Sérgio Amadeu da Silveira – No atual cenário em que as sociedades democráticas buscam regular as redes sociais digitais tendo como um dos principais objetivos reduzir o terreno da disseminação de informações falsas, de mentiras, de ataques à produção científica, de teorias da conspiração, de negação de fatos ocorridos e de invenção de outros que não passam de ficção, a análise do modelo de negócios das plataformas torna-se fundamental. Para observar com profundidade essa dinâmica é importante nos apoiarmos em referenciais teóricos e conceitos que ampliam nosso campo de visão.
Para pensar a dinâmica das plataformas digitais, a contribuição de dois pensadores merece destaque. O primeiro é Guy Debord (2007) e sua tese da sociedade do espetáculo, publicada em 1967. O segundo é Paul Virilio ao acusar a lógica da aceleração constante e da velocidade alucinante gerada em nossas sociedades (1996). Sem dúvida, existem outros referenciais e abordagens extremamente relevantes para a compreensão do fenômeno das redes de relacionamento social online e seus efeitos sobre a subjetividade, a cultura, a economia e a política. Algumas abordagens de Debord e Virilio permitem examinar e explorar a fundo as bases tecnopolítica e tecnoeconômica por onde flui processo desinformativo.
O grande esforço dos gestores das plataformas é voltado para o crescimento de seu número de usuários e para a elevação do tempo em que passam navegando pelas interfaces e acessando os conteúdos postados em seus espaços digitais. Quanto maior o engajamento dos usuários com os conteúdos, melhor para a plataforma. Para obter os melhores resultados, os sistemas algorítmicos das redes de relacionamento online coletam dados do comportamento dos usuários para estruturar seu perfil. Por exemplo, segundo a consultoria Statista, em um relatório de 2017, o Facebook tinha armazenado de seus usuários 300 milhões de Gigabytes de dados, o equivalente a um livro digital de 126 páginas para cada integrante da rede social.
Cheney-Lippold (2011) afirmou que para as plataformas nossa identidade é móvel. A cada dia os sistemas algorítmicos que operam as redes sociais online descobrem um pouco mais das nossas preferências, estilo, gostos e necessidades, uma vez que não param de coletar dados de cada usuário. A finalidade dessa criação gigantesca de dispositivos de registro e armazenamento de nossos dados de navegação, dos nossos cliques, daquilo que lemos ou deixamos de ver é formar nosso perfil de consumo de produtos, serviços e conteúdos. Assim, a plataforma vende o acesso aos perfis por ela construídos. Esse acesso é sua maior fonte de renda, é a mina de ouro das Big Techs. Desse modo, as amostras são formadas pela plataforma conforme o interesse dos clientes. A publicidade pode ser microssegmentada e até personalizada.
O objetivo das plataformas é modular a atenção dos seus usuários. Essa modulação é feita pelo controle das visualizações de cada membro da plataforma (Silveira, 2016). Os algoritmos das redes sociais irão definir a frequência com que as pessoas de uma amostra receberão em sua timeline o conteúdo que está sendo monetizado, ou seja, que teve o acesso vendido para agências de marketing, empresas de serviços e produtos, instituições ou pessoas que tenham recursos para atingir as pessoas com o perfil pretendido.
As técnicas de engajamento e de modulação dessa economia da atenção penetraram fundo no espírito das sociedades capitalistas. Os conteúdos passaram a ser expostos com o objetivo de converter tudo em algo espetacular. De modo distinto do que Guy Debord percebeu nos anos 1960, o espectador passivo das sociedades de massa foi substituído pelo consumidor ativo de espetáculos nas redes de relacionamento online. Nos espaços virtuais das redes, nossa subjetividade é forjada na espetacularização da nossa própria vida. Ao mesmo tempo, as técnicas utilizadas pelas plataformas dão uma sensação de urgência e de que ninguém pode perder uma informação, A velocidade acompanha o espetáculo. Assim, somos capturados por uma dromocracia espetacular. As técnicas de conhecimento do comportamento efetuadas pelas redes neurais artificiais podem sim ser simultaneamente compreendidas como uma psicopolítica, nos dizeres de Byung-Chul Han (2018), ou como bem detalhou Shoshana Zuboff – ao afirmar que vivemos um capitalismo de vigilância – que, entre outros mecanismos, opera “uma lógica econômica parasitária na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento” ( 2021, 7).
Apesar das diferenças de olhares de diversos pesquisadores, o traço da aceleração do espetáculo é o que está no cerne da gamificação e da operação das plataformas. Essa constatação não é contraposta às demais descrições densas do fenômeno, nem mesmo àquelas que indicam que a dinâmica da rede gera a radicalização e a polarização. Todavia, não são esses fenômenos da interação social que as plataformas incentivam. Os seus controladores querem é que cada conteúdo seja espetacular para um determinado público, segmento ou microssegmento. Com isso, a plataforma ganha tempo de presença virtual e também pode extrair dados do comportamento do usuário. Quanto mais tempo online, mais dinheiro para a plataforma.
A questão é que a espetacularização foi amplamente assimilada. A qualidade da informação está sendo substituída pela necessidade de despertar curiosidade e de capturar a atenção. Para atrair tráfego para seus canais, até mesmo os títulos da matérias da mídia tradicional são voltados a chamar o máximo de atenção, mesmo que isso tenha cada vez mais exageros ou imprecisões em relação ao corpo da matéria. A regra social das plataformas é de que a verdade e a qualidade se originam na quantidade de likes. Isso é o que reforça a espetacularização que alimenta a desinformação, a imprecisão e os abusos informativos, bem como alimenta o discurso de ódio.
O espetacular é ampliado pela velocidade de cada novo espetáculo que emerge à nossa disposição. É muito difícil produzirmos um juízo quase instantâneo sobre determinadas opiniões contrapostas. Mais difícil ainda é apurar fatos que requerem uma investigação minuciosa, muitas vezes presencial. A aceleração cada vez mais requisitada em tempos de aprendizado de máquina, de capacidade crescente de processamento, de elevação do poder computacional, é contrária à análise humana fundamentada. Para que serve tamanha velocidade? A instantaneidade serve principalmente à guerra e aos especuladores financeiros que lucram com o algorithmic trading. Os ciclos da vida seguem velocidades distintas. O capitalismo das plataformas, ao impor suas necessidades de lucratividade e reprodução, corrói as democracias com a velocidade que a desinformação espetacularizada adquire.
A lei de regulação das plataformas para reduzir a desinformação precisa atuar sobre o seu modelo de negócios. Primeiro, precisa deixar transparente para toda a sociedade e usuários o quanto se gasta para modular nossa atenção com anúncios, visíveis ou mascarados, na forma de postagens inocentes. Cada propaganda nas redes sociais em qualquer formato deve conter bem evidente o quanto se gastou naquela divulgação. Segundo, não podemos permitir que toda e qualquer informação seja produzida e armazenada. As plataformas devem esclarecer cada item de informações que retiram dos seus usuários, ou seja, nem todo dado pode ser coletado. Terceiro, uma autoridade pública multissetorial, integrada por membros da sociedade civil, deve ter poder de definir que dados não poderão ser gerados, armazenados e manipulados. Quarto, é necessário impedir que as plataformas ganhem dinheiro com a disseminação de conteúdos criminosos e notoriamente desinformativos. Caso tenham permitido o impulsionamento desses conteúdos, a multa deverá ser efetivamente desencorajadora. Quinto, toda rede de relacionamento online que se coloca como espaço público de conversação deve estar submetida a essas regras anteriores. Não dá para aceitar que uma plataforma de 3 milhões ou 5 milhões de usuários esteja fora das regras e somente aquelas que possuem mais de 10 milhões de usuários estejam subordinadas à legislação. Tal lógica europeia não serve, pois ela busca incentivar negócios que se baseiam na absurda espetacularização. Por fim, talvez devêssemos ouvir Shoshana Zuboff, que se convenceu que enquanto permitirmos a existência do modelo de negócios das plataformas poucas medidas surtirão efeito.
Referências bibliográficas
CHENEY-LIPPOLD, John. A new algorithmic identity: Soft biopolitics and the modulation of control. Theory, culture & society, v. 28, n. 6, p. 164-181, 2011.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.
SILVEIRA, Sergio Amadeu. Economia da intrusão e modulação na internet. Liinc em Revista, v. 12, n. 1, 2016.
STATISTA. Digital economy compass. April 2017.
VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, p. 13, 1996.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Editora Intrínseca, 2021.
Fonte da matéria: Espetacularização, velocidade e o negócio da desinformação – – https://www.comciencia.br/espetacularizacao-velocidade-e-o-negocio-da-desinformacao/
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