Geografia

Um olhar da China sobre o mundo

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Tricontinental – A China tem despertado interesse de governos, empresas e estudiosos em todo o mundo, seja por seus feitos internos, como o rápido avanço industrial e tecnológico e a erradicação da pobreza, seja pelos efeitos que seu desenvolvimento pode gerar em outros países. O fato que não se pode negar é que a República Popular da China se tornou uma potência econômica, colocando em prática seu projeto socialista, e abriu uma série de disputas comerciais, tecnológicas e financeiras com os Estados Unidos, que sentem sua hegemonia ameaçada pelo avanço da influência chinesa no mundo. A ascensão da China nas últimas décadas é fator essencial para compreender as transformações geopolíticas em curso.

Nesse contexto, um aspecto importante para entender este fenômeno é saber quais são as peculiaridades das políticas de desenvolvimento da China e quais são as principais disputas que os EUA e o gigante asiático vem travando atualmente. O que essa nova reconfiguração global pode acarretar para o Brasil, em particular, e para os outros países da região da América Latina e do Caribe, historicamente uma área de grande influência dos Estados Unidos? Quais os limites, desafios e oportunidades de ter a China como maior parceiro comercial? Esses são alguns dos questionamentos que guiam a pesquisa sobre a China, levada a cabo pelo escritório Brasil do Instituto Tricontinental.

Para nos acercar desse debate conversamos com o pesquisador Rogério Faleiros, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que atualmente desenvolve seu pós-doutoramento na Lingnan University, Hong Kong, China, sob orientação da Professora Lau Kin Chi, com o tema Desenvolvimento Econômico, Políticas Públicas e Pobreza.

A política de desenvolvimento atual da China tem dado mais atenção à distribuição de renda e à diminuição da desigualdade. Quais são os efeitos econômicos e sociais em termos globais dessa nova orientação da política?

A resposta para essa questão requer antes de qualquer coisa uma discussão sobre a desigualdade social na China. Porque o processo que o Deng Xiaoping denominou de socialismo com características chinesas pressupõe uma aproximação com o mercado e com o capitalismo, e esse processo pela sua própria natureza gerou desigualdades na sociedade chinesa, muitas das quais vigentes até os dias de hoje. Eu estou me referindo basicamente a dois tipos de desigualdade: a desigualdade urbana vs desigualdade rural e a desigualdade intrarregional. A China tem regiões muito desenvolvidas, como Xangai e Pequim, e outras regiões que não alcançaram o mesmo dinamismo econômico, como a Província de Hunan.

Tem um dado que é interessante: em 1978, quando o Deng Xiaoping iniciou as reformas – a chamada abertura econômica -, 10% dos chineses mais ricos detinham 27% da riqueza do país, e os 50% mais pobres também detinham 27% da riqueza do país. Em 2015, 10% dos mais ricos detinham 41% da riqueza e os 50% mais pobres detinham 15% da riqueza. Em uma trajetória de longo prazo, foi um processo de concentração de renda. Por outro lado, segundo a pesquisa da Isis Pares Maia, 850 milhões de pessoas deixaram a pobreza na China. E aí eu estou considerando como pobreza aquelas pessoas que, segundo o Banco Mundial, convivem com menos de 2,30 dólares por dia. Embora o processo incida no aumento da desigualdade, pois há multimilionários chineses que já representam uma boa parte dos milionários e bilionários do mundo, ele é acompanhado por um outro processo, o de inclusão. A pesquisadora Isis indica que se trata da maior inclusão realizada em toda a história. Além disso, há também o fato de que o percentual de pessoas com acesso à água potável, à eletricidade, a algum tipo de estrutura tecnológica também aumentou significativamente na China. A classe média chinesa, por exemplo, é composta por cerca de 250 milhões de pessoas. Isso é mais do que um Brasil. Nossa população é estimada em torno de 200 a 210 milhões de pessoas, então é uma referência digna de nota.

A inclusão dessas pessoas foi acompanhada por um processo de aumento da renda per capita dos chineses. A gente está falando de uma população de aproximadamente 1,4 bilhão de pessoas, de modo que a China hoje se constitui um mercado que é importante para os capitalistas, para os empresários, para as grandes empresas em nível mundial. Hoje é difícil você imaginar uma grande empresa transnacional que não opere na China. Isso coloca a China no âmago do cálculo capitalista global. Sobretudo quando você pensa que de 1980 a 2010 a média mundial de crescimento anual foi de 2,82%, e nesse mesmo período a taxa média anual de crescimento da economia chinesa foi de 10,02%. A China cresceu a um ritmo quase cinco vezes maior do que a média global. A título de comparação, a média brasileira, no mesmo período, é de 2,81%. Agora, entre 1990 e 2010, o índice de Gini, que mede a desigualdade, elevou-se na China de 0,32 para 0,43. Nesse índice, quanto mais próximo de 0 menor a desigualdade, quanto mais próximo de 1 maior a desigualdade. São contradições que acompanham essa experiência chinesa nesses últimos 40 anos, que suscitam tantos debates, alguns críticos e outros favoráveis. O problema, portanto, pode ser visto de diferentes formas: eu reputo que é digno de nota o fato de que mais de 850 milhões de pessoas deixaram a pobreza. E quando a gente fala pobreza a gente tá falando da pobreza extrema que acompanhou a população chinesa em momentos tão dramáticos da sua história, como no grande salto adiante e na própria Revolução Cultural.

Outro elemento que vale a pena destacar são as políticas sociais voltadas para a mitigação da pobreza. É um processo de crescimento econômico de longo prazo notável, a renda per capita hoje do chinês é maior do que a brasileira, está em torno de 12 mil dólares, a nossa está por volta de 7 mil dólares. Reconhece-se que é um processo que inclui, mas gera desigualdades. O Partido Comunista, no âmbito da sua ação política, mantém uma série de políticas e programas voltados para o combate à desigualdade. São mais de 14 milhões de famílias no que eles chamam de assistência industrial; mais de 13 milhões de famílias no que eles chamam de assistência ao emprego; mais de 14 milhões de famílias com assistência à saúde; mais de 8 milhões de famílias com assistência à educação. E outras milhões em assistência à reconstrução de moradias, ao combate à pobreza, a pessoas com deficiência, ao combate à pobreza com ações ecológicas, combate à pobreza por renda de ativos e pelo desenvolvimento de novas atividades econômicas a partir do microcrédito.

Além dos programas sociais, a terra faz um papel de proteção social. Na China, a propriedade da terra é comunal. Não existe, ou existe parcialmente, o instrumento da propriedade privada da terra. Então, no limite, os chineses têm a possibilidade do retorno às suas regiões a partir do sistema milenar, o chamado Hukou, que é um controle de migrações internas. A terra garante também alguma proteção social. Isso é importante dizer porque num país como o nosso, por exemplo, num contexto de escassez, num contexto de crise generalizada, as pessoas passam fome literalmente. Lá ainda existe esse instrumento de retorno ao campo, retorno às suas vilas, que em algumas delas ainda se organizam dentro de sistemas populares, que em certo sentido oferece o anteparo à população chinesa no contexto das crises. Num país plenamente capitalista como o nosso, onde a propriedade da terra é muito concentrada, onde as pessoas foram se apropriando da posse da terra, é difícil de pensar numa estratégia parecida.

Dessas inúmeras assistências, a principal delas é o Dibao. O Dibao é uma espécie de bolsa família da China. Estou indo para lá justamente para entender o significado de um programa de transferência de renda numa experiência socialista.

Você falou da contradição do processo chinês que gera desigualdade. Quando eles fizeram a Revolução, quais reformas foram implementadas? Não foi feita reforma no sistema produtivo?

Na verdade, com a revolução de 1949, já em setembro de 1952 você tem a lei da reforma agrária. Esse primeiro momento foi um período de muitas dificuldades e alguns ajustes foram feitos potencializando uma característica comunal chinesa, que são as comunas populares. É um momento de vários ajustes, em que a China tinha que prover recursos e alimentação suficiente para uma população que já passava de um bilhão de pessoas, o que envolvia ampliar as forças produtivas, melhorar a tecnologia, garantir irrigação para um país em que cerca 1/3 do território é desértico, e defender a revolução do cenário internacional, notadamente no contexto da guerra da Coreia no início da década de 1950, em relação à pressão americana. Aliás, tem um mapa interessante que mostra a quantidade de bases americanas que cercam o território chinês, elas vão do Paquistão até o Japão e a Coreia. A China está contida por um cordão militar americano. Estou ressaltando isso só para a gente ter ideia de como era o desafio chinês daquele momento. Era muito difícil, foram feitos vários ajustes do ponto de vista da organização comunal popular e dos avanços das forças produtivas, como melhoria das técnicas de produção, do maquinário, na produção de ferro, algo muito importante para a industrialização. Muitas das indústrias chinesas surgem das comunas populares, assim como toda a política de saúde, educação e o que posso chamar de previdência, de aposentadoria. Estas últimas ainda ocorrem no âmbito das vilas, originárias ou derivadas das comunas. Esse contexto de 1949, até pelo menos o início dos anos 1970, é de muitas dificuldades para a população chinesa. Porque você não sai de um estado de miséria absoluta extrema e se torna a segunda maior economia do mundo sem sacrifícios. É importante dizer isso porque às vezes as pessoas infantilmente confundem socialismo com o paraíso. É muito difícil ser socialista, gerir aquilo que Deng Xiaoping chamava de dois sistemas, porque a população chinesa foi submetida a situações de cargas de trabalho extenuantes, fome extrema. É importante dizer isso porque muitas vezes os nossos militantes entendem que a experiência socialista, ou até comunista, não é acompanhada de contradições. O socialismo é feito de muitos desafios, você pega o caso soviético de uma nação semi feudal a uma potência que rivalizou com os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, a situação cubana, que a partir do processo revolucionário teve que conviver com uma série de embargos econômicos e carestias e limitações de toda ordem. As pessoas contrabandeavam penicilina para Cuba porque elas sequer tinham direito ao acesso à penicilina, que hoje é um medicamento tão consolidado entre nós. Os americanos não permitiam. Essas experiências são todas acompanhadas por sacrifícios, por desafios. Contudo, são experiências alternativas ao capitalismo, embora muitas delas tenham alguns elementos capitalistas, como a China. Se por um lado a China ainda tem a propriedade comunal da terra, por outro lado, a China tem quatro dos maiores 10 bancos mundiais. São mundos distintos coexistindo em interação naquele espaço.

A experiência das comunas populares foi muito rica, e em certo sentido preparou o terreno para o chamado sistema de responsabilidade familiar, que foi implementado por Deng Xiaoping a partir de 1978. Muitas vezes o Deng Xiaoping erroneamente recebe todos os méritos, particularmente dos liberais, dos capitalistas. Eles dizem: “o Deng foi o governante que abriu a China, foi o governante que preparou todo o sistema de modernização da agricultura e de modernização da indústria”. Só que esse argumento é uma meia verdade, porque muitos elementos haviam sido desenvolvidos a partir das comunas populares e a partir do governo Mao Tsé-Tung. A gente tem que entender que é um processo e que muito do que foi feito pelo Xiaoping possui raízes plantadas na época anterior.

Os números de crescimento econômico da China se destacam em relação ao resto do mundo e o poder de consumo da sociedade chinesa vem aumentando cada vez mais com o processo de inclusão social de milhões de famílias. Diante da gravidade da crise climática mundial, quais são as respostas que a China vem dando para essa questão? Podemos afirmar que a preocupação com o meio ambiente já é uma característica que integra a política de desenvolvimento da China?

A pergunta é muito pertinente. Eu acho que inclusive nós da esquerda demoramos algum tempo para incorporar as pautas ambientais às nossas preocupações. Em 1989 foi criada a lei de Proteção Ambiental na China, que estabeleceu os quatros principais princípios da governança: a coordenação da proteção ambiental; a prevenção da poluição; a responsabilização do poluidor e a importância da gestão ambiental. Isso está na pauta do processo de desenvolvimento econômico chinês e do Partido Comunista chinês há muito tempo. A partir dessa lei, você tem vários desdobramentos. Destaco dois discursos na cúpula do Partido Comunista chinês de 2013, em que Xi Jinping aborda de maneira muito enfática sobre a questão ambiental. Um dos discursos tem o seguinte título: Criar um meio ambiente melhor para uma China bela; e o outro o seguinte: Inaugurar uma nova era de ecocivilização socialista. Essas questões relacionadas ao meio ambiente já estão presentes, sobretudo nos planos quinquenais, que a cada cinco anos delimitam o planejamento de longo prazo daquela experiência. A China tem adotado, sim, uma postura ativa no que se refere a muitos protocolos internacionais. Na COP 15, ela assumiu o compromisso de reduzir entre 40% e 45% da emissão de carbono. Ela tem sido um país que tem instigado alguns protocolos de cooperação mútua. Entretanto, novamente, as contradições estão presentes. É claro que você tem grupos econômicos muito fortes ligados ainda a uma base poluidora. Eu estou falando do carvão, de termelétricas, de processos produtivos com um alto impacto ambiental. Não só no território chinês, mas naqueles países que compõem ali a órbita de nações exportadoras de matérias-primas para a China. O Brasil é uma delas.

A questão ambiental pode ser vista por dois prismas no que se refere à China. O primeiro é que de fato há uma crise ambiental instalada no planeta, é uma crise ambiental de esgotamento de matérias-primas que envolvem um conjunto de ações e o estabelecimento de uma nova governança no que se refere a questão; por outro lado os chineses também estão vendo nas energias renováveis, nas energias menos poluidoras, uma possibilidade de assumir a fronteira tecnológica. A matriz energética baseada no petróleo, nas termelétricas, no carbono são tecnologias controladas majoritariamente por outros países, particularmente pelos Estados Unidos. Então a questão ambiental é importante para a China e para o mundo, mas particularmente para a China. Primeiro, porque de fato há uma preocupação ambiental crescente naquele país. Inclusive o grupo que eu me vinculo lá na China é o movimento social da nova reconstrução rural chinesa, que defende uma agricultura agroecológica sustentável, inclusiva e é parte da experiência da pequena propriedade rural na China. Segundo, porque os chineses veem também na nova matriz energética das energias renováveis uma chance de assumir a dianteira do que se refere a isso. Observe por exemplo como os carros chineses têm chegado ao Brasil com muita força, os carros elétricos ou os carros híbridos (elétricos e a combustão). Olha como eles têm sido carros eficientes do ponto de vista de gerar menos carbono na atmosfera. Os chineses estão vendo como uma nova fronteira, como uma disruptiva, como processo de destruição criadora a la Schumpeter no qual eles podem efetivamente assumir a dianteira tecnológica notadamente da matriz energética. Não por acaso a questão dos semicondutores é tão importante.

Muitos analistas dizem que é difícil a China avançar em determinados setores como detentor da fronteira tecnológica, porque os EUA ainda controlam a base de muitas indústrias.  A China está próxima ou não de ter o controle dessa base industrial?

Ainda não. O grande gargalo é a questão dos semicondutores. Esse é o grande gargalo das cadeias internacionais de valor, como nós vimos na pandemia. Os itens dos carros, que envolvem tecnologias baseadas nos microchips, se tornaram escassos. Esses segredos industriais ainda estão muito concentrados e os americanos ainda detêm ao lado dos seus parceiros uma hegemonia considerável. Mas os chineses veem nessas alianças internacionais e na própria capacitação da sua população, mecanismos para avançar no controle de tecnologias industriais que ainda não detêm. A China é notória por ser um país que tem muitos estudantes fazendo graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado no exterior, e com compromisso de retornar ao país para o desenvolvimento científico tecnológico. Ainda é uma aposta de longo prazo.

Ainda há um gap muito grande que, como gostam de dizer os chineses, esse é o desafio que ficará para as próximas gerações, é um problema que ainda os chineses estão correndo atrás, a passos largos, mas ainda há uma distância significativa. O exemplo dos semicondutores exemplifica bem a situação. Por outro lado, as tecnologias 6G os chineses já estão mais nivelados. Por outro lado, a indústria farmacêutica, que é densamente tecnológica, não há nenhuma chinesa no rol das maiores. Ainda há alguns gaps significativos.

EUA e China vêm travando “guerras” comerciais e tecnológicas nos últimos anos.  Em que consistem essas disputas entre os dois países? Quais são os impactos para a economia mundial?

Há rivalidades, mas há também integração em alguns aspectos. Por exemplo, você tem empresas americanas produzindo na China. Eu tive a oportunidade de visitar, em 2012, em Chongqing, que é uma cidade do interior, uma fábrica da Ford com a Volvo. Essa fábrica estava produzindo automóveis para um mercado interno pulsante e amplo. Em troca, ocorria um processo de transferência tecnológica, o que os economistas chamam de catching up. Há guerras comerciais, guerras tecnológicas, mas há também interações.

De toda forma, eu acho que a principal guerra hoje é a guerra monetária e financeira. O grande projeto chinês é a desdolarização da economia mundial. Esse é o grande projeto. Se você parar para pensar, o fato de o dólar americano constituir reservas internacionais para os demais países no mundo, significa dizer que o mundo inteiro está financiando o déficit americano. E qual é a natureza e o principal elemento que impacta no déficit americano? São as despesas militares que os americanos usam para conter os seus inimigos. O que eu estou querendo dizer é que no fundo o mundo sustenta e financia as ações militares americanas.

Os chineses já identificaram isso e estão buscando alternativas, como a questão da guerra da Ucrânia, o fato de comercializarem barris de petróleo com a Rússia em Ren Min Bi, e dos russos terem reservas internacionais crescentes em Ren Min Bi, e o fato de a China estar se aproximando de uma série de nações estratégicas do ponto de vista geopolítico, como o Brasil. Tudo a partir daquele projeto que ficou conhecido como a Nova Rota da Seda, que é o estabelecimento de alguns parceiros estratégicos comerciais que possibilitam algum horizonte de desdolarização, que possam estabelecer tratados bilaterais, no qual o dólar não seja necessário. É muito difícil fazer isso porque esse é o verdadeiro poder americano, de emitir a moeda do mundo.

Os chineses estão buscando aproximações comerciais, novas tecnologias de compensação internacional, inclusive os acordos que o Lula trouxe assinado na bagagem nessa última viagem é um acordo que estabelece um sistema de compensação para além do SWIFT, que é o meio de compensação Internacional hoje utilizado no mundo. Eu passei por uma experiência há pouco tempo em que uma professora de Hong Kong estava aqui na nossa universidade e ela tinha uns recursos em Reais. Ela tinha uma pequena poupança e queria transferir para Hong Kong. É impossível, você tem que primeiro transferir reais em dólares pelos sistemas Swift para depois transferir dólares em dólar de Hong Kong. Então veja, o Swift é um sistema criado pelos Estados Unidos com apoio da Europa sediado a partir do banco da Bélgica, no qual todas as transações internacionais de transferência necessariamente têm que passar pelo dólar. Significa dizer que todos têm que ter dólar para negociar via Swift. Esse é um exemplo de como a hegemonia do dólar age e coaduna com isso, a importância da taxa de juros americana, que basicamente pauta a taxa de juros em escala mundial.

É claro que existe a guerra comercial e a guerra tecnológica. Ela se expressa, por exemplo,   na proibição da Huawei, que é uma grande corporação chinesa de tecnologia de celulares, de negociar livremente os seus aparelhos de tecnologia no mercado americano. Em contrapartida, o Google não funciona no território chinês. A China não tem YouTube, eles usam o Bilibili, eles desenvolveram uma plataforma de streaming própria. A Microsoft não funciona em território chinês. A não ser que você consiga ali definir um VPN. Essas guerras existem, elas são, como a gente diz lá no interior de São Paulo, briga de foice no escuro, mas a grande guerra é pela desdolarização. A China tem pressionado diversos parceiros na África para que os negócios sejam feitos em Ren Min Bi. Ainda é um processo embrionário para o qual os americanos torcem o nariz. Eles não aceitam sob hipótese nenhuma perder a posição de emissor da moeda global, pois é uma posição que confere muito poder, notadamente o militar. A maior integração entre os 5 erres, desejada pelos chineses, que são as moedas da Rússia, o Rubro, da China, o Ren Min Bi, do Brasil, o Real, da Índia, a Rupia e da África do Sul, o Rand faz a diplomacia chinesa ter como um dos principais objetivos estabelecer alternativas à hegemonia do dólar. A hegemonia do dólar e a hegemonia militar são a rigor a mesma coisa.

Qual o papel da América Latina e, especificamente, do Brasil na política comercial chinesa? Há espaço para os países da região saírem da condição de meros exportadores de produtos primários nessa relação?

A aproximação comercial entre China e os países latino-americanos é vista como uma espécie de solidariedade entre os povos do Sul Global, como uma solidariedade internacional contra o imperialismo. Em certo sentido, ok, mas os chineses procuram, sendo bem realista e bem franco, um bom negócio. Por exemplo, se é um bom negócio construir um porto em Itaqui, no Maranhão, para reduzir os custos operacionais da exportação de soja para a China, eles vão fazer.

Hoje, qual é o processo? Os caminhões saem do Mato Grosso ou do Mato Grosso do Sul, Goiás, vem até o porto de Vitória, aqui na minha cidade, que é o maior porto graneleiro do Brasil, senão um dos maiores do mundo, e daqui essas quantidades são embarcadas e tem que dar a volta no mundo.

Se os chineses tiverem uma base no Maranhão, estariam muito mais próximos do Canal do Panamá – inclusive discute-se a possibilidade de um novo canal, financiado por chineses para facilitar e reduzir os custos dessa transação.

Os chineses procuram investimentos naquilo que lhes é fundamental. A soja é fundamental, o minério de ferro é fundamental, o lítio é fundamental, as carnes são fundamentais. Os chineses cada vez consomem mais carne bovina, mais proteína de origem animal. Muitas das vezes, esse processo exportador necessita de uma certa atualização ou uma certa melhoria da infraestrutura existente com grandes investimentos, com parcerias público-privadas, com financiamento dos bancos chineses. Possivelmente, no futuro, com financiamento dos BRICS. A presença chinesa sempre é acompanhada de investimentos no sentido de melhoria da infraestrutura. Os africanos costumam dizer que a diferença da China para Inglaterra é que os ingleses chegavam lá e levavam diamantes embora; os chineses antes de levar os diamantes constroem o porto. Repetindo, esses investimentos são acompanhados por uma melhoria de infraestrutura e também alguma transferência de tecnologia, naquilo que não é o fundamental para os interesses chineses, que não é o core da inovação tecnológica como, por exemplo, os projetos aeroespaciais, que é o núcleo da tecnologia da informação 6G. Por outro lado, os chineses talvez não vejam com muita preocupação o fato de transferir tecnologia para a produção de automóveis a combustão, na medida em que eles estão mirando o automóvel elétrico. Talvez eles não vejam com muitos problemas a transferência tecnológica de eletroeletrônicos considerando que o padrão tecnológico já está em outro nível. Novamente, as contradições aparecem. Temos que ter sempre um certo espírito crítico em relação a isso porque aquilo que é essencial não é compartilhado. É importante reter isso porque, em certo sentido, a China precisa estar na fronteira tecnológica, eles precisam deter esse conhecimento e, mais do que isso, ela precisa deter um monopólio desse conhecimento para que possa rivalizar com o projeto americano. É importante dizer isso porque há benesses nessa aproximação, mas não ao ponto de romper com características históricas como a dependência e o subdesenvolvimento.

A solidariedade da China com seus parceiros do Sul Global ocorre de fato. Essa análise tem que ser acompanhada de um senso geopolítico muito aguçado. Os chineses vêm no Brasil, por exemplo, um espaço de contenção à hegemonia americana. Observe que as falas do presidente Lula são completamente diferentes das falas do Bolsonaro. Olha como o discurso já mudou, como o posicionamento global do Brasil se alterou. Essa política externa brasileira está lastreada no reconhecimento de que a China precisa do Brasil. A perspectiva dos governos Lula e Dilma foi retomada agora pelo Lula III. É claro que em termos efetivos ainda pouca coisa aconteceu, mas é um contexto que possibilita certas margens de negociação, que a nossa diplomacia, os nossos experts em relações internacionais, sempre souberam muito bem aproveitar. Mas a gente não pode deixar de considerar que estamos falando de um outro projeto hegemônico que está aí, que é o chinês.

Recentemente, Brasil e China assinaram 15 acordos comerciais. Como você avalia esses acordos?

Primeiramente, acho importante considerar que o Bolsonaro fechou todas as portas para a política internacional com a China. Levaram os chineses ao limite, pois adotou uma visão ideológica muito fechada, crua e brutalizada. Esse esforço de retomada do governo Lula III é necessário e aponta numa perspectiva que pode ser promissora. Alguns acordos são relevantes do ponto de vista, por exemplo, de destravar a nossa indústria espacial, destravar alguns setores de produção de tecnologia.

O memorando número 2 é o protocolo complementar sobre o desenvolvimento conjunto do Cebers-6, que é um satélite sino-brasileiro. Ele prevê um acordo de cooperação e aplicações pacíficas. Lembra que eu falei que no núcleo da coisa tecnológica a gente nunca chega? E o núcleo da coisa é o quê? Aplicação militar, é ali que está o suprassumo da inovação tecnológica e posteriormente aplicada ao uso civil. Mas veja bem: é promissor considerando que a nossa indústria de satélites de tecnologia espacial retrocedeu muitas décadas durante a gestão Bolsonaro, até pelo próprio sucateamento da máquina pública.

Entre esses 15 acordos, há um que é o memorando de entendimento entre o Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil e o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação da China, que é justamente um termo de cooperação entre tecnologias da informação e comunicação, semicondutores, internet das coisas, 5G e não a 6GG. Percebe? Como é que a gente nunca chega no núcleo da coisa tecnológica.

Há um que trata do entendimento sobre o fortalecimento da cooperação e investimentos na economia digital entre o Ministério do Comércio da República Popular da China e o Ministério do Desenvolvimento Industrial, Comércio e Serviços do Brasil. O outro aqui que eu acho interessante é o memorando sobre cooperação na área de finanças que envolve a troca de tecnologias na área fiscal e financeira e aquelas relacionadas à transparência. O Brasil tem uma das Receitas Federais mais tecnológicas do mundo. Olha que interessante, esse protocolo visa a troca tecnológica, no sentido de ampliação da governança da transparência entre os países, sendo que a transparência é um problema chinês. Eu estava pesquisando a questão do Dibao, que é o bolsa família chinês. Ele tem vários problemas sobre financiamento. Tem um financiamento do governo central e um financiamento das localidades, mas você não consegue identificar muito bem a composição, a remessa de recursos para onde vai o dinheiro. Isso é um problema na China, porque aquelas regiões que são mais alinhadas politicamente ou que são mais estratégicas, elas acabam recebendo uma quantidade maior de recursos.

Outro memorando que eu destaco aqui é também na área de cooperação, informação e comunicação, que envolve Big Data. Tudo aquilo que está por trás de escritório de dados, cidades inteligentes, inteligência artificial, está nesse acordo, que pode de alguma maneira potencializar a nossa indústria mais relacionada à ciência da informação e comunicação.

A área de comunicação foi tema de mais de um memorando. Nesse que vou mencionar, não sei se para o bem ou para o mal. A coprodução de programas televisivos, respeitando-se a cultura local, com financiamento das agências chinesas e das agências brasileiras, ou seja, os chineses entenderam que a guerra também se trava no espectro comunicacional e midiático. Eles já entenderam que paira sobre o Brasil uma propaganda ocidental, uma cultura do tipo American way of life muito profunda, que em certo sentido sataniza a experiência chinesa ou a experiência socialista. A China entendeu a necessidade de uma contracultura. Foi um acordo que não foi muito noticiado, mas é significativo.

Tem um outro também muito significativo, que é o memorando de entendimento entre o grupo de mídia da China e a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República do Brasil. Nesse ponto, o destaque é a questão das tecnologias de rastreamento das fake news. Ambas as partes estão dispostas a organizar conjuntamente eventos para promover o desenvolvimento das relações sino-brasileiras. A Secretaria de Relações Institucionais auxiliará na promoção, na comunidade brasileira, de conteúdo audiovisual produzido pela China, que refletem os laços políticos, econômicos, culturais e sociais entre a China e o Brasil. Vejam como que a questão da disputa hegemônica está se manifestando no nível midiático. Na esteira disso também vem um acordo da agência de notícias Xinhua, que é a principal agência de notícias da China com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).

Do ponto de vista da fome e do combate à pobreza, tem um memorando, que foi estabelecido entre o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, do Brasil, e o Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais da República Popular da China. Esse aqui já é um memorando muito importante dentro da agenda dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. Vocês devem ter ouvido falar da Agenda 2030 e da resolução 72, número 239 da ONU, que estabelece essa década que nós estamos vivendo, como uma década da Agricultura Familiar. O que se pressupõe aqui é uma aliança global de combate à fome e à pobreza extrema, que está no artigo 6 da resolução que eu citei e tem a ver diretamente com os discursos do Lula em países desenvolvidos. Quando o Lula diz que a gente tem que chamar atenção para a desigualdade, para a pobreza, que tem pessoas passando fome no planeta, isso está relacionado com esse memorando. Lembrando que a pobreza nunca é unidimensional. Pode-se viver várias pobrezas. A pobreza que se refere à renda, ao acesso de oportunidades, sanitária, nutricional, de habitação e moradia. Pobreza nunca é um fenômeno de uma única linha, há também a pobreza de acesso a serviços públicos, à saúde, educação, transporte, etc.

Por fim, menciono outro que está ligado a protocolos de certificação eletrônica para produtos de origem animal, que basicamente tenta melhorar as condicionantes da importação de carne pela China a partir do Brasil.

De maneira geral, esses acordos reúnem sim a possibilidade de destravar algumas perspectivas, sobretudo da indústria espacial, de telecomunicações, eletrônicos, softwares e informática. Não sei se reúnem condições de serem, digamos, revolucionárias.

Fonte da matéria: Um olhar da China sobre o mundo | entrevista com o pesquisador Rogério Faleiros – https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/um-olhar-da-china-sobre-o-mundo-uma-entrevista-com-o-pesquisador-rogerio-faleiros/

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