ANDRÉ ANTUNES – Os jornais noticiaram o anúncio, pelo ministro da Fazenda interino, Henrique Meirelles, de um pacote de medidas para reduzir o déficit nas contas públicas do governo. No pacote, além da reforma da Previdência e outras medidas que afetam diretamente o financiamento de direitos sociais, como a educação e a saúde, está prevista uma flexibilização dos direitos do trabalho para permitir que os acordos coletivos entre sindicatos e patrões se sobreponham ao que diz a legislação trabalhista.
Além disso, o governo provisório se articula para garantir a aprovação do projeto que regulamenta a terceirização, aprovado na Câmara dos Deputados no ano passado, que inclui as chamadas atividades-fim das empresas. O sociólogo Ricardo Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas, defende, nesta entrevista, que tais medidas significam uma demolição dos direitos do trabalho no Brasil.
Segundo ele, essa agenda, que representa os interesses de entidades do empresariado como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), um dos polos de sustentação do governo provisório de Temer, aprofunda no Brasil um processo que ele chama de precarização estrutural do trabalho, que afeta os trabalhadores em um nível global. A partir de exemplos de vários países, o sociólogo desconstrói o argumento de ser preciso flexibilizar direitos trabalhistas para retomar o crescimento econômico e reduzir o desemprego. “Isso é uma falácia”, critica.
O governo provisório de Temer tem enfatizado a geração de novos postos de trabalho como uma de suas “bandeiras”. Uma das primeiras medidas adotadas pelo governo interino, logo após tomar posse, foi a apresentação da Medida Provisória 727, de criação do Programa de Parcerias de Investimento, com objetivo de “retirar entraves burocráticos e excessos de interferência do Estado” nas concessões para obras de infraestrutura para “atrair investimentos privados e gerar empregos”. Já se discute também uma reforma trabalhista, cujas principais medidas são a permissão para que acordos coletivos se sobreponham às leis trabalhistas e a aprovação do projeto que regulamenta a terceirização, hoje no Senado. Que efeitos essas medidas terão sobre o mercado de trabalho brasileiro?
O governo Temer, pelo conjunto das suas medidas, mostra que é um governo de restauração do pior conservadorismo existente na classe dominante brasileira. Nesse momento de crise econômica profunda, as várias frações dominantes – o capital financeiro, o agronegócio, os setores mais próximos da burguesia industrial – querem discutir quem vai perder menos com a crise. Há um consenso entre essas frações burguesas de que a crise tem de ser jogada em cima da classe trabalhadora. E é isso que o Temer está fazendo, legitimado pelo discurso de combate à corrupção. Ainda que a Dilma tenha feito tudo o que os capitais exigissem, com toda a política de ajuste fiscal do último ano, mostrou-se aquém daquilo que os capitais hoje querem.
O que os capitais querem?
Primeiro, um rebaixamento, que já vinha ocorrendo no governo Dilma, do salário brasileiro para padrões inferiores àqueles que vinham operando nos anos anteriores. Uma primeira medida evidente, num contexto de crise, é uma política econômica que rebaixe os salários. E nós já estamos percebendo pelo desemprego em massa, pela recessão, que o salário médio do trabalhador e da trabalhadora no Brasil vem declinando. O segundo elemento vital que o governo Temer tenta combinar é uma retomada do crescimento econômico, uma exigência de um polo importante de sustentação do governo Temer que é a burguesia ‘patológica’ de São Paulo, que exige esse crescimento.
E exige que ele se dê através daquilo que a CNI (Confederação Nacional da Indústria) já tinha dito dois anos atrás nas propostas em que exigia a flexibilização dos direitos do trabalho e a terceirização total. Portanto, na verdade, a proposta que o governo Temer está ensaiando é a tentativa de um aquecimento mínimo da economia com base na confiança do empresariado nas suas medidas e a execução de uma verdadeira demolição dos direitos do trabalho e dos direitos da previdência.
Você citou as frações da burguesia que apoiaram o impeachment. Dado o papel central da Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, nesse processo, é certo dizer que são setores da burguesia industrial que mais têm a ganhar com a agenda que o governo Temer agora busca implementar?
Não há uma antinomia profunda entre setor industrial e financeiro. Isso é um equívoco. A burguesia industrial, claro, não quer juros altos, mas há afinidades muito eletivas entre a burguesia industrial e a financeira. Frequentemente as atividades industriais estão sob o comando de núcleos financeiros, de grandes conglomerados financeiros. Há diferenças, é evidente. Um juro muito alto limita a pequena e média empresa, até mesmo a grande. Logo, o Temer vai tentar minimizar isso.
O fato de ele ter escolhido o Henrique Meirelles para o comando da Fazenda mostra que, em última instância, ele está no campo financeiro. O José Serra, que seria o candidato da burguesia industrial menos financista, foi escanteado para ministro das Relações Exteriores. O receituário é profundamente nefasto. A flexibilização da legislação trabalhista, a terceirização e a redução dos direitos de Previdência limpam o terreno para o empresariado prevalentemente industrial. E como o Meirelles tem um currículo muito qualificado junto ao sistema financeiro, o capital financeiro tem certeza absoluta de que não vai perder com ele. Agora: não há nenhuma garantia, nem mínima, de que tais medidas vão ter alguma efetividade.
Por quê?
Primeiro porque a crise econômica é profunda. Mundialmente, o cenário é muito adverso ao Brasil. O petróleo está em baixa, as commodities estão em baixa. A China crescendo a 6,5% ano é uma crise mundial, porque a China bombava a 12%. O preço das commodities despencou e os governos Lula e Dilma operaram uma regressão do Brasil à condição de país do agronegócio, produtor de commodities. Quando o petróleo, a soja e os minérios estão em alta, parece que vai bem. Mas no momento em que despencam… É uma tendência global e não há elementos que apontem para uma retomada de expansão significativa nem na China e nem no norte do mundo, nos países capitalistas centrais. Segundo, porque esse governo nasce politicamente muito fragilizado. É um governo absolutamente conservador e carcomido.
Há um número muito grande de ministros do Temer envolvidos em esquemas de corrupção, sem o mínimo de credibilidade. Quando não é a corrupção, é a mácula da brutalidade, como já é característica do ministro da Justiça (Alexandre de Moraes), que era secretário da Segurança Pública de São Paulo. Todo mundo sabe como ele agia aqui para reprimir movimentos sociais e populares. Além disso, é um ministério em que cada um fala uma coisa. Um ministro diz alguma coisa, outro diz outra. E, por fim, vai ter muita resistência social e política da periferia e da classe trabalhadora. Isso já está claro.
Mesmo setores muito descontentes com o governo Dilma, fora da órbita de influência do petismo, perceberam que o governo é ilegítimo e quer erguer-se com base na demolição dos direitos do trabalho e de um conjunto de elementos que não são propriamente econômicos, mas que mostram a faceta sua conservadora governo. Se puder, ele vai eliminar a política de cotas, vai iniciar um processo ainda maior de sangria das universidades públicas, visando à sua privatização. Vai privatizar o que resta do setor público brasileiro, vai privatizar tudo o que for passível de extração de lucro, de áreas do Estado que podem ser rentáveis. Vamos entrar num período de regressão de conquistas. Ou de debates como a questão do respeito à liberdade sexual, dos direitos de as mulheres definirem a condição em que elas optam pelo aborto.
Tudo que diz respeito aos direitos conquistados pelas mulheres, pelos negros, pelos homossexuais, pelo movimento das periferias, tende a sofrer uma forte regressão. O que vai acentuar as lutas sociais. O governo Temer não terá os chamados 100 dias que os governos têm para começarem a ser questionados. Portanto, para mim, suas medidas não levarão a crescimento econômico e não levarão à retomada do emprego, pela fragilidade econômica, pela fragilidade política do governo e pela resistência que já é visível no país inteiro.
Como avalia esse argumento de que para a economia voltar a crescer e gerar empregos é preciso flexibilizar a legislação trabalhista, que vem ganhando ímpeto sob o governo interino de Michel Temer?
Isto é uma falácia, é pura falsidade. Não há nenhum exemplo, em nenhum país do mundo, de que flexibilizando jornada de trabalho e terceirizando você aumenta o emprego. Se você tem três trabalhadores numa empresa, você pode demitir esses três e contratar dois terceirizados que vão trabalhar mais e receber menos. É como o caso alemão, para fazer um paralelo muito preliminar. A Alemanha vem dizendo nos últimos anos que com a crise europeia ela não reduziu seus níveis de emprego. Ela não reduziu os níveis de emprego, mas reduziu o trabalho masculino em tempo integral. Os homens foram buscar emprego nos trabalhos parciais, part-time, temporários. Eles continuam empregados, mas houve uma precarização do tipo de trabalho que realizam. Isto é um exemplo de como você mascara esses índices. O índice de desemprego não cresceu tão fortemente como na Espanha, em Portugal, nos Estados Unidos, mas você corroeu um pouco o emprego que foi típico da era fordista e taylorista, substituindo-o por um emprego da era da empresa flexível do nosso tempo.
Seria isto a precarização estrutural do trabalho?
Eu venho desenvolvendo essa tese desde 1995, quando publiquei o meu livro ‘Adeus ao Trabalho’, e ela se fortaleceu quando eu publiquei o meu livro ‘Sentidos do Trabalho’. Não é por acaso que esses dois livros nos últimos anos tiveram umas dez edições na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina, até na Índia. Por quê? Porque a precarização estrutural do trabalho avança em escala global.
Por exemplo, quando se tem a Foxconn na China com mais de 1,5 milhão trabalhadores montando produtos da Apple. É uma grande empresa de terceirização global, de capital taiwanês, mas que tem unidades produtivas na China, e que paga salários muito baixos. Há os níveis de exploração do trabalho em Bangladesh, há trabalhadores que saem do Vietnã para trabalhar na Coreia, em outros países, em busca de um salário melhor. Na Inglaterra há o contrato de zero hora, que inclusive já está presente no Brasil. Tem-se um trabalhador, especialmente no setor de serviços, que fica o dia inteiro com o celular na mão, conectado. Não vem nenhuma chamada. No dia seguinte ele recebe uma chamada e atende. Ele não recebe pelas 24 horas que ficou disponível. Ele recebe pela chamada.
Outro exemplo são os trabalhadores que prestam serviço para companhia de seguros: telefona-se para a companhia de seguros para consertar o telhado da sua casa. A empresa aciona um trabalhador com um contrato de zero hora, que atende o chamado e ganha pelo chamado que faz. Não tem relação contratual, entende? Os trabalhos estão mais pautados pela informalidade, pela flexibilização, pela terceirização, que no passado capitalista eram a exceção, e vêm se tornando a regra. E o trabalho formal, estável, contratado, regulado, com direitos, que era a regra durante o período taylorista e fordista, vem se tornando a exceção.
Isso vale para o trabalho dos bancos, para o trabalho dos médicos nos hospitais, dos professores. No ensino secundário e no ensino básico já é evidente. Em São Paulo, existe uma modalidade de professor substituto que vai para a escola e fica esperando faltar um professor. Se aquele professor falta ele entra e dá aquela aula. E esse professor ‘avulso’ vai torcer para faltar um professor, para ficar doente, para ele conseguir um emprego. Este é o cenário. É evidente que o governo Temer vem para implementar isso. O projeto que regulamenta a terceirização, o PL 130/2015, no Senado, cria a sociedade da terceirização total.
Diz-se que isso vai aumentar o emprego, mas se está na verdade destruindo os direitos do trabalho. Poderíamos ler como uma sociedade da escravidão moderna. Como é que os senhores de escravos compravam escravos no Brasil dos séculos 16 e 17? Negociando com grandes traficantes de escravos, comerciantes de força humana de trabalho que traziam os escravos da África para cá e vendiam aqui.
A relação de terceirização é uma relação de uma empresa que contrata junto a outra empresa escravos modernos, dos ultraqualificados aos menos qualificados. Isso não traz emprego; traz a aparência de uma minimização do desemprego no momento em que estamos com taxas de desemprego altíssimas.
E qual deveria ser o papel do Estado diante desse cenário de crise econômica e aumento das taxas de desemprego?
É impossível qualquer mudança no país com esse Parlamento. O Marx disse no ‘18 de Brumário de Luís Bonaparte’, com razão, que o Parlamento francês tinha chegado a um nível de degradação completo. Para a sorte do Marx ele não conheceu o parlamento brasileiro. Porque o nosso é uma caricatura grotesca. Seria preciso pensar outra institucionalidade completamente diferente. Isso só seria possível se os movimentos sociais e as esquerdas lato sensu tivessem entendido as rebeliões de Junho de 2013 e avançado naquela direção. Era preciso um processo de revoluções, entre aspas, um pouco como as do Oriente Médio. Só através de lutas sociais profundas vamos mudar o quadro. Porque não é uma questão de tomar o Estado e fazer algo diferente.
O PT tinha tudo para fazer uma gestão do Estado distinta. Não dá pra fazer uma gestão do Estado distinta se entramos na lógica do que o mundo financeiro exige. Quando o Lula fez em 2002 a Carta aos Brasileiros, disse: “vou fazer tudo o que vocês mandarem”. Seria preciso pensar num outro governo que se origine de lutas sociais profundas e que, num contexto em que a institucionalidade dominante é completamente devastada, contribua para o nascimento de algo novo. Nós no momento estamos um pouco distantes disso. Mas estávamos mais perto em 2013 e o mundo esteve mais perto entre 2008 e 2013, com os levantes na Espanha, Oriente Médio, o Occupy Wall Street (nos Estados Unidos).
E qual seria o papel das esquerdas?
Nós teríamos que ter um processo que resultasse de lutas sociais muito ampliadas, como se as esquerdas e os movimentos sociais compreendessem e se tornassem as herdeiras da rebelião de junho de 2013. Tragicamente, o que se passou é que as direitas politizaram e trouxeram as rebeliões para seu lado. Quem trouxe massa para a rua em 2014 e 2015 foram as direitas. Ela pegou aquilo que já existia em 2013 embrionariamente, a indignação com a corrupção, porque havia Copa do mundo e corrupção muito imbricadas com as transnacionais, politizou aquilo e abandonou o resto: transporte coletivo decente, escola pública, saúde pública.
As classes médias altas perderam uma parcela do privilégio que tinham. O pequeno ganho salarial, a inclusão no mercado interno, tudo limitadíssimo, fez com que a população pobre passasse a entrar um pouco mais nos aeroportos, no shopping, na universidade, e a classe média conservadora ficou enfurecida em ter que dividir seu espaço com os pobres, com os negros.
Mas a ascensão dos pobres, dos negros, não foram dádivas do governo, foram lutas sociais profundas que vêm sendo feitas pelo movimento feminista, movimento negro, LGBT, indígenas. São muitas lutas. Claro que o PT, que no seu passado remoto se originou das lutas sociais, em alguma medida foi caixa de ressonância desses setores. Mas 90% do que o PT fez foi representação dos grandes interesses dominantes. No entanto, esses 10% foram suficientes para deixar a classe média enfurecida. E a direita politizou aquelas lutas na direção da corrupção e do ódio ao governo Dilma, a Lula, ao PT e as esquerdas em geral. Por isso a classe média foi também golpista. Ela foi perfeitamente manipulada.
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