Política

“As instituições foram assaltadas pelo capital e vemos o fim do precário contrato social brasileiro”

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Gabriel Brito – Em­bas­ba­cado com as ar­ma­ções de um Con­gresso ab­so­lu­ta­mente des­co­lado da re­a­li­dade da ci­da­dania, o Brasil as­sistiu a se­gunda ab­sol­vição do pre­si­dente Mi­chel Temer pelos seus le­gis­la­dores, isso poucos dias de­pois da re­cu­pe­ração do man­dato de Aécio Neves, ambos ine­qui­vo­ca­mente imis­cuídos na teia da cor­rupção que tanta in­dig­nação causa. Na en­tre­vista ao Cor­reio, a so­ció­loga e pro­fes­sora da UNESP Maria Or­landa Pi­nassi cons­tata toda a de­so­lação e la­menta que ainda ve­remos novos e va­ri­ados ca­pí­tulos de apro­fun­da­mento da bar­bárie ge­ne­ra­li­zada.

“O pro­pó­sito da Ope­ração Lava Jato teve en­de­reço: o su­ca­te­a­mento da Pe­tro­brás, do pré-sal e das em­prei­teiras his­to­ri­ca­mente li­gadas à ex­plo­ração do setor ener­gé­tico do país. O ob­je­tivo sempre foi a pri­va­ti­zação da em­presa e suas sub­si­diá­rias, en­tregá-las ao ca­pital in­ter­na­ci­onal, do jei­tinho que está acon­te­cendo neste mo­mento. O resto é pão e circo para os po­bres de es­pí­rito e ali­e­nados que acham que o ob­je­tivo de Moro é o Lula”, con­tex­tu­a­lizou.

Tal como em en­tre­vistas re­centes, a so­ció­loga en­dossa a noção de um papel cada vez mais im­po­tente das es­querdas, in­ca­pazes de propor novos e atu­a­li­zados de­bates e atada por uma fé na ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade que beira o ina­cre­di­tável di­ante de tantos re­sul­tados ne­ga­tivos.

“Sin­ce­ra­mente, não acho que as es­querdas jo­guem qual­quer papel digno de nota há um bom tempo. Estão per­didas, sem di­reção, sem função, à de­riva de um po­li­ti­cismo frouxo, tei­mando em fazer parte de um par­la­mento ir­re­me­di­a­vel­mente apo­dre­cido para as causas que julga de­fender. E, pior, in­sistem neste tom de­sa­fi­nado ao se jo­garem nas ar­ti­cu­la­ções rumo a 2018”, cri­ticou.

Fa­zendo coro a ou­tros ana­listas, Pi­nassi co­loca a po­la­ri­zação po­lí­tica dos úl­timos tempos, comum a ou­tros países da vi­zi­nhança, como uma cor­tina que en­cobre o que de fato está em jogo.

“O quadro de­monstra o equí­voco co­me­tido pelos apo­lo­getas do pe­ríodo an­te­rior que de­fen­diam a ali­ança dos tra­ba­lha­dores com se­tores pro­du­tivos da bur­guesia in­terna (FIESP), su­pos­ta­mente in­sa­tis­feita com a he­ge­monia do ca­pital fi­nan­ceiro, es­pe­cu­la­tivo (…) É o fim do con­trato so­cial ou o que isso sig­ni­ficou na tra­dição au­to­crá­tica do Es­tado bra­si­leiro”, sin­te­tizou.

A en­tre­vista com­pleta com Maria Or­landa Pi­nassi pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você re­cebeu o re­sul­tado da vo­tação da câ­mara que barrou a se­gunda de­núncia contra o pre­si­dente Mi­chel Temer? 

Maria Or­landa Pi­nassi: Nada sur­pre­en­dente. Sur­pre­en­deria se o ex­pe­di­ente uti­li­zado por aquela gente para li­vrar Temer de seus crimes não ti­vesses se tor­nado tão cor­ri­queiro. Não quero mi­ni­mizar o fato, mas o epi­sódio do dia 26 de ou­tubro, tanto quanto o do dia 13 de julho, foi mais um es­pe­tá­culo dan­tesco de um Con­gresso com o qual a po­lí­tica ali­an­cista do PT con­vivia muito bem. Eram todos ou quase todos da base aliada. A di­fe­rença é que antes do im­pe­a­ch­ment havia um maior aca­nha­mento e a de­linquência não fi­cava assim tão evi­dente.

Se eu fosse we­be­riana, diria que aquelas fi­guras gro­tescas que estão lá em Bra­sília, de­ci­dindo as nossas vidas, des­mon­tando cada um dos di­reitos dos tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras, di­reitos que re­sis­tiram aos ata­ques ne­o­li­be­rais das úl­timas dé­cadas, cor­res­pondem ao tipo po­lí­tico ideal da crise es­tru­tural do ca­pital. Ao menos na pe­ri­feria, onde a con­trar­re­vo­lução produz os mai­ores e mais le­sivos es­tragos, um bom exemplo são os po­lí­ticos que pro­fessam esse tal de ne­o­pen­te­cos­ta­lismo, uma pa­ródia de mau gosto do pro­tes­tan­tismo de Lu­tero.

Além disso, vejo ainda dois pro­blemas gi­gan­tescos li­gados à questão. O pri­meiro é a des­fa­çatez com que se usa, à luz do dia, di­nheiro pú­blico para com­prar uma cam­bada de pa­ra­sitas cí­nicos. São bi­lhões de reais ne­gados às ne­ces­si­dades mais ele­men­tares da po­pu­lação em franco pro­cesso de em­po­bre­ci­mento, des­pro­teção, de­sor­ga­ni­zação e, de­pois destes es­pe­tá­culos todos le­vados ao ar todos os dias em rede na­ci­onal, uma pro­funda e pa­ra­li­sa­dora de­ses­pe­rança.

Aqui re­side o se­gundo pro­blema que me pa­rece ser o ovo da ser­pente, a se­mente de um fas­cismo que é po­pular e muito pe­ri­goso. Para ex­plicar, sempre re­corro a um trecho de Dos­toi­evski em Re­cor­da­ções da Casa dos Mortos onde ele diz o se­guinte: “quando um homem perde qual­quer ob­je­tivo e qual­quer es­pe­rança, não é raro que, por tédio, se trans­forme num monstro”.

Como se pode ver, o caso Temer, assim como o de Aécio e de ou­tros tantos
de­nun­ci­ados e aco­ber­tados pelo Con­gresso e de­mais ins­tân­cias ju­rí­dicas do país, têm con­sequên­cias muito mais sé­rias do que se po­deria supor à pri­meira vista. E as coisas não acon­tecem assim por mero acaso.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como fica a Ope­ração Lava Jato di­ante da so­ci­e­dade com tal re­sul­tado? 

Maria Or­landa Pi­nassi: A Ope­ração Lava Jato cumpre muito bem o seu papel na in­trin­cada ur­di­dura que en­volveu a tran­sição do go­verno Dilma a Temer. É peça chave na ar­ti­cu­lação que pro­move a ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica e a po­li­ti­zação da jus­tiça. Atende à de­manda moral dos pa­ne­leiros que foram às ruas brandir pa­la­vras de ordem, quase sempre muito con­fusas, contra a cor­rupção. Mo­vi­mentos idên­ticos pi­po­caram pela Ve­ne­zuela, Ar­gen­tina, Equador e são parte de um pro­cesso de de­ses­ta­bi­li­zação po­lí­tica na Amé­rica La­tina.

Sérgio Moro, o juiz im­po­luto, cri­ação mí­tica, cuja car­reira aca­dê­mica foi re­a­li­zada tão a jato quanto a ope­ração que co­manda, foi o muso desse mo­vi­mento que en­trou e saiu de cena tão rá­pido quanto durou o im­pe­a­ch­ment de Dilma. Moro e sua equipe (Dal­lagnol e Ro­drigo Janot) dis­traem o pú­blico com seus in­ter­mi­ná­veis man­dados de busca e apre­ensão, con­du­ções co­er­ci­tivas, pri­sões tem­po­rá­rias e pri­sões pre­ven­tivas.

Suas ope­ra­ções se con­so­lidam como a grande fonte das de­nún­cias de crimes en­vol­vendo a es­púria (e óbvia) re­lação entre o pú­blico e o pri­vado, todas com­pro­vadas à exaustão. O pro­blema, como disse an­te­ri­or­mente, é que as de­nún­cias quase sempre são en­ga­ve­tadas nas ins­tân­cias que se se­guem.

O pro­pó­sito da Ope­ração Lava Jato teve en­de­reço: o su­ca­te­a­mento da Pe­tro­brás, do pré-sal e das em­prei­teiras his­to­ri­ca­mente li­gadas à ex­plo­ração do setor ener­gé­tico do país. O ob­je­tivo sempre foi a pri­va­ti­zação da em­presa e suas sub­si­diá­rias, en­tregá-las ao ca­pital in­ter­na­ci­onal, do jei­tinho que está acon­te­cendo neste mo­mento. O resto é pão e circo para os po­bres de es­pí­rito e ali­e­nados que acham que o ob­je­tivo de Moro é o Lula.


En­quanto ana­lisa a gui­nada con­ser­va­dora, a pro­fes­sora lida com per­se­guição dentro da Uni­ver­si­dade em que le­ciona, onde acaba de ser des­cre­den­ciada do pro­grama de pós-gra­du­ação. Lei­turas Bra­si­leiras é uma série de ví­deos que pu­bli­camos neste Cor­reio. O link para a edição com Pi­nassi se en­contra ao final. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Do lado das es­querdas, o que pensa do papel que jo­garam de um ano pra cá?

Maria Or­landa Pi­nassi: Sin­ce­ra­mente, não acho que as es­querdas jo­guem qual­quer papel digno de nota há um bom tempo. Estão per­didas, sem di­reção, sem função, à de­riva de um po­li­ti­cismo frouxo, tei­mando em fazer parte de um par­la­mento ir­re­me­di­a­vel­mente apo­dre­cido para as causas que julga de­fender. E, pior, in­sistem neste tom de­sa­fi­nado ao se jo­garem nas ar­ti­cu­la­ções rumo a 2018.

O rei está nu, e isso ficou claro já nas jor­nadas de 2013 quando as es­querdas or­ga­ni­zadas foram às ruas em­pu­nhando ti­mi­da­mente suas ban­deiras ver­me­lhas e en­trando em dis­putas vãs com os verde-ama­relos. De­pois, a bar­bárie não tardou e ela não é fenô­meno ex­clu­si­va­mente po­lí­tico, muito menos pas­sa­geiro. A bar­bárie emana do Con­gresso que atende às de­mandas do em­pre­sa­riado trans­na­ci­o­na­li­zado e ataca todos os di­reitos da classe tra­ba­lha­dora.

O re­sul­tado mais evi­dente é a for­mação de uma enorme massa de tra­ba­lha­dores de­sem­pre­gados que va­gueia pelo país e pelo ex­te­rior em busca de tra­balho e da paga de um dia; de ho­mens e de mu­lheres “fle­xí­veis” que estão fora dos sin­di­catos, das lutas or­ga­ni­zadas, dos grandes eventos. É dessa base so­cial, for­mada de su­jeitos re­sul­tantes do di­lúvio, su­jeitos pouco se­du­tores e muito di­fe­rentes dos ide­a­li­zados his­to­ri­ca­mente que estão dis­tantes. Eu ar­ris­caria dizer que há um es­tra­nha­mento mútuo entre essas massas e as es­querdas.

Cor­reio da Ci­da­dania: Po­demos dizer que Lula, PT e CUT con­se­guiram do­mes­ticar os ou­tros se­tores da es­querda bra­si­leira? 

Maria Or­landa Pi­nassi: Sim e não. Lula, o PT, a CUT e o MST cum­priram sua parte na do­mes­ti­cação de se­tores sin­di­ca­li­zados, da luta pela re­forma agrária e da po­lí­tica par­la­mentar. Essa é a tríade que jun­ta­mente com as Pas­to­rais re­or­ga­nizou se­tores po­pu­lares da so­ci­e­dade bra­si­leira dos anos de 1980, após duas dé­cadas de re­gime civil-mi­litar con­tro­lando o país. Já se falou muito sobre as po­lí­ticas de con­senso do lu­lismo e das con­sequên­cias ne­fastas que pro­vo­caram sobre as lutas so­ciais, so­bre­tudo quando o PT e seu largo en­ten­di­mento de ali­an­cismo as­su­miram o Pla­nalto.

As es­querdas não ali­nhadas com tal pro­jeto fi­zeram forte opo­sição ao mo­delo, mas sempre dentro da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade, seja sin­dical, po­lí­tico-par­ti­dária ou do mo­vi­mento so­cial de luta por terra e mo­radia. A linha sempre foi da menor re­sis­tência.

No en­tanto, as coisas mu­daram, e muito. Tanto quando o PT, a CUT e o MST, as es­querdas, por seu an­tigo aco­mo­da­mento na via pa­cí­fica, de­fen­siva, es­barram jus­ta­mente no es­go­ta­mento da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade. O Es­tado ul­tra­ne­o­li­beral, bur­guês, la­drão de di­nheiro e pi­lhador de di­reitos serve ex­clu­si­va­mente às de­mandas da bur­guesia e do ca­pital em amplo es­pectro. Esta forma de plu­to­cracia não tem mais nada a ofe­recer para as lutas rei­vin­di­ca­tivas, de­sen­vol­vi­men­tistas e de­fen­soras de prin­cí­pios de­mo­crá­tico-po­pu­lares.

O quadro, enfim, de­monstra o equí­voco co­me­tido pelos apo­lo­getas do pe­ríodo an­te­rior que de­fen­diam a ali­ança dos tra­ba­lha­dores com se­tores pro­du­tivos da bur­guesia in­terna (FIESP), su­pos­ta­mente in­sa­tis­feita com a he­ge­monia do ca­pital fi­nan­ceiro, es­pe­cu­la­tivo. O pro­jeto do ca­pital em curso no Brasil traz todos os in­te­resses bur­gueses en­tre­la­çados e os con­templa a todos, como, de resto, se fez no pas­sado re­cente, apesar da cisão fic­tícia. Mas hoje to­maram de as­salto todas as ins­ti­tui­ções para servi-los. É o fim do con­trato so­cial ou o que isso sig­ni­ficou na tra­dição au­to­crá­tica do Es­tado bra­si­leiro.

Cor­reio da Ci­da­dania: Que des­do­bra­mentos você vis­lumbra para o país e sua po­pu­lação até o pró­ximo pe­ríodo elei­toral? Acre­dita na hi­pó­tese le­van­tada por Vla­dimir Sa­fatle de que “2018 pode não existir”?

Maria Or­landa Pi­nassi: Não vejo ne­nhuma mu­dança de rumo no país, nem até e nem de­pois de 2018. Toda essa di­nhei­rama gasta para manter Temer no cargo é sinal de que se pre­tende re­a­lizar todas as con­trar­re­formas em curso dentro da “nor­ma­li­dade” ins­ti­tuída pelo que po­demos chamar de con­trar­re­vo­lução de­mo­crá­tica.

De um modo ou de outro, há uma mi­li­ta­ri­zação mon­tada no Brasil há já um bom tempo. Na ver­dade, ela nunca se re­co­lheu, mesmo com a re­de­mo­cra­ti­zação dos anos de 1980. Mas, estou fa­lando aqui de uma forma atual de mi­li­ta­ri­zação for­te­mente am­pa­rada em tec­no­lo­gias de re­pressão. Sa­bemos que a pe­ri­feria da pe­ri­feria es­conde muitas Faixas de Gaza. Os mé­todos uti­li­zados lá, cá e no Haiti são os mesmos. Sa­bemos também que todo o em­penho com a se­gu­rança pú­blica é para in­verter di­nheiro no com­plexo in­dus­trial mi­litar e re­primir bairros da classe tra­ba­lha­dora mais pobre, mais vul­ne­rável, mais atin­gida pela bar­bárie im­posta pelo ca­pital.

Além da de­linquência que se re­fes­tela em Bra­sília e nos in­ters­tí­cios dos po­deres es­ta­duais e mu­ni­ci­pais, a “po­lí­tica da ordem” conta hoje com uma rede muito bem ar­ti­cu­lada de pro­vo­ca­dores pro­fis­si­o­nais que im­põem com base na vi­o­lência e do cons­tran­gi­mento a es­cola sem par­tido, a ho­mo­fobia, o ra­cismo, o ma­chismo, a in­to­le­rância com re­li­giões afro­des­cen­dentes, o fim dos di­reitos hu­manos. O MBL, por exemplo, acabou de em­placar o fim da pu­nição com zero nas re­da­ções do ENEM que vi­o­larem os di­reitos hu­manos.

Veja, qual ameaça po­pular se in­terpõe à con­clusão desse go­verno ven­trí­loquo do grande ca­pital? Não vejo ne­nhuma. O que eu po­deria des­tacar de ver­da­dei­ra­mente sig­ni­fi­ca­tivo são as lutas in­dí­genas pela re­to­mada de suas terras contra o hidro e agro­ne­gócio e a mi­ne­ração. Essa é uma forma de en­fren­ta­mento não rei­vin­di­ca­tiva que se en­contra fora da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade, que não es­pera nada do Es­tado e está sob o con­trole di­reto de suas li­de­ranças que não es­ta­be­lecem qual­quer re­lação hi­e­rár­quica com os de­mais mem­bros en­vol­vidos. Por isso mesmo eles estão sendo per­se­guidos e ex­ter­mi­nados, sem que se erga um dedo se­quer em so­li­da­ri­e­dade às suas lutas.

Neste mo­mento, de avanço des­co­munal sobre os re­cursos na­tu­rais do país em que se ala­vanca todo um apro­fun­da­mento da ló­gica da pro­dução des­tru­tiva, se as es­querdas pres­tassem mais atenção a estas formas or­ga­ni­za­tivas te­riam muito mais a aprender do que a en­sinar.

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