Sociedade

A classe trabalhadora e sua nova identidade evangélica

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ANGELICA TOSTES – É preciso colocar o machado sobre a raiz, como os Evangelhos nos ensinam, e construir resistências frente às várias facetas do capitalismo.

A constatação de que a classe trabalhadora é evangélica não é novidade: basta analisar dados demográficos recentes. Em 1990, o Censo do IBGE indicava que 9% da população frequentava igrejas pentecostais. Esse número aumentou para 15,4% em 2000 e alcançou 22,2% em 2010.

Os evangélicos, especialmente os pentecostais, compõem a maioria da população de baixa renda. Aproximadamente 63,7% deles ganham até um salário mínimo, e 28,0% recebem entre um e três salários. No que diz respeito à educação, 42,3% das pessoas com 15 anos ou mais possuem ensino fundamental incompleto, e 6,2% são analfabetas. Em termos étnicos, 57,3% dos pentecostais são pretos e pardos, enquanto 42,6% são brancos, tornando-os a religião com maior representatividade negra no país.

O Datafolha no início de 2020, estimou-se que os evangélicos já representavam 31% da população, reforçando também o que o último censo apontou, que o perfil típico dos evangélicos, são pessoas negras e de baixa renda. A pesquisa ressalta que a maioria significativa dentro desses grupos é composta por mulheres, estabelecendo assim uma correlação entre a fé evangélica, gênero, raça e classe.

Com a crise econômica e social no final dos anos 70,  a flexibilização do trabalho, o declínio da indústria nas décadas seguintes e o avanço da religião evangélica nos territórios periféricos podemos observar que a identidade de classe foi se esmaecendo gradativamente. Uma das razões é que o espaço de organização de vida e busca de direitos não é mais o sindicato, partido ou organizações sociais, mas sim as igrejas evangélicas, que em grande parte de sua teologia, bebe das ideologias neoliberais que individualizam o sujeito, “retirando a perspectiva coletiva e de classe que as teologias libertadoras propunham nas décadas anteriores”, como pontua a pesquisadora Delana Corazza, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. A relação dos evangélicos com a dimensão de classe encontra os ecos teológicos pentecostais a partir de dois prismas, segundo Rafael Rodrigues da Costa, o pentecostalismo clássico vai justificar pela teologia da providência, ou seja como parte da jornada do fiel lidar com as opressões e dificuldades, a outra, mais vinculada ao neopentecostalismo, é enxergar dimensão de classe como um efeito de uma maldição, culpabilizando o fiel da sua condição de classe.

A Fundação Perseu Abramo, em 2017, lançou o resultado da pesquisa Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo, e um dos pontos coletados nas entrevistas realizadas é que a cisão entre ‘classe trabalhadora’ e burguesia não perpassa pelo imaginário dos entrevistados/as. Por exemplo, há uma percepção de que “trabalhador” e “patrão” são distintos, porém existe uma ausência do discurso de exploração e também, apesar da renda e ocupação, os/as entrevistados/as se auto identificam como classe média, pois a ideia de pobreza é associada à falta de moradia e comida.  Ainda nessa pesquisa, já encontramos o discurso do empreendedorismo como alternativa a alcançar uma vida digna e direitos, então, são trabalhadores informais que não se enxergam como classe trabalhadora e se auto-definem como empreendedores.

Leonardo Fontes (2021) aponta, na pesquisa realizada nos bairros periféricos e empobrecidos de Jd. Ângela e Brasilândia, em São Paulo,  que o ser “trabalhador” não é algo mais almejado pelas periferias urbanas, mas sim o sonho de ser empreendedor, a carteira assinada já não é mais atrativa e o discurso do “seja você o seu patrão”, “faça você mesmo”, é presente entre os moradores. Essa mudança reflete nas propostas sociais e teológicas das igrejas, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus oferece cursos de empreendedorismo, e diversas outras igrejas têm promovido encontros de empreendedores cristãos, feiras, projetos para fomentar a temática, ou até mesmo os tidos como pastores coaches.

Observo que entre os evangélicos progressistas pouco se tem abordado sobre o pilar da classe na tríade da interseccionalidade, como Vijay Prashad disse por trás das múltiplas crises, está o capitalismo. É importante nos darmos conta que o fundamentalismo religioso, o qual combatemos com nossas teologias da libertação, é fruto do capitalismo, como uma ferramenta de controle e manutenção do poder. A teóloga Nancy Cardoso nos provoca dizendo: “Há quem já cansou de falar de classe social, luta de classes. Então está bem! Diga de outra maneira. Mas o que nós vivemos é uma realidade extremamente desigual, com acesso extremamente desigual, uma distribuição de renda e oportunidades extremamente desigual. Chame isso como quiser, eu chamo isso de luta de classes. Chamo isso de uma elite no poder, que se apropria, discrimina, silencia. Isso explica a sociedade onde vivemos. Na luta da terra, na cidade… Sem esse vetor eu não consigo explicar a realidade..”

O teólogo Joerg Rieger, em seu livro Theoloy in the Capitalocene: Ecology, Identity, Class and Solidarity (Teologia no Capitaloceno: Ecologia, Identidade, Classe e Solidariedade, Fortress Press, 2022) aponta, que as relações de classe tem importantes implicações no agenciamento político das pessoas, nas relações pessoais e comunitárias, nas relações entre a comunidade de fé e até mesmo nas dimensões teológicas e religiosas. Inclusive, as imagens que os fiéis tem de Deus são transpassadas por essa relação de poder e de classe. Como Nancy Cardoso destaca: sem o vetor da classe, não conseguiremos explicar o chão que pisamos.

Tendo isso em vista, é muito importante pensar um trabalho teológico popular que construa um processo de reconhecimento de classe e organização popular dentro das igrejas e periferias dos grandes centros urbanos. Não podemos estar à parte da luta de classes quando estamos disputando as narrativas teológicas fundamentalistas, é preciso colocar o machado sobre a raiz, como os Evangelhos nos ensinam, e construir resistências frente às várias facetas do capitalismo que potencializa as tantas outras opressões que classe trabalhadora sofre.

Fonte da matéria: A classe trabalhadora e sua nova identidade evangélica – Diálogos da Fé – CartaCapital – https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-classe-trabalhadora-e-sua-nova-identidade-evangelica/

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