Matheus Pichonelli – O Banco Central zerou a expectativa de crescimento da economia para 2020. Em janeiro, falava-se em alta de 2,2% do PIB, que compensaria o soluço de 1,1% do ano anterior.
Tudo mudou com o coronavírus.
Confirmada a projeção, para muitos até otimista, historiadores do futuro poderão contar para os netos que os anos 2010 foram marcados como uma década perdida. E não só no aspecto econômico, que viu tanto o nacional-desenvolvimentismo petista quanto o consórcio liberal tucano-peemedebista falharem em apontar caminhos, deixando a porta escancarada para o extremismo bolsonarista – hoje infectado pelos desdobramentos da covid-19.
Não se pode dizer que não eram anos promissores.
Quem testemunhou a virada de 2010 para 2011 ainda se lembra da expectativa por uma nova Belle Époque. A explosão de smartphones e outros equipamentos eletrônicos prometiam ampliar o acesso à informação e, consequentemente, ao conhecimento. Desafiados, especialistas de diversas áreas seriam forçados a sair dos conclaves, dividir poderes e elaborar respostas para além dos muros acadêmicos.
Este seria o tempo em que qualquer um poderia produzir flagrantes, informações e novas perspectivas que nem sempre estavam no radar dos veículos tradicionais.
Todos pareciam fadados a dialogar de igual para igual.
Quem não se conectasse com as ruas seria fatalmente engolido pela história. A começar pelas forças políticas dominantes.
Organizadas e dinamizadas pelas redes, as manifestações de junho de 2013 foram o primeiro sinal de desacerto entre expectativa e realidade daqueles anos. O Brasil estava prestes a receber os dois maiores espetáculos da Terra, a Copa do Mundo e a Olimpíada. Mas, longe das obras que prometiam, sem entregar, um novo desenho para as cidades, o cidadão comum não sabia como pagar a passagem de ônibus (àquela altura, a conversa do trem-bala já era piada). O direito à cidade se tornou, então, um ponto central das discussões que tinham tudo para enterrar as velhas oligarquias mancomunadas com os barões de sempre – dos transportes à construção civil.
Corta a cena. Com o tempo, as manifestações esfriaram. Ou melhor: mudaram o curso. Na década que prometia tanta liberdade, com discussões elaboradas sobre novos relacionamentos, a conversa agora versava sobre segurança. As cidades passavam por intervenções, controle, vigilância, garantias de leis e de ordem, prisões por porte de Pinho Sol. Cruzar as áreas militarizadas passou a ser risco de vida.
Veio a Copa. A Lava Jato. As prisões. Os esforços para encaixar uma narrativa complexa no didatismo de um powerpoint. O flerte com o simplismo das histórias sobre vilões e mocinhos que falavam em nome de Deus era tentador demais para não vingar.
Nossa década mais high-tech convivia, assim, não pacificamente, com os arremedos de Brasil Colônia com vocação medieval, que se encontravam nas prisões rebeladas de prisioneiros decapitados e agrupados em facções.
Nas ruas, os aplicativos que tornariam obsoletas profissões como a dos taxista atualizaram o software do novo escravismo, desregulado, precarizado e sem direito social.
Nas artes, a lista de desfalques eram faróis que se apagavam: David Bowie, Gabriel García Márquez, Oscar Niemeyer, Agnès Varda, Amy Whinehouse, Tomie Ohtake, Prince, João Gilberto, Belchior, Luiz Melodia, Aretha Franklin, Bibi Ferreira. Sem eles, passamos mais tempos da década em luto do que celebrando a chegada dos novos gênios. Os que ficaram se tornaram resistência, a ponto de obras como “Apesar de você”, de Chico Buarque, ganharem uma assustadora atualidade. E, aos 90, Elza Soares, cantora brasileira do último milênio, fez de “A Mulher do Fim do Mundo” o grito de uma nova geração.
No cinema estava o melhor retrato da nossa melancolia. “Bacurau” captou o espírito de uma época, em risco de ser lido no futuro como um último ato. Sob ataque, novos realizadores se perguntam hoje para onde ir. A cultura virou o pum do palhaço, diria a nova secretária.
Na polifonia das redes, venceu quem gritou mais. O tiozão do zap virou oráculo, espalhando em velocidade inédita idiotices comprovadas pelo primo do irmão do amigo. Os fatos passaram a ser triturados e torturados para caber em 120 caracteres. (Pergunta sincera: quem, nesta década, conseguiu encarar algum clássico da literatura? Quem, mesmo entre os formadores de opinião, somou mais tempo nas páginas dos livros do que em stories de Instagram?).
O tiozão do zap se descobriu uma multidão e uma força política. Elegeu seu representante-mor, que do alto do Planalto faz o jogo de terraplanistas, negacionistas e anticienficismos de todo tipo. Tem tanta certeza de que nunca vai errar que se dá ao direito de desdenhar as orientações de especialistas, como os da Organização Mundial da Saúde, uma sucata do tal globalismo.
Quem começou a década vendo empoderamento virar verbete, em defesa da ocupação dos espaços políticos pelas minorias historicamente marginalizadas, caso de Marielle Franco, vereadora negra assassinada em via pública, hoje precisa explicar os riscos da aventura autoritária de quem saca do coldre argumentos em defesa do AI-5 e outras ferraduras de supressão de direitos. É nesse caldo que o país fecha a década com mais de 3oo células neonazistas espalhadas por diversos estados.
Nas livrarias, que hoje agonizam, há um lembrete em forma de best-seller sobre como morrem as democracias. Ao menos por aqui, política mais do que nunca virou brincadeira de meninos. Alguém se importa?
Uma charge publicada pela revista “New Yorker” serve como resumo da década: incomodados pela distância entre o comandante e a tripulação, um passageiro do avião inicia a revolta se propondo a assumir o controle do voo. Estamos, neste momento, neste voo de amadores que tomaram os atalhos das redes e acreditaram estar preparados para a complexidade de um mundo em transformação permanente. Um mundo globalizado e hiperconectado que gira ao redor do Vale do Silício e achatou o alcance dos Estados nacionais.
A saída para a impotência foi a implosão dos acordos que criaram alguma estabilidade aos países da (hoje fragmentada) União Europeia. Agora é cada um por si. Quanto maior o calibre da arma, maior o poder de persuasão.
Ainda que mínima, a ideia de uma coletividade, mediada por partidos políticos ou organismos multilaterais, agora parece colidir com o contrassenso de hiperindivíduos de talentos medianos que usam a Assembleia Geral da ONU para atacar espantalhos inexistentes.
Quem encontrou um inimigo comum para justificar nossos fracassos inevitáveis hoje recolhe os cacos da frustração e do ressentimento pelas promessas não cumpridas. Pobre de quem acreditou no programa da TV, nas correntes de WhatsApp e nos livros de autoajuda (“Seja foda”, lembra? “Você é especial”).
Diferentemente da propaganda da década anterior, não somos como o atacante fora de forma que entrou na Copa desacreditado e fez os dois gols da final contra a Alemanha. A vida real e ordinária era, em vez disso, um 7 a 1 diário.
Ironia: sucessor do Ronaldo Fenômeno, craque das décadas de 1990 e 2000, Ronaldinho Gaúcho teria 34 anos na Copa de 2014 e poderia liderar uma geração promissora que se perdeu. Mas ele se aposentou precocemente. E pode terminar a década na prisão.
As referências ruíram, uma a uma, e dão o tom da nota melancólica de uma década que encurtou distâncias e agora nos obriga a viver confinados, com medo do contato social, relativizando a vida do lado mais fraco da história e que pode sucumbir ao darwinismo social defendido pelo presidente e pelos donos do dinheiro. Quantas casas alguém precisa voltar na história quando o presidente de um banco público se sente à vontade para dizer que a vida não tem valor infinito?
Não vão faltar desafios para quem estiver vivo para ver a nova década. A restauração da esperança será o maior deles.
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