Agenda Bonifácio – Quase todos os dias os noticiários dão conta de casos de racismo nos quatro cantos do país. Em um deles, uma professora de uma escola na Zona Sul de São Paulo foi xingada por um aluno com uma palavra escrita na lista de chamada por conta da cor da sua pele. Também chamou atenção uma situação em que um influencer negro sofreu ameaças de uma vizinha do condomínio de luxo onde mora, em São Paulo, o que rendeu protestos contra ela em frente ao prédio. Um dos maiores cantores da música popular brasileira, Seu Jorge, sofreu ataques racistas em outubro, após um show realizado no Rio Grande do Sul, fato que deu bastante repercussão e está em investigação.
Isso não quer dizer, afirma o escritor e professor Jeferson Tenório, autor do livro O Avesso da Pele, que as práticas antirracistas não estejam surtindo efeito. “O Brasil sempre foi racista e sempre teve muita violência, talvez até mais do que hoje. O que está acontecendo é que está sendo filmado, denunciado. Então a gente tem essa sensação de que aumentou. Acho que não. Tem uma reação muito grande a essas práticas racistas e também esse movimento de denúncia, punição e educação. É um momento muito importante”, afirma.
Na mencionada publicação, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti, ele conta a história do Pedro, um jovem negro que depois de ter o pai, um professor de literatura, assassinado em uma abordagem policial, refaz os caminhos paternos para resgatar o passado da família. É um texto angustiante e forte, mas extremamente necessário para um país em que estas situações, infelizmente, ainda ocorrem. “É um livro que vai traçando essa radiografia, digamos assim, das questões raciais, educacionais e afetivas da população negra”, define o autor, que também fala para Agenda Bonifácio sobre a importância da Lei de Cotas, que está oficialmente em vigor há dez anos – ele foi um dos primeiros cotistas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) -, do momento da literatura negra no mercado editorial e o que representa, de fato, o Dia da Consciência Negra. Confira, a seguir, a entrevista completa:
São dez anos da Lei de Cotas no país e vi uma postagem sua dizendo que conseguiu se formar por causa dessa iniciativa. Qual a importância deste tipo de política pública?
A Lei de Cotas começou a ser implementada no Brasil no início do ano 2000, acho que na Universidade da Bahia, que foi a primeira. Depois ela foi ganhando outras universidades e, em 2008, veio para Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eu já era aluno, mas de outro curso, de bacharelado. Precisava fazer o vestibular novamente e foi então que em meados de 2007 começou uma movimentação muito grande para que as cotas fossem oficializadas e então em 2008 fiz o vestibular novamente, já pelo sistema de cotas. E em 2010 acabei me formando. Foram dez anos de graduação pela dificuldade que eu tinha de permanecer na universidade e esse momento de 2008 era importantíssimo porque ou pararia de estudar, porque tinha de trabalhar, ou mudava de curso. Essa entrada no curso de Licenciatura de Letras foi imprescindível para que me tornasse professor, depois escritor. Na minha vida fez uma diferença enorme e também o impacto político de me assumir como cotista e dizer o quanto isso foi importante para mim.
Houveram críticas a essa lei. Queria que me explicasse qual a importância que ela tem para população negra?
A gente tem de ver o sistema de cotas como um direito, uma reparação histórica. Sabemos que a escravidão no Brasil durou séculos, e que a população negra, essa pós-abolição, não teve nenhum tipo de ajuda, subsídio ou amparo pelo estado. A população negra demorou muito tempo para conseguir ter uma educação formal. Os negros não frequentavam escolas até a década de 1940, então o estado tem uma dívida muito grande com a população negra. Recentemente estive numa universidade nos Estados Unidos, na cidade de Nashville (Tennessee), e lá visitei uma universidade criada em 1873, para negros, onze anos depois do fim da escravidão aqui nos Estados Unidos (Tenório é professor-visitante da Brown University e está morando na cidade de Providence, no estado de Rhode Island). Isso já mostra uma diferença nesta preocupação de você já tentar reparar de algum modo, seja pela educação ou políticas públicas. É preciso compreender que o sistema de cotas é um direito que a população tem e precisa ser ampliado. Temos dez anos de cotas, muito pouco tempo, e na lei sugere que haja uma avaliação, depois de dez anos, mas não no sentido de terminar – por mais que haja discursos a favor disso. O que a gente tem de fazer é ajustar, tentar deixar mais próximo das pessoas que de fato necessitam e ampliar este programa para que mais pessoas negras e de comunidades periféricas entrem na universidade.
O seu livro, O Avesso da Pele, te rendeu o prêmio Jabuti. Para quem não leu, qual a principal mensagem do livro que o personagem traz algo de você?
O livro narra a história do Henrique, um professor de literatura negro de escolas públicas no Sul do país, e após uma abordagem policial ele acaba morrendo, é assassinado pela polícia. Uma realidade que, infelizmente, ainda faz parte do nosso cotidiano. E quem vai narrar a história é o filho dele, Pedro, um rapaz de 22 anos, estudante de arquitetura. Ele conta a história deste pai desde a infância até a vida adulta, falando sobre as relações afetivas dele, de como se tornou professor, e as situações de racismo que esse pai vai passando. É um livro que vai traçando essa radiografia, digamos assim, das questões raciais, educacionais e afetivas da população negra.
E o personagem traz sua vivência, tem algo de você?
Sempre traz. Não tem como escrever longe da nossa vivência seja qual for o livro. De fantasia, de realismo, sempre vai trazer algo do autor. Algumas coisas mais evidentes, outras nem tanto, então tem muito da minha experiência neste personagem. Sou professor também, trabalhei em escolas públicas no Rio Grande do Sul. Sofri muitas abordagens policiais também, mas há outras coisas muito diferentes de mim, até o modo que construi o personagem. Tem muita coisa da minha vivência, mas transformada em literatura, ficção. É engraçado que às vezes recebo pêsames da morte do meu pai, só que ele está vivo, é uma pessoa branca e não tem nada a ver com o Henrique, o personagem. Tem alguns empréstimos biográficos, mas é ficção mesmo.
Ao mesmo tempo que te trouxe coisas boas, há pouco também denunciou ter recebido ameaças por conta da publicação. Como tem lidado com isso?
A gente entrou num momento do país em que as pessoas se sentiram autorizadas a exercerem a sua vertente reacionária e fascista. Estamos vendo o reflexo disso. No início deste ano sofri ameaças em Salvador, quando ia visitar uma escola particular, e dei publicidade para isso, achei que foi importante. Houve a investigação, as pessoas estão sendo processadas e, desde então, não tive mais ameaças. O que acontece são esses xingamentos que, infelizmente, a gente acaba naturalizando. As ameaças cessaram, mas sei que outros foram também ameaçados como o Julián Fuks, mas isso é fruto de uma política de ultra-direita que se instalou no Brasil desde 2018.
Você acha que as redes sociais facilitam esse discurso de ódio, preconceituoso e racista?
É igual a tudo na vida. A gente pode usar o celular para coisas ruins ou boas. Me lembro de alguns anos atrás, meados dos anos 2000, quando os celulares começaram a ficar mais populares, a briga que nós, professores, tínhamos em sala de aula contra o aparelho. Tinha gente que queria banir. E, no fim, percebemos que era uma luta sem sentido e que era preciso levá-lo para dentro da sala de aula. A gente percebeu que a questão não era o aparelho, o veículo, mas uma questão ética em relação ao uso do aparelho. A gente deve investir muito mais numa questão ética, de alteridade, de discussão no sentido de ir contra ao discurso de ódio, porque as redes sociais não vão deixar de existir. Acho que temos de investir justamente nesse comportamento ético e entender que a dor do outro não pode ser indiferente a gente e que o discurso de ódio também se volta contra nós. É ilusão achar que se fizer esse tipo de discurso não vai acontecer nada com você. Essas coisas sempre acabam voltando.
Como vê o momento da literatura negra no país, inclusive pelo fato de Maria Firmina dos Reis ser a homenageada da Flip, em Paraty?
É um momento muito bom, de celebração certamente. Não lembro de outro momento da história do Brasil em que a gente tivesse essa celebração de tantos autores negros que estão sendo revistos, trazidos de novo à publico, como a própria Maria Firmina, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e autores mais contemporâneos como eu, Itamar Vieira Jr., Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Paulo Lins. Enfim, são tantos autores negros… Mas também olho com certa disconfiança porque se fomos analisar a história da literatura e ver quem são os autores da nossa vida escolar, veremos que estudamos muito pouco ainda da literatura negra e torço para que a gente tenham mais e mais autores negros surgindo, escrevendo e que nas próximas gerações a gente já tenha uma naturalização deles na literatura brasileira. Que não seja mais aquela coisa de que ‘ah, é o primeiro autor negro’, sair um pouco disso e naturalizar a presença deles.
Você acaba de lançar um livro também. Sobre o que é e pretende ir para Flip?
Esse livro na verdade é um relançamento. Foi o segundo que escrevi antes de O Avesso da Pele, é o Estela Sem Deus, que saiu primeiro por outra editora. Agora Companhia das Letras resolveu relançá-lo, com uma nova edição, e tem tido uma boa repercussão também. Não estarei na Flip porque dou aula na Brown University e não tenho como ir ao Brasil dar um pulinho e voltar (risos). Infelizmente não vou poder participar, mas espero estar em outras edições.
Ouvi uma entrevista que você deu para o podcast do Pedro Pacífico no final do ano passado que falou uma coisa muito interessante que: sempre procuram os negros para falar sobre o racismo, os indígenas para falar sobre os povos originários, e que você acha que a pauta de discussão, embora seja um ‘lugar de fala’, vai além disso. Achei interessante essa análise e gostaria que me falasse sobre isso também.
É interessante que a gente possa ser chamado para falar dessas questões, ocupando esse lugar de fala, mas é preciso tomar cuidado para que não sejamos reduzidos a ele. Podem me chamar para falar de Dostoievski também, não tem problema, é um autor que gosto. De Shakespeare, (Jean) Paul Sartre, da minha formação existencialista, mas acho importante que os eventos literários e esses espaços de prestígio observem o lugar de fala, mas tentando ter equilíbrio. Chamar mulheres para falar de literatura de autoria feminina é importante, mas não só. As mulheres podem falar sobre o que quiserem, as pessoas negras também e as pessoas brancas também podem falar sobre o racismo. Aliás, acho que devem ser antirracistas. A gente tem de ter o equilíbrio, nem tanto ao mar, nem tanto à terra, e entender que esses problemas são de todos, não só de negros, indígenas ou mulheres, é um problema social.
O movimento antirracista tem ganhado força nos últimos anos, mas inúmeros casos de racismo ainda são vistos, infelizmente. Você tem esperança de que o racismo acabe um dia aqui no país?
Preciso ter essa esperança, senão paro de escrever, fazer meus artigos. Mas não vejo que vá acontecer a curto prazo. Tenho muita esperança na nova geração, na do meu filho que tem 12 anos e já tem muita informação, sabe de muita coisa. A gente tem uma gramática antirracista circulando com mais faciliade hoje em dia. Se os casos de racismo estão aumentando é porque estão sendo registrados. O Brasil sempre foi racista e sempre teve muita violência, talvez até mais. O que está acontecendo hoje é que está sendo filmado, denunciado. Então a gente tem essa sensação de que aumentou. Acho que não. Tem uma reação muito grande a essas práticas racistas e também esse momento de denúncia, punição e educação. É um momento muito importante.
Você falou da questão da abolição da escravatura no país, que demorou e rendeu tudo que já sabemos. Como você definiria o papel do negro na construção da história do Brasil?
É o que sustenta a nação brasileira, a contribuição negra e indígena. O que a gente vive hoje é uma pós-abolição inconclusa e essas práticas racistas têm a ver com essa falta de conclusão de uma abolição que na prática ainda não aconteceu. Temos uma espécie de rascunho democrático. É inaceitável que a gente pense em democracia quando situações racistas ainda aconteçam com tanta frequência, e não só elas como também assassinatos de pessoas negras, todos os dias. O último relatório de segurança pública no Brasil, de 2021, mostra que mais de 6 mil pessoas foram mortas pelas mãos da polícia, dá uma média de 17 mortes por dia e deste número 84% são pessoas negras e 99% são homens. É uma taxa muito alta. A gente tem uma pena de morte estabelecida. Só não é institucionalizada, mas ela acontece. Prende, julga e executa em questão de segundos. Acho que a construção, a importância do povo negro para o Brasil é o que nos sustenta enquanto sociedade. E enquanto não houver esse reconhecimento vai ser muito difícil a gente conseguir avançar nas pautas raciais.
Estamos próximos do Dia da Consciência Negra. Como encara essa efeméride?
É sempre um dia de discussão, principalmente as pessoas que não concordam, falam que tem de ter ‘o dia da consciência humana’. É uma data, principalmente, de reflexão, de luta, não sei se comemorativa, mas é um momento que a sociedade para refletir. Essas datas são muito importantes como quando temos o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, embora saibamos que é uma data, mas faz com que quase que obrigatoriamente a gente pare para pensar. Isso é muito importante, foi criada pelo Oliveira Silveira, um poeta pensador gaúcho e que homenageio também no meu livro O Avesso da Pele. É um momento para parar, refletir e pensar em ações, a curto e longo prazo, para eliminar o racismo no Brasil.
São 200 anos da independência do país. Você acha que o Brasil é, de fato, independente?
Há uma independência, se for pensar no que seria tradicional, que não é mais pertencer na metrópole, mas temos práticas colonialistas que exercem muito poder nas relações institucionais, estruturais. Me parece que a gente tem uma independência, mas nem tanto. Temos ainda práticas colonialistas que são estruturais e estruturantes, infelizmente.
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