superiores, e o renascimento de uma nova ordem ainda não definida, que traz em si, coexistindo de forma desarmônica, elementos da velha e da nova ordem. A China, por exemplo, vem liderando, não apenas uma estratégia geopolítica e geoeconômica global, a Belt and Road Initiative (BRI), ver mapa, como também difundindo financiamentos, aumentando a presença de bancos de desenvolvimento, insistindo em trocas baseadas em sua moeda, criticando abertamente a dependência extrema ao dólar, angariando aliados em todos os continentes e criando cada vez mais instituições e parcerias econômicas e militares.

A aproximação recente entre Rússia e China reflete essa realidade em andamento. São dois assentos no Conselho de Segurança da ONU se alinhando de maneira inédita, fato que não ocorreu durante a Guerra Fria. Não há nenhuma possibilidade de retorno a um momento tão cindido, sobretudo pela presença chinesa cada vez mais acentuada em todas as regiões do planeta. Apenas no Brasil – mesmo com a forte resistência por parte da ala ideológica do governo Bolsonaro – houve um incremento da participação asiática na nossa economia, que hoje representa quase metade de nosso comércio exterior, sendo a China sua maior parceira. Entre 1997 e 2021, as exportações brasileiras para o dragão asiático cresceram quase 5700%. No mesmo período, para os EUA não superou 330%. É uma diferença gritante.

Seja pelos interesses geopolíticos russos, seja pelos chineses, movimentações mais assertivas vêm coroar a emergência de novas áreas estratégicas no planeta e alianças que têm ocorrido não apenas no campo militar, mas geoeconômico. Apesar disso – por exemplo, no conflito com a Ucrânia, as posições negociadoras dos EUA e da OTAN como um todo, em nada foram flexibilizadas. A organização ainda insiste que a Ucrânia tem o direito de aderir à aliança, e não tem demonstrado qualquer feição para fazer concessões. Fato que não tem contribuído para uma solução negociada, e deixando cada vez mais claro que os EUA não mais têm a capacidade de ditar arranjos políticos em todo o mundo como bem entendem, embora continue inegavelmente sendo a maior potência global. Críticas à OTAN também passaram a ser mais recorrentes, mesmo entre os mais conservadores.

A Rússia definitivamente deu um passo além do que se poderia assentir. Contudo, outras formas de contestação da ordem internacional como conhecemos, vêm dando pistas importantes de que poderá ser posto no lugar. Trata-se de tema de tamanha complexidade que vai do encontro de Bolsonaro e Alberto Fernandez, líderes antagônicos, com Putin, aos passos da OTAN em direção às fronteiras russas, passando pela estratégia global chinesa BRI.

Estamos presenciando uma nova era na qual os arranjos geopolíticos são desproporcionalmente desafiadores, sem cortinas de ferro, muito mais maleáveis, com os fatores informacional e cibernéticos ganhando relevância difícil de ser mensurada. Embicam-se aspectos econômicos e geopolíticos como nunca se viu. O atual conflito está indicando que a força Ocidental, sobretudo na esfera financeira, ainda é pujante. Ao passo que a tentativa de transformar um presidente novo e com bagagem executiva basicamente nula em herói, com artigos e manchetes sensacionalistas, claramente mascara sérios conflitos dos quais ele ajudou a criar, confunde os efetivos fatos da atual guerra e tende a dar um ar de benevolente a grupos pouco afeitos aos próprios princípios democráticos.

Um novo tabuleiro está se desenhando. China, Índia e Emirados Árabes Unidos se abstiveram em condenar a ação no Conselho de Segurança da ONU. A Índia, que faz parte do QUAD, estar nessa “pequena” lista, que representa quase três bilhões de habitantes, soma-se a essa guinada extremamente intricada do jogo de forças no sistema internacional. Qualquer aprisionamento às análises calcadas nas mídias ocidentais, pode ludibriar os acontecimentos. É fundamental acompanhar porta-vozes daquele lado do mundo. Não parece evidente que países da Ásia Central, Sul e Sudeste asiáticos, estejam sendo devidamente escutados nas repercussões sobre o atual conflito e suas consequências. Trata-se da maior massa populacional do planeta, para onde o centro de gravidade tem se deslocado. Isto é muito sintomático sobre a falta de visão efetivamente global sobre o contencioso e o que vem se desenhando há décadas.

A Geopolítica com letra maiúscula volta a ter centralidade. Seu dinamismo não passa mais apenas pelo crivo dos Estados Nacionais, como quando a disciplina nasceu. Até organizações esportivas estão promovendo ações contra a Rússia. Para não falar nas instituições financeiras. Seja por onde for, ela não é mais privilégio ocidental. Nem tampouco conseguirá impor a sua visão de mundo de forma tão contundente como foi até a Guerra Fria. Precisamos olhar para o gigantismo euroasiático da forma como ele se apresenta. Caso contrário, estaremos fadados às narrativas.

É hora de pensar o presente.

Fonte da matéria: Ensaio sobre a nova geopolítica, em quatro mapas – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/ensaio-sobre-a-nova-geopolitica-em-quatro-mapas/

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