Política

Domenico Losurdo e as fronteiras da utopia

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Ana Sarabia e Guilherme Arruda – Outros Quinhentos publica em primeira mão trecho de novo livro do filósofo italiano Domenico Losurdo, que discute os conflitos entre o movimento comunista e o liberalismo.

As fronteiras imprecisas entre a utopia e o projeto político concreto, por Domenico Losurdo

A questão comunista: história e futuro de uma ideia é uma obra póstuma do historiador marxista italiano Domenico Losurdo, organizada a partir de originais escritos entre 2014 e seu falecimento em 2018. O livro receberá sua primeira publicação no Brasil pelas mãos de nossos parceiros da Boitempo, e já está em pré-venda no site da editora. Outros Quinhentos publica trecho inédito. Boa leitura!

Mas não é uma utopia impossível e funesta a que inspira o “comunismo”? Essa é uma tese central da ideologia dominante e deve ser examinada com cuidado. Deve-se notar, em primeiro lugar, que essa tese pressupõe uma fronteira clara entre projeto político realista e utopia. Mas as coisas de fato se colocam nesses termos? Segundo o Schelling de 1809/1810, as ideias difundidas “especialmente a partir da Revolução Francesa” tinham a ilusão de querer criar o “verdadeiro Estado”, esquecendo-se de que “o verdadeiro Estado pressupõe um paraíso na terra e que a verdadeira politeia só existe no céu”. O que aqui se critica como utopia inatingível é o Estado liberal e democrático, ou seja, uma ordem política hoje considerada óbvia e inalienável. Coloquemo-nos, no entanto, no tempo em que o grande filósofo chegou à conclusão que hoje parece risível: os ideais de 1789 não haviam penetrado em nenhum país da Europa continental, enquanto na França o Antigo Regime fora de fato derrubado, mas para abrir caminho para a ditadura militar e belicosa de Napoleão. Na Inglaterra mesmo as coisas não estavam muito melhores:

“O habeas corpus foi suspenso por oito anos em 1794, e as tropas ocuparam a maior parte das áreas industriais como se fossem terras de conquista […]. Pitt, apoiado por grande parte da opinião pública, perseguiu implacavelmente todos aqueles que se manifestaram a favor das ideias liberais ou que, de qualquer forma, se inclinam a favor das ideias francesas. Motins, revoltas, greves ou levantes, mesmo se justificados pela miséria e sofrimento, eram esmagados impiedosamente.”

Não havia dúvida aos olhos de Schelling! As ideias de 1789 revelaram-se uma utopia, e nessa convicção o filósofo alemão foi ainda mais fortalecido após o fracasso em toda a Europa da Revolução de 1848: aspirar a um “Estado de direito completo” (Staat des vollendeten Rechts), a um “Estado perfeito” (Vollkommer Staat), significava abandonar-se a um “devaneio apocalíptico”, com as consequências ruinosas que eram visíveis aos olhos de todos.

Do mesmo modo, outras “obviedades” dos dias atuais foram rotuladas como utopias no passado. Embora fosse proprietário de escravos e estivesse empenhado em aumentar sua propriedade, Jefferson, com os olhos voltados à missão internacional que os Estados Unidos desejavam desempenhar, sentia-se incomodado com a instituição da escravidão e, ainda que fosse para um futuro vago e remoto, projetava a abolição. No entanto, essa medida deveria ter sido seguida pela deportação dos ex-escravos para a África. Não era imaginável uma convivência em bases igualitárias de negros e brancos: seria um terrível desafio à natureza e às diferenças naturais; o resultado inevitável teria sido uma guerra total entre as raças com o consequente extermínio dos derrotados. Lincoln também considerava utópica a ideia de uma sociedade inter-racial e, ao final da Guerra de Secessão, projetava a ideia de deportar os ex-escravos: mas a transferência para a África era muito dispendiosa e pensava-se na América Latina. Os Estados Unidos tiveram, no entanto, que renunciar a esse projeto devido à oposição dos países latino-americanos.

É sobretudo no final do século XIX, com o advento e a fúria do regime da White supremacy, que a ideia de uma sociedade baseada na coexistência e na igualdade racial foi estigmatizada como sinônimo de utopia irrealista e funesta. Não foram poucos os visitantes da Europa a argumentar dessa forma, somando-se à comunidade branca dos Estados Unidos como um todo. Um deles, mais tarde destinado a se tornar um teórico alemão da geopolítica famoso e controverso, observou – na verdade constatou, foi obrigado a constatar – que na República norte-americana a realidade da “aristocracia racial” suplantara os projetos fantasiosos de realização do princípio da “igualdade”: a separar brancos e negros e a colocar os primeiros em uma posição de poder e privilégio, havia uma “linha de cor”, mais rígida e intransponível do que nos dias da escravidão, e tão difundida e inevitável que atravessava “até mesmo instituições para cegos”. Assim, até os “fanáticos da instrução” e da educação foram forçados a reconhecer que o artifício humano nada poderia fazer contra a natureza e suas leis inelutáveis. Nem é preciso dizer que hoje o quadro mudou drasticamente. O sonho ou o pesadelo (dependendo do ponto de vista) de uma sociedade fundada no princípio da coexistência e da igualdade entre as diferentes “raças” tende a se tornar uma realidade em uma área cada vez mais extensa do planeta.

Outros exemplos da transformação da utopia em realidade ou em um projeto político concreto poderiam ser citados. Pense-se na condição da mulher e nas relações entre homem e mulher: mesmo com suas limitações persistentes, o quadro que se nos apresenta hoje a esse respeito teria parecido uma utopia fantástica ou distopia repugnante (dependendo do ponto de vista) a algumas décadas atrás, quando era uma crença generalizada e quase inabalável que a segregação das mulheres e a sua exclusão dos direitos políticos e das profissões liberais eram impostas pela natureza.

Agora vale a pena referir-se a um exemplo tirado de uma esfera significativamente diferente daquela considerada até agora. Não apenas para Malthus, mas para toda uma série de autores contemporâneos ou posteriores, e na verdade, para o que durante séculos foi a cultura dominante, a escassez e a miséria em massa foram um elemento constitutivo e inseparável da condição humana. Aos olhos de Tocqueville, a revolução de fevereiro de 1848 já estava infelizmente contaminada pelo socialismo e pela utopia socialista, pelo fato de nela estarem fortemente presentes “teorias econômicas e políticas” que – observam suas Lembranças – queriam nos fazer “crer que as misérias humanas são obra das leis e não da Providência, e que se poderia suprimir a pobreza mudando-se o ordenamento social”. Silenciadas com punho de ferro as massas parisienses, em um discurso de 3 de abril de 1852 o liberal francês reiterava: insano prenúncio de desastre sair em busca de um “remédio político contra esse mal herdado e incurável da pobreza e do trabalho” (sob a bandeira de dificuldades e fadiga exaustiva).

Não há dúvida de que, especialmente a partir da crise econômica que eclodiu em 2008, a miséria se faz sentir de forma generalizada e dramática no Ocidente; mas a queda ou recaída nessa condição é percebida como uma injustiça intolerável por grandes massas, incluindo aqueles que estão longe dos ideais do socialismo; após as conquistas políticas e sociais e o desenvolvimento das forças produtivas ocorridos nos séculos XIX e XX, a erradicação da miséria em massa de utopia se transformou em um projeto político concreto.

Fonte da matéria: Domenico Losurdo e as fronteiras da utopia – Outros Quinhentos – https://outraspalavras.net/outrosquinhentos/domenico-losurdo-e-as-fronteiras-da-utopia/

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