Educação

A EJA fora do lugar

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Caio Vinicius de Castro Gerbelli e Jaqueline Ventura – Devemos nos questionar sobre o porquê do não lugar da defesa da EJA, inclusive nas pautas e até nas mobilizações em defesa do Ensino Médio. Onde está situada essa modalidade no debate da educação na atualidade?

A Educação de Jovens e Adultos é um direito social garantido pela Constituição Federal de 1988 Essa frase deveria ser fixada, em letras garrafais, em todos os espaços educacionais Brasil afora. O direito de milhões de brasileiros e brasileiras à educação deve ser reafirmado como uma espécie de mantra ao longo de todos os níveis de formação, desde a educação infantil até a universitária. Em nossa sociedade, na qual o direito é constantemente negado, afirmar o óbvio sempre se faz necessário.

Ao mesmo tempo, nunca será demais dizer e redizer que são mais de 9 milhões de pessoas com 15 anos ou mais, ou cerca de 5,6% da população brasileira, que não estão alfabetizadas – sendo, em sua maioria, trabalhadoras e trabalhadores negros. Portanto, o processo de destruição da EJA é um projeto racista. Somam-se a isso, os mais de 46% de sujeitos de 25 anos ou mais que não concluíram o Ensino Médio, aproximadamente, 95 milhões de brasileiras e brasileiros.

Nessa imensa multidão, encontram-se jovens, adultos e idosos que, movidos por inúmeros motivos, buscam na EJA uma possiblidade de mudança, uma quebra da roda viva que reitera a negação do direito a uma vida justa. São essas pessoas que não se encontram inseridas nas discussões nacionais acerca do Novo Ensino Médio (NEM) – como de outras normatizações que estimulam a oferta da EJA por meio da Educação a Distância (EaD) –, que foram colocadas de lado, apartadas da realidade que lhes diz respeito.

Acerca das outras normatizações de políticas para a Educação de Jovens e Adultos prejudiciais à educação da classe trabalhadora, destaca-se a Resolução CNE/CEB nº 1, de 28 de maio de 2021, que redefiniu as Diretrizes Operacionais para a EJA, orientando seu alinhamento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com claro estímulo às possibilidades de oferta da EJA por meio da EaD. Destaca-se, também, o recente Parecer CNE/CEB nº 2, de 5 de outubro de 2023, que almeja a aprovação nacional e definitiva do projeto de EJA do Serviço Social da Indústria (SESI), em que 80% do curso do projeto Nova EJA pode ser realizado a distância.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI), conhecida como defensora da Reforma do Ensino Médio, pretende, ainda, amparada na Resolução nº 1/2021, expandir o seu modelo de EJA, não só dentro da Rede SESI Educação, mas, também, para as redes públicas de ensino, em parcerias firmadas com as secretarias de educação. Não é demais destacar que os Fóruns de EJA e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd) têm denunciado e reivindicado que o MEC assuma a condução de uma política nacional de EJA numa perspectiva de educação pública, gratuita e de qualidade social.

O debate instaurado sempre foi efervescente, desde a imposição da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, passando pela homologação da Base Nacional Comum Curricular[1], o que demonstra um campo intenso de disputas, com debates acalorados no Parlamento, notas técnicas das entidades públicas e instituições privadas, manifestações contrárias de coletivos estudantis, de profissionais da educação e de pesquisadores, greves e paralisações que sempre pautaram o processo de implementação dessa nova política, tanto a proposta original quanto a nova versão do NEM.

Diante da pressão pela revogação da reforma, o MEC elaborou, após consulta pública, o Projeto de Lei nº 5.230, de 2023. Seu posterior relator, o Deputado Mendonça Filho, produziu um substitutivo para a política de Ensino Médio que regride em vários aspectos a proposta inicial. Por isso, o substitutivo ao PL 5.230/2023 é um desastre para a educação pública.

Não há dúvidas de que a reforma prejudicará estudantes e profissionais da educação, com diminuição da carga horária obrigatória e redução de matérias básicas, permitindo parceria privada para cursos profissionais e Educação a Distância, e reafirmando inviáveis e falsários itinerários formativos. Além dos jovens que estudam nas redes públicas estaduais, perde-se, também, adultos e idosos estudantes da EJA, mais uma vez vilipendiados em seu direito de acesso à Educação Básica e de ter a possibilidade de almejar a universidade.

Diante dessa conjuntura, devemos nos questionar sobre qual é o lugar da Educação de Jovens e Adultos nesse debate. Ou, na verdade, o porquê do não lugar da defesa da EJA, inclusive nas pautas e até nas mobilizações em defesa do Ensino Médio. Onde essa modalidade está situada no debate da educação na atualidade?

A resposta é, novamente, a reafirmação do desdém para com o público da EJA. As únicas referências à EJA na Reforma do Ensino Médio dizem respeito à menção ao uso da EaD, abrindo novo espaço para o desmonte da modalidade presencial e incentivando uma certificação destituída de preceitos básicos para garantir uma educação plena. A reforma curricular no Novo Ensino Médio é perversa, ainda mais com a classe trabalhadora jovem, adulta ou idosa, pois amplia desigualdades escolares e aprofunda problemas históricos de não acesso à Educação Básica de qualidade para todos, isentando o Estado de parte de suas responsabilidades com tal população.

Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU), juntamente com os tribunais estaduais, publicou um estudo sobre a implementação do NEM nas unidades federativas. As conclusões são preocupantes e nos mostraram o equívoco da implementação dessa política. Todavia, a questão que gostaríamos de levantar é que não há nenhuma referência à Educação de Jovens e Adultos no documento todo. São 75 páginas de completa ausência da modalidade nas análises dos tribunais.

Essa situação nos provoca a pensar em algumas perguntas. Por que a EJA não aparece no relatório? Não há nenhum investimento público na modalidade ou o TCU considera o recurso disponibilizado tão parco que não merece análise? Consideram a EJA desnecessária? Essas perguntas nos fazem reativar certas memórias esquecidas e nos levam ao escárnio das declarações do Ex-Ministro da Educação do governo de Fernando Collor de Mello, José Goldemberg. Este, em 1991, declarou, em entrevista ao Jornal do Brasil, o que pensava sobre a EJA e seus sujeitos da seguinte forma:

O adulto analfabeto já encontrou seu lugar na sociedade. Pode não ser um bom lugar, mas é o seu lugar. Vai ser pedreiro, vigia de prédio, lixeiro ou seguir outras profissões que não exigem alfabetização. […] alfabetizar o adulto não vai mudar muito sua posição na sociedade e pode até perturbar. Vamos concentrar os nossos recursos em alfabetizar a população jovem. Fazemos isso agora, em dez anos desaparece o analfabetismo (Goldemberg, 1991, p. 4).

A EJA parece, reiteradamente, inapropriada ou reduzida à alfabetização (agora, o atual Ministro da Educação, Camilo Santana, fala em pacto pela alfabetização). O não lugar da EJA nas análises e nas próprias políticas públicas atuais, bem como nas denúncias sobre o imenso retrocesso que significa o Novo Ensino Médio brasileiro, é a reafirmação de um processo de exclusão dos sujeitos da EJA. É um abandono para com a vida destas pessoas. São esperanças que estão sendo perdidas intencionalmente.

Sintoma desse processo, além da ampliação da precarização da EJA através do incentivo atual à sua oferta em EaD, é a presença maciça de inscritos para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA). De 1 milhão e 683 mil inscritos, temos, aproximadamente, 1 milhão e 375 mil pessoas que se inscreveram para a certificação do Ensino Médio. Vale destacar que, do total de inscritos, 56% são mulheres e 62% são negros.

Isso significa que temos mais sujeitos prestando um processo de certificação do que matriculados em sistemas públicos de ensino, um total de 1 milhão e 82 mil. O cenário que se configura é a acentuação do processo de desmonte da Educação de Jovens e Adultos, que empurra os estudantes para fora das ofertas realizadas sob a responsabilidade das redes de ensino, resultando no aumento da escolaridade através de uma certificação vazia, que eleva o nível de instrução proveniente de exame, mas que não possibilita o aumento do tempo escolar, os processos educacionais e as reais possibilidades do acesso ao ensino superior. Esse cenário, novamente, aponta para um caminho de arrasamento da EJA e de negação do direito constitucional à educação.

É urgente estancar a redução de matrículas da Educação de Jovens e Adultos nas redes públicas no país e exigir uma política nacional de escolarização no âmbito da EJA. Para tal, urge revogar a Lei nº 13.415/2017, que aborda a Reforma do Ensino Médio, a BNCC e a Resolução CNE/CEB nº 1/2021, sobre as Diretrizes Operacionais da EJA.

Essas normatizações, que se fundamentam, cada vez mais, atreladas à queda acintosa de investimento na modalidade, resultam no desenvolvimento de políticas ineficazes que são implementadas pelos estados. A redução da oferta pública presencial e a concretização de um não lugar no debate e nos discursos das autoridades é maliciosa, pois o interesse não se dá pela construção de uma política pública de qualidade, mas sim pela sua destruição.

A formulação de políticas para a EJA vem sendo negligenciada nos últimos anos. Os movimentos sociais pela educação têm se perguntado: onde está a Política pública nacional de EJA do atual Ministério da Educação? Não há vontade política do governo federal para que o MEC reconheça celeremente o direito à Educação Básica pública para todas as pessoas em qualquer idade? Não podemos retroceder ainda mais.

Por fim, é fundamental fazer referência aos Fóruns de EJA do Brasil, que se colocaram na linha de frente do debate e na resistência em prol de uma Educação de Jovens e Adultos de qualidade e emancipadora. Fruto disso é a participação ativa em mobilizações pelo reconhecimento de que a EJA é direito[2]. Os Fóruns de EJA do Brasil encaminharam proposição contrária ao Novo Ensino Médio na consulta pública realizada pelo MEC, posicionando-se pela revogação da Lei nº 13.415/2017.

Os Fóruns de Educação de Jovens e Adultos demonstraram força e engajamento ao participarem ativamente da audiência pública na Câmara Federal, realizada em 12 de junho de 2023. Durante o evento, estiveram presentes representantes de todo o Brasil, inclusive com a participação de muitos estudantes, oportunizando a denúncia dos desafios da Educação de Jovens e Adultos hoje e a inserção da realidade de tantos brasileiros na pauta de discussões da Câmara Federal. Como desdobramento, está sendo requerida a criação de uma “Frente Parlamentar mista em defesa da Educação de Jovens e Adultos (EJA)”, perante o Congresso Nacional, dependendo da assinatura de mais alguns Deputados e Senadores[3].

Todavia, é notório que a EJA precisa ser assumida pela política de educação do MEC com maior primazia e fincar lugar no campo educacional como reivindicam os movimentos de luta pelo direito à educação. Há que se assumir com determinação que é urgente o apoio dos coletivos – entidades e de todos os movimentos – na mobilização em defesa da Educação de Jovens e Adultos trabalhadores.

Caio Vinicius de Castro Gerbelli é professor de História na Educação de Jovens e Adultos de Santo André/SP. Mestre em História pela Unifesp e Especialista em PROEJA pelo IFSP. Militante do Fórum Paulista de EJA e membro do Comitê São Paulo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Jaqueline Ventura é Pedagoga. Mestra e Doutora em Educação. Professora de Educação de Jovens e Adultos da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e Militante do Fórum EJA/RJ

[1] Aliás, é notório o não lugar da EJA na BNCC. A modalidade não consta na proposta norteadora dos currículos da BNCC, sendo evidente que, tal como foi elaborada, a BNCC não é adequada ao público da EJA.

[2] A esse respeito, foi realizada uma campanha nacional, a #Revoga CNE 1/2021, pela revogação da Resolução CNE/CEB nº 1/2021 (Brasil, 2021), de alinhamento da EJA à BNCC. Atualmente, o movimento dos Fóruns de EJA, com o apoio do Grupo de Trabalho (GT) Educação de Pessoas Jovens e Adultas, da ANPEd, está mobilizando a população e colhendo assinaturas para os abaixo-assinados a seguir. A propósito, convidamos todos a assinar a Petição Pública pela revogação da Resolução CNE/CEB nº 1/2021, no link https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR136187, e também o Abaixo-assinado pela revogação da mesma resolução, que alinha a EJA à BNCC, no link  https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeciWaj51y2ingXjL2JkdMFoEFVAfkjPis9z07oNrYbL59RmQ/viewform.

[3] Os links para acessar o vídeo da Audiência Pública e para as assinaturas dos Deputados estão disponíveis no site http://forumeja.org.br/.

Fonte da matéria: A EJA fora do lugar – https://diplomatique.org.br/eja-educacao-jovens-adultos/

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