Política

A volta do poder teológico-político não é risco apenas em países muçulmanos

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VLADIMIR SAFATLE – A volta do poder teológico-político não é risco apenas em países muçulmanos

A consolidação de um poder teológico-político a comandar o Estado não é algo que seja um risco apenas em certos países muçulmanos ou na Polônia.

Ele é um fato cada vez mais evidente no Brasil com seus pastores-deputados aliados de saudosos da ditadura militar. Tal consolidação do poder teológico-político alcançará um grau inaudito caso o pastor Marcelo Crivella seja eleito prefeito da segunda maior cidade do país.

Crivella tentou se vender como um político “normal”, mesmo relatando lei que obriga bibliotecas a terem uma Bíblia e pune funcionários que desrespeitem tal privilégio (por que não obrigá-las a terem também um Corão, a “Ilíada” ou o “Tratado Teológico-Político”, de Spinoza?).

No entanto, ele é, na verdade, o principal representante político de um megaempreendimento religioso chamado Igreja Universal do Reino de Deus, comandado por seu tio, o arquiconhecido Edir Macedo. Sua eleição significa que a cidade mais emblemática do Brasil será governada pela Igreja Universal.

Alguém poderia perguntar qual o problema com o fato de um igreja governar o Rio de Janeiro. Afinal, Genebra foi governada por Calvino. Mas a Universal tem suas peculiaridades. Seu líder, cuja fortuna foi estimada pela revista “Forbes”, em 2013, em R$ 2 bilhões, foi preso nos anos 1990 por charlatanismo, estelionato e curandeirismo.

Ilustração de Marcelo Cipis

Posteriormente, foi denunciado várias vezes pelo Ministério Público por crimes que vão de importação fraudulenta, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Crivella é o representante maior dessa associação com condutas, no mínimo, passíveis de questionamento judicial.

Mas não é só a obscuridade ética que ronda a Igreja Universal. Detentora de redes de televisão e emissoras de rádio, a igreja se consolidou, sob os governos Lula e Dilma, como um poder político terreno incontornável. Um poder que procura cada vez mais impor sua agenda ao país e que nada tem a ver com a ideia de uma república laica, plural e radicalmente tolerante.

Os trechos de livros de Crivella, nos quais outras religiões são tratadas como “demoníacas” e os homossexuais são definidos como portadores de “conduta maligna”, podem ser vistos não como opiniões de um “jovem” que “amadureceu”, mas como o núcleo duro de crenças alimentadas por sua igreja, momentaneamente caladas em situação eleitoral e que voltarão à tona quando esta se sentir mais forte.

Por outro lado, mesmo crescendo sob as hostes do lulismo, mesmo sendo ministro da Pesca de Dilma, Crivella resolveu ultimamente abraçar o neoliberalismo e defender o Estado mínimo. Ele gosta de perguntar a seu oponente, Marcelo Freixo, de onde sairá o dinheiro para que o adversário implemente seus programas de justiça social e defesa de serviços públicos.

Bem, valeria a pena lembrar ao pastor que certamente a Prefeitura do Rio de Janeiro teria muito mais dinheiro para ações de justiça social se sua igreja fizesse como eu e você e simplesmente pagasse IPTU.

Acho que eles tomaram um pouco ao pé da letra a afirmação de que a Igreja Universal não é terrena, mas celestial, e resolveram acreditar que uma instituição celestial não deve pagar impostos territoriais.

Entretanto, para alguns, é no mínimo cinismo o representante de uma instituição que tem tamanha benesse pública sair a público e defender cortes nos gastos, afetando diretamente educação e saúde.

Se a prefeitura não tem dinheiro é porque, entre outras razões, sua igreja com megaempreendimentos imobiliários não tem o mesmo tratamento a que eu e você somos submetidos.

Na verdade, esse desmonte final da capacidade de assistência do Estado brasileiro faz parte de um projeto claro de poder. Pois, assim, igrejas como a dele serão, ao final, as únicas responsáveis pela assistência social, criando uma relação perversa de dependência de populações carentes que se verão diante de um Estado cuja única função será deixar os ricos cada vez mais ricos.

PS: Há alguns dias, Alexandre Schwartsman resolveu desqualificar “opiniões” sobre a PEC 241, como a minha. Alguns acham que, por terem feito curso de economia, são os únicos que sabem fazer conta. De toda forma, suas colocações sobre os gastos com educação se esquecem que a comparação do Brasil com outros países da OCDE deve levar em conta a disparidade entre o tamanho dos desafios brasileiros e a situação já consolidada dos países da Europa e América do Norte.

Já a falácia de que a PEC não implicará limitação real dos gastos com educação e saúde é primária e será desmontada nos próximos anos.

Mas creio que sua maior preocupação não é com a educação nacional, mas sim com a garantia dos rendimentos de seus amigos banqueiros.

http://m.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/10/1824687-a-volta-do-poder-teologico-politico-nao-e-risco-apenas-em-paises-muculmanos.shtml?cmpid=compfb

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