Política

A Cracolândia acabou?

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Vera Telles e equipe – A Cra­co­lândia teve mais uma vez o seu fim de­cre­tado, dessa vez pelo atual pre­feito de São Paulo, João Doria, de­pois de uma me­ga­o­pe­ração po­li­cial, co­or­de­nada pelo Grupo de Ope­ra­ções Es­pe­ciais da Po­lícia Civil. Che­fiada pelo go­ver­nador Ge­raldo Alckmin, a in­ves­tida teve início na manhã de do­mingo, 21 de maio, com a dis­persão de pes­soas através de tiros de bala de bor­racha e bombas de gás la­cri­mo­gêneo e se­guiu du­rante a se­mana com abor­da­gens, de­mo­lição de imó­veis e rondas po­li­ciais. Se­gundo as ges­tões mu­ni­cipal e es­ta­dual, o foco era acabar com a “feira livre da droga”, tantas vezes de­nun­ciada em re­por­ta­gens da im­prensa, e prender tra­fi­cantes da re­gião.

A “guerra ao trá­fico” pa­rece ofe­recer um dis­curso eficaz à opi­nião pú­blica e, por meio dele, jus­ti­ficou-se uma ope­ração que, na re­a­li­dade, foi or­ques­trada para pro­mover mu­danças es­tru­tu­rais do ter­ri­tório com o des­pejo de mo­ra­dores, pe­quenos co­mer­ci­antes e pes­soas em si­tu­ação de rua, que não sabem nem para onde ir e agora têm sua cir­cu­lação con­tro­lada.

Pas­sada a es­pe­ta­cu­la­ri­zação po­li­cial, tanto o go­ver­nador Ge­raldo Alckmin quanto o pre­feito João Doria de­cla­raram a vi­o­lência como passo ne­ces­sário ao se­gundo mo­vi­mento de in­ternar os usuá­rios de crack em co­mu­ni­dades te­ra­pêu­ticas con­ve­ni­adas com o go­verno, pa­gando mais de mil reais por mês por pessoa aten­dida. Em tempos de Lava Jato, é im­por­tante nos per­gun­tarmos, de par­tida, quem são os pro­pri­e­tá­rios dessas clí­nicas, quais os acordos para o con­vênio entre CTs e go­verno e se há algum tipo de fis­ca­li­zação pú­blica desses equi­pa­mentos.

Para re­fletir mais de­ti­da­mente sobre os acon­te­ci­mentos re­centes, pes­qui­sa­dores do as­sunto reu­niram aqui cinco per­guntas sobre essa me­ga­o­pe­ração, con­tra­pondo a nar­ra­tiva ofi­cial cor­rente. Também le­van­tamos ou­tras ques­tões in­qui­e­tantes que nossos go­ver­nantes ainda não res­pon­deram.

1.    Em que me­dida esta ope­ração es­pe­ta­cu­la­ri­zada é uma nova es­tra­tégia?

Não é a pri­meira vez, na breve his­tória da Cra­co­lândia, que a ar­ti­cu­lação entre ope­ra­ções po­li­ciais e in­ter­ven­ções no es­paço ur­bano é feita. Pelo con­trário: a Ope­ração Limpa, de 2005, na gestão mu­ni­cipal de Serra e Kassab, e a Centro Legal, de 2012 (mais co­nhe­cida como Su­foco ou Dor e So­fri­mento) par­tiram desse mesmo prin­cípio. Nestas in­ves­tidas, as rondas po­li­ciais os­ten­sivas, im­pe­dindo qual­quer agru­pa­mento no local, foram com­bi­nadas às de­mo­li­ções e fe­cha­mento de di­versos imó­veis da área sob os ar­gu­mentos de ser­virem “como lo­cais de in­cen­tivo à pros­ti­tuição, abrigo a tra­fi­cantes e de­pen­dentes quí­micos”, ou por “ir­re­gu­la­ri­dades” sa­ni­tá­rias / ad­mi­nis­tra­tivas, como al­varás de fun­ci­o­na­mento.

Assim como no pre­sente mo­mento, um dos prin­ci­pais efeitos dessas in­ter­ven­ções foi o de dis­persar os usuá­rios de crack pela ci­dade, que, pos­te­ri­or­mente, se re­a­gru­param em pontos ad­ja­centes. Tal si­tu­ação, vi­o­la­dora por si mesma, obriga pes­soas à er­rância, rompe vín­culos de aten­di­mento es­ta­be­le­cidos pelos ser­viços e ainda di­fi­culta o tra­balho em an­da­mento das equipes de saúde e as­sis­tência so­cial, que não sabem onde en­contrá-las. Ao con­trário da versão que de­fende o ine­di­tismo dessa es­tra­tégia, ob­serva-se uma re­pe­tição das vi­o­lentas in­ves­tidas já ten­tadas an­te­ri­or­mente e uma in­de­fi­nição sobre o pro­jeto que lhe acom­panha – o que, como já vimos, cria um ce­nário ideal para de­sor­ga­ni­zação dos ser­viços de atenção e ar­bí­trio po­li­cial.

2. Onde está o Pro­grama Re­denção?

A gestão mu­ni­cipal de João Doria anun­ciou o fim do pro­grama De Braços Abertos (DBA), criado no final de 2013 pela pre­fei­tura de Fer­nando Haddad. Se­gundo consta, o pro­jeto será subs­ti­tuído pelo Re­denção, que, no en­tanto, ainda não foi apre­sen­tado e não conta nem com verba pro­vi­si­o­nada na pre­fei­tura. Di­ante da in­con­sis­tência, desde março o MP ins­taurou pro­cesso ad­mi­nis­tra­tivo para acom­pa­nhar o pro­jeto.

Apesar de tanta in­de­fi­nição, tra­tores com o lo­go­tipo do pro­jeto estão no ter­ri­tório da Cra­co­lândia, ace­le­rando a de­mo­lição de quar­tei­rões in­teiros. Agentes mu­ni­ci­pais li­gados ao pro­grama Ci­dade Limpa apre­endem bens de mo­ra­dores de rua como parte da ini­ci­a­tiva. Se­gundo Doria, o pro­grama se ba­seia no tripé ope­ração po­li­cial, as­sis­tência de saúde e re­vi­ta­li­zação da re­gião, mas ainda nada se sabe con­cre­ta­mente sobre a as­sis­tência em saúde.

En­quanto a re­pressão po­li­cial e a in­ter­venção no es­paço ur­bano ga­nharam no­to­ri­e­dade, o aco­lhi­mento aos usuá­rios de crack e pes­soas em si­tu­ação de rua está bas­tante de­sor­ga­ni­zado. Tra­ba­lha­dores li­gados à Se­cre­taria Mu­ni­cipal de As­sis­tência e De­sen­vol­vi­mento So­cial (SMADS) estão com muitas di­fi­cul­dades em en­ca­mi­nhar as cen­tenas de pes­soas afe­tadas (quando as en­con­tram), pois não há vagas su­fi­ci­entes nos al­ber­gues e ins­ti­tui­ções de aco­lhida.

O que irá acon­tecer com as pes­soas des­pe­jadas das pen­sões e cor­tiços da re­gião e com os be­ne­fi­ciá­rios do De Braços Abertos, que vivem em ho­téis so­ciais? O que ocor­rerá com os tra­ba­lha­dores do DBA? Pes­soas estão sendo ex­pulsas de seus lares e das ruas, e vivem in­certas quanto às con­di­ções de tra­balho, sem qual­quer con­cre­tude re­fe­rente à cons­trução de uma po­lí­tica pú­blica. Cadê o pro­jeto, pre­feito?

3. Re­vi­ta­lizar a re­gião aju­dará a re­solver o pro­blema?

Go­verno do es­tado e pre­fei­tura de São Paulo anun­ci­aram que a re­gião da Cra­co­lândia também será alvo de ações de in­ter­venção ur­bana. Por meio de par­ce­rias pú­blico-pri­vadas, in­tenta-se cons­truir pré­dios de ha­bi­tação po­pular (será que po­demos falar isso?) e ou­tros equi­pa­mentos de ser­viços pú­blicos no lugar de edi­fí­cios an­tigos da re­gião. Mesmo sem au­to­ri­zação ju­di­cial e aviso aos pro­pri­e­tá­rios e mo­ra­dores, a ad­mi­nis­tração mu­ni­cipal deu início à de­mo­lição de quar­tei­rões in­teiros, ocu­pados por pe­quenos ho­téis, pen­sões, cor­tiços e es­ta­be­le­ci­mentos co­mer­ciais, des­pe­jando de­zenas de pes­soas. A Cra­co­lândia está in­se­rida em uma re­gião alvo de pro­jetos de in­ter­venção ur­bana ao menos desde os anos 1970, antes mesmo dessa ter­ri­to­ri­a­li­dade se cons­ti­tuir.

Esses pro­gramas se ba­seiam na ideia de “de­gra­dação” dessa área, es­tig­ma­ti­zando-a como lócus de con­cen­tração de ha­bi­ta­ções sub-nor­mais (cor­tiços, pen­sões, ocu­pa­ções e bar­racos), pontos de trá­fico e con­sumo de “drogas”,  pros­ti­tuição e usos po­pu­lares do es­paço, como co­mércio in­formal e lojas po­pu­lares. Ao se propor a al­terar os sen­tidos e formas de apro­pri­ação do es­paço ur­bano atre­ladas a grupos so­ciais es­pe­cí­ficos, esse tipo de in­ter­venção car­rega uma di­mensão re­pres­siva de ex­pulsar as pes­soas que ha­bitam o local e tenta atrair outro pú­blico para a área, por meio da es­pe­cu­lação imo­bi­liária.

Cabe notar, en­tre­tanto, que desde pelo menos 2005 anun­ciam a cons­trução de em­pre­en­di­mentos que, efe­ti­va­mente, nunca saíram do papel. Onde está, por exemplo, o com­plexo de dança tantas vezes anun­ciado, cujo pro­jeto ar­qui­tetô­nico custou mi­lhões de reais ao Es­tado? No­va­mente, a aposta po­lí­tica de Doria e Alckmin pa­rece ser a re­o­cu­pação do es­paço pura e sim­ples­mente a partir da ex­pulsão das pes­soas.

4. Como Doria quer “acabar” com a Cra­co­lândia?

O atual pre­feito de São Paulo, João Doria, não foi o único po­lí­tico a anun­ciar o fim da Cra­co­lândia. Mas, no ce­nário re­cente, cabe ques­ti­onar: o que ele en­tende por cra­co­lândia? Ao que ele se re­fere quando diz que esse ter­ri­tório vai acabar? Sua afir­mação parte da ideia, pre­do­mi­nante no de­bate pú­blico, que equi­para con­sumo de crack a cra­co­lân­dias e que torna a re­gião da Luz a mais no­tória con­cen­tração de usuá­rios de crack, que, além de con­su­mirem a droga, vivem nessas ruas. Quando Doria de­creta o fim dessa ter­ri­to­ri­a­li­dade, de­creta so­bre­tudo o fim da con­cen­tração de pes­soas em si­tu­ação de rua pelas ruas da Luz. No en­tanto, como fazer com que essa mul­tidão deixe de existir e de­sa­pa­reça desse es­paço pú­blico? De novo, ele faz mais do mesmo.

Como as ope­ra­ções an­te­ri­ores, também esta pro­voca como efeito a mi­gração do agru­pa­mento de usuá­rios para re­giões ad­ja­centes. Para mi­ni­mizar a quan­ti­dade de pes­soas des­lo­cadas, duas prin­ci­pais tá­ticas de con­trole são aci­o­nadas: pri­sões no ata­cado para os ta­xados como tra­fi­cantes e in­ter­na­ções mas­sivas para os ta­xados como de­pen­dentes.

Ainda assim, não sendo pos­sível nem prender nem in­ternar a todos, aloca-se po­lícia e GCM para evitar qual­quer aglo­me­rado pelo centro de São Paulo. Os epi­só­dios an­te­ri­ores mos­tram que em cerca de um mês as pes­soas presas são de­vol­vidas às ruas por in­con­sis­tência de provas, as in­ter­nadas evadem do ex­cesso de dis­ci­pli­na­mento das clí­nicas e CTs, e aquelas que re­sistem pe­ram­bu­lando, de tanto andar e fazer andar as forças de se­gu­rança, uma hora lhes é per­mi­tido voltar. Por isso, acom­pa­nhar os des­do­bra­mentos dessas ope­ra­ções é da má­xima ur­gência po­lí­tica.

5. Mas é pos­sível acabar com a Cra­co­lândia?

Um fato já de­mons­trado em di­versas pes­quisas sobre a Cra­co­lândia é que as ope­ra­ções re­a­li­zadas pelo poder pú­blico não con­se­guem acabar com essa ter­ri­to­ri­a­li­dade. Ao con­trário, a ação re­pres­siva apenas pro­move um re­la­tivo des­lo­ca­mento ter­ri­to­rial e a mesma pai­sagem se res­ta­be­lece, sempre em uma mesma re­gião, nas ad­ja­cên­cias do bairro da Luz, Campos Elí­seos e Bom Re­tiro. Foi assim que a Cra­co­lândia se moveu desde seu sur­gi­mento na se­gunda me­tade dos anos 1990 até os dias atuais, pas­sando das ime­di­a­ções das ruas dos Pro­tes­tantes, An­dradas e do Triunfo, no pe­rí­metro co­nhe­cido como “boca do lixo”, para as cer­ca­nias do Parque e da Es­tação da Luz, es­tando, atu­al­mente, entre a Es­tação Júlio Prestes e a Ave­nida Rio Branco.

Não é exa­gero afirmar que a cra­co­lândia é ponto de gra­vi­tação mais ra­dical da po­breza ur­bana. Por ali estão pes­soas, em sua mai­oria, em si­tu­ação de rua, são ne­gras, pos­suem pouca es­co­la­ri­dade, estão longe do mer­cado de tra­balho formal e muitas já pas­saram pela prisão por pe­quenos furtos e co­mércio de drogas no va­rejo. Os cha­mados “chefes do trá­fico”, alvo de­cla­rado destas ope­ra­ções, estão dis­tantes da alta cú­pula que con­trola e se be­ne­ficia com a eco­nomia ilí­cita das drogas no ata­cado, e serão ra­pi­da­mente subs­ti­tuídos por ou­tros tantos na ponta va­re­jista deste co­mércio. São os “feios, sujos e mal­vados” que não cabem na Ci­dade Linda pre­gada por Doria.

A julgar por esse his­tó­rico, en­quanto não houver von­tade po­lí­tica para pro­mover de­sen­car­ce­ra­mento e mu­dança na le­gis­lação sobre drogas, bem como para ofertar aos po­bres ur­banos con­di­ções de­centes de tra­balho, mo­radia, edu­cação e afir­mação so­cial, nada anuncia que o pre­feito será bem-su­ce­dido em sua em­prei­tada. Nesses anos de exis­tência, a ins­crição no es­paço é a maior luta vital de que dá prova essa po­pu­lação.

Mais per­guntas

Como se ob­serva, o tra­ta­mento po­lí­tico sobre a cra­co­lândia im­plica atenção a muitos fenô­menos para além do crack. Trata-se de uma questão que ex­tra­pola o campo mé­dico e sa­ni­tário e, so­bre­tudo, o po­li­cial e ur­ba­nís­tico; possui re­lação com pro­cessos so­ciais e po­lí­ticos mais am­pli­ados. Sem que sua “so­lução” es­teja perto, é o caso então de per­guntar: quais as reais in­ten­ções desta ope­ração po­li­cial mi­di­a­ti­zada? Quanto ela custou? Foi pla­ne­jada em quanto tempo? Que papel ela exerce na agenda po­lí­tica e elei­toral de Ge­raldo Alckmin e João Dória? Quais os des­do­bra­mentos pro­postos? Quais os pontos de con­ver­gência entre o Pro­grama Re­co­meço e o Re­denção? O que acon­te­cerá com as ins­ta­la­ções do Re­co­meço? Como será feita a tran­sição de pro­gramas? O que será feito com as pes­soas que vi­viam em ho­téis do DBA? O que acon­te­cerá com os fun­ci­o­ná­rios do DBA? O que acon­te­cerá com a tenda do DBA? Quanto tempo ainda até a efe­ti­vi­dade do Re­denção? Onde será a sede do Re­denção? O que acon­te­cerá com mo­ra­dores e pe­quenos co­mer­ci­antes da re­gião que foram ex­pulsos? A pro­posta de ha­bi­tação po­pular de Alckmin abarca essa po­pu­lação?

Ao que pa­rece, é mais fácil or­ques­trar cen­tenas de po­li­ciais para lançar toda sua fe­ro­ci­dade sobre pes­soas in­de­fesas do que ter res­postas e pro­postas con­cretas para a questão.

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12587-a-cracolandia-acabou

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