Economia

O mundo está queimando, o capital também, e isso é bom – mas não para você

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Marília Moschkovich – A Covid-19 parece ter sido desenhada sob medida para a burguesia brasileira.

Quando comecei a escrever no Blog da Boitempo, diante do desmonte da educação pública, lembrei de uma reflexão importante no diálogo com amigos da economia política sobre crise, recuperação das taxas de lucro e reorganização do capital. Na minha coluna de 11 de junho de 2019, escrevi o seguinte:

“Tudo isso tem um sentido ainda mais amplo: recuperar – e de preferência aumentar – as taxas de lucro dos grandes especuladores do capital após a crise de 2008. Ouvi algumas vezes de economistas marxistas cujas análises respeito muito que a única crise do capitalismo parecida com a de 2008 em termos de magnitude e impacto é a de 1929. Como parte do processo de recuperação das taxas de lucro do mundo capitalista após a crise de 1929, houve uma guerra mundial, que serviu para queimar capital (literalmente, em muitos casos) e para retomar o lucro e o crescimento e desenvolver a indústria. […]

Já em 2008, com o estado avançado da tecnologia bélica, uma guerra nos moldes anteriores não seria possível. São possíveis, contudo, diversas guerras cotidianas, desastres não-naturais (como o ocorrido em Brumadinho), perseguição ideológica, enfim, novas cores para um novo tipo de fascismo que autoriza o extermínio e a exploração ainda mais extrema da classe trabalhadora. A educação menos autônoma faz parte desse quadro, articulando sua faceta ideológica e sua faceta econômica. O setor privado sequestra os sistemas públicos (além da educação, a saúde também, e aí temos nas mãos desses grupos todo o acesso a alimentos, saúde e bens simbólicos, ou seja, tudo o que é necessário para sobreviver e viver enquanto seres humanos) e com isso elimina parte de um custo, ganha controle e efetivamente ganha dinheiro […] Ao contrário do que a ficção liberal propaga, porém, não se trata de extinguir o Estado completamente – ele apenas passa a cumprir com exclusividade o seu papel por excelência no capitalismo, o de comitê de mediação e gerenciamento dos negócios privados.”

Esse processo parece ter ganho um contorno tão mais concreto quanto mais explícito com a pandemia da Covid-19, popularmente conhecida como coronavírus. Explica, também, por que o governo brasileiro de Jair Bolsonaro, na pessoa de seu ministro da Saúde, mudou a linha de atuação em poucos dias. Mandetta, que num primeiro momento até procurava alertar para a necessidade das medidas de contenção da pandemia, após ameaças do presidente passou a dizer que, basicamente, estarão esperando que as pessoas se contaminem até criar o chamado efeito de imunização coletiva, ou “imunidade de rebanho”, isto é, quando tanta gente já pegou o vírus e criou anticorpos para ele, que a transmissão é pífia. O que isso implica, na prática, é uma política de morte e de deixar morrer – deixar morrer, sempre, aqueles que menos importam para esses que fazem a gestão do Estado, ou seja, a classe trabalhadora e, dentro dela, em especial, as pessoas negras que, sabemos estatisticamente, já enfrentam as situações mais precárias de vida entre a nossa população.

Não à toa, todos os parcos pronunciamentos e medidas anunciadas desde que a pandemia se agravou no Brasil, tanto da parte do governo federal quanto da parte do governo estadual de São Paulo (estado onde moro e que é atualmente o maior foco de contágio da nova doença) reforçam os argumentos supostamente econômicos para as medidas. Não se ouve representante algum do governo dizer, ainda que de forma mentirosa ou populista, que há preocupação com as pessoas, com a saúde, com a vida. Em meio a uma crise econômica brutal no país que compõe uma nova onda da crise global iniciada em 2008, o Estado burguês se beneficia de um acontecimento que pode ser distorcido para que soe como um fenômeno natural, fora de seu alcance, e que de quebra varre – chutando baixo – meio milhão de pessoas de uma vez só no Brasil.

Como bônus, já que vinha sendo realizada justamente uma política de desmonte da ciência pública, do SUS e da educação pública como um todo, a emergência (tanto a crise econômica quanto a pandemia) será o pretexto perfeito para transferir ainda mais dinheiro público para empresas privadas, a exemplo do que está sendo feito nos países do centro do capitalismo. Em um dia, por exemplo, Trump queimou cerca de 1 trilhão de dólares que duraram meia hora no sistema financeiro – se alguém acha que tanto os economistas quanto Trump não esperavam que isso acontecesse, sugiro voltar três casas e procurar estudar novamente como funcionam as crises do sistema capitalista, em especial no que diz respeito ao que chamamos de “queimar capital” (a melhor referência, na minha modesta opinião de não-especialista, ainda é Marx, e as análises econômicas marxistas sobre o contexto da crise de 1929 e a segunda guerra mundial). Na França e na Alemanha, uma série de auxílios para as empresas foram anunciados, desde liberação de dinheiro até suspensão de pagamento de contas de água, gás e luz – em ambos os países, porém, diferente dos Estados Unidos e do Brasil, houve diretivas bastante firmes impedindo as próprias empresas de mandarem os funcionários normalmente ao trabalho, na maioria dos casos (algumas empresas consideradas essenciais, como supermercados, seguem funcionando em sistemas de redução de danos). No Brasil, o governo autorizou as empresas a cortarem pela metade (!) o salário dos funcionários, e anunciou um auxílio de valor irrisório e dificílimo de conseguir pelos requisitos necessários para se ter acesso a ele, para complementar, em tese, essa perda. Aos mais de 38 milhões de trabalhadores e trabalhadoras informais e PJ, que constituem quase a metade da força de trabalho brasileira (cerca de 41% segundo os dados mais recentes do IBGE, de agosto de 2019), nada.

Há evidências bastante concretas de que o SARS-CoV-2 (vírus que responsável pela Covid-19) é uma mutação natural, o que para os biólogos evolucionistas mais antenados nas tendências do niilismo liberal pode significar que a sábia natureza encontrou uma forma de livrar o planeta da praga que o destrói (imagens de golfinhos nos canais de Veneza bem limpos, de diversos animais frequentando as cidades vazias e se alimentando normalmente, felizes e saltitantes). Por outro lado, há fartas evidências também de que a falta de controle de sua transmissão e contágio logo no início – diferente do que foi feito com outras novas doenças em outros momentos também mais recentes da história (SARS, MERS, etc.) – de natural talvez não tenha tanto, especialmente quando consideramos que, um pouco depois de sua explosão na China, começou uma tensão relativa ao preço do petróleo, em que disputaram diretamente EUA e Arábia Saudita.

No Brasil, lamentavelmente, a experiência concreta das pessoas tenderá a ser semelhante, penso, ao que narram sobre as guerras, num efeito bastante devastador, sobretudo mas não exclusivamente entre as pessoas mais pobres. Nós, um país cuja história e cultura são estruturadas por guerras, mas que teve pouco envolvimento direto nas guerras famosas com outros países, preferindo sempre fomentar a guerra interna. A Covid-19 parece ter sido desenhada sob medida para a burguesia brasileira. A nós, comuns, interrupção de trajetórias, fim de uma sensação de normalidade e, no entanto, a vida que tenta a todo custo seguir. “Alemanha entrou em guerra. À tarde fui nadar”, diz o diário de Franz Kafka no dia em que deflagrou-se a Segunda Guerra Mundial.

Mais ou menos um ano antes de ter escrito a coluna para este blog que citei no início do texto, não por acaso, o Museu Nacional queimava como agora queima o mundo, como agora queima a classe trabalhadora – que é, em última instância, no capitalismo, também capital. Como as análises de conjuntura mais dramáticas de 2013, o que escrevi na época parece também infelizmente cada vez mais ganhar corpo e forma, especialmente quando compreendemos o papel do nazismo na reestruturação econômica pós-1929 e o quanto ele foi inclusive “deixado de lado” para que crescesse já que seus efeitos eram política e economicamente desejáveis a muitos, ao menos num primeiro momento. Em setembro de 2018, escrevi:

“Austeridade significa, sempre, no capitalismo, austeridade para quem já não tem muito, para que possam ser mantidas ou elevadas as taxas de lucro de quem tem demais. Esse é o processo que estamos vendo: uma reconfiguração da maneira de organizar a produção e circulação de mercadorias e conhecimento globalmente. Como parte essencial dos passos necessários para recuperar as taxas de lucro de grandes empresas de atuação internacional e do capital financeiro após a crise de 2008, sem iniciar uma terceira e fatal guerra mundial. […]

Que um candidato abertamente simpático ao nazismo e ao fascismo esteja em segundo lugar nas pesquisas eleitorais brasileiras, não é surpresa. Que a desestruturação que estamos vivendo no Brasil esteja semelhante ao momento da Argentina tampouco. Que governos ultra liberais tenham sido eleitos em diversos países muitas vezes por “medo” de que a ultra-direita chegasse ao poder, nos últimos anos, também não.

Vocês acham que Hitler chegou ao poder como? Foi pelo sistema democrático alemão dos anos 1920/1930. Pelo apelo popular do anticomunismo e do medo de tudo frente ao cenário desolador pós-crise […] Com o apoio de tratados de diferentes governos — como o dos EUA — que acharam que era bom deixar ele crescer um pouco ali já que ele invadiria a União Soviética, ‘poupando’ os EUA de gastar recursos com isso. Interesse ideológico e econômico.

Tem gente que sai ganhando com o incêndio desta noite. Sai ganhando com a destruição dos sistemas públicos. Sai ganhando com a miséria, com a fome, com a morte em série de tantas e tantos que já se somam. É o preço que pagamos por continuarmos neste sistema chamado capitalismo, em que o ponto central de toda atividade humana é o lucro de alguns. Para recuperar esses lucros, queima-se. Com bomba atômica, com fogo, com bombardeiros. Com prisões políticas, centros de tortura, ocupações militares em favelas.

Ao mesmo tempo sabemos, nós comunistas, socialistas, anarquistas, que momentos de interrupção e instabilidade podem ser transformadores também num bom sentido. O impensável acontece e o acontecimento é espaço de criação, do criativo, do novo também. A vida está interrompida e para que não seja continuada nos moldes de antes cabe apenas a nós, organizados e indignados, tomarmos coragem e força. O que temos a perder?

O mundo está queimando, o capital também, e isso é bom – mas não para você

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