Economia

Criptomoedas e a questão monetária

Tempo de leitura: 12 min

Grupo de estudos – Permanece uma inquietação a respeito das criptomoedas, como se organiza a produção e a circulação desta forma de dinheiro?

Um fenômeno novo

De 2020 até meados de 2021, a criptomoeda Bitcoin aumentou o seu valor em seis vezes, passando de pouco mais de US$10.000 até o recorde de aproximadamente US$67.000 no dia 8 de novembro de 2021. Neste momento as criptomoedas deixaram de ser uma curiosidade e passaram a ser um tema comentado pelas autoridades dos bancos centrais em quase todos os países do mundo.

O fato é que este fenômeno trouxe muitas perguntas e acontecimentos curiosos. Como por exemplo, o mistério em torno do criador das Bitcoins – o pseudônimo Satoshi Nakamoto-, ou a inovadora combinação entre criptografia e computação distribuída, de onde surgiu o já famoso blockchain. Do lado das perguntas, podemos começar com aquela mais trivial: o Bitcoin tem valor de verdade? A esta se somam outras: É possível que somente a crença ou confiança em uma moeda lhe confira valor? Seu valor tem a ver com a inovadora tecnologia utilizada? Se trata de uma pirâmide financeira, um esquema Ponzi?

Estas perguntas oportunas são as primeiras que surgem, a partir da raridade deste novo fenômeno – ou talvez da surpreendente escala alcançada pelas criptomoedas. No entanto, todos os dias saem novas notícias a respeito, e muitos desses fatos ainda precisam ser analisados – e tranformados em novas perguntas. Como por exemplo o ranking de adoção de criptomoedas por país. No informe The 2022 Geography of Cryptocurrency, realizado pela consultora Chainanalysis figura que os países onde as criptomoedas tiveram maior adesão entre as pessoas comuns foram Vietnã, Filipinas, Ucrânia, Índia, e Estados Unidos. Os cinco seguintes são Paquistão, Brasil, Tailândia, Rússia e China. Certamente é uma lista bastante heterogênea. Se por uma lado ela tem grandes potências econômicas e populacionais, por outro vemos também uma participação importante de países do chamado mercado emergente, e casos chamativos, como a presença de países em guerra entre si e outros governados por partidos comunistas.

Tomemos o caso do Vietnã, o primeiro colocado do ranking. As remessas de dinheiro dos e das vietnamitas migrantes representou 5% do produto interno bruto em 2020, ano em que o país esteve entre os 10 maiores destinos de remessas individuais do mundo. Os dois métodos tradicionais para realizar as remessas são através das instituições bancárias e os operadores de transferência de dinheiro, como a agência Western Union. O primeiro é mais confiável, e portanto o que cobra taxas mais altas. O segundo método é utilizado pela população não bancarizada ou que quer evitar os trâmites burocráticos e a abertura de contas. A terceira opção que surgiu são as criptomoedas, que apresentam duas grandes vantagens: uma população pouco bancarizada mas com altos índices de uso de smatphones, utiliza plataformas digitais para realizar suas transações; além disso, conta com taxas muito baixas em comparação com os bancos e as agências de transferência.

Um caso mais próximo e chamativo é Cuba. Embora o volume total das remessas seja muito mais baixo que o do Vietnã, estima-se que comparado com o produto interno bruto esteja também ao redor dos 6%, sendo a segunda maior fonte de divisas do país, depois da exportação de serviços médicos e acima do turismo. Essa importância econômica das remessas de trabalhadores e trabalhadoras cubanas migrantes levou o regime do Partido Comunista de Cuba a regulamentar o uso das criptomoedas.

Ora, essa inesperada capilaridade das criptomoedas em países dirigidos por partidos comunistas, impulsionada pelo fenômeno da força de trabalho migrante, deveria ser motivo mais que suficiente para chamar a atenção da esquerda. No entanto, não é o caso de vociferar críticas nem demonizar esse fenômeno à toa. Tomemos seriamente o desafio de entender como funcionam as criptomoedas e que lugar podem ter no mundo da economia.

Comecemos com uma breve introdução à questão das teorias monetárias, uma parte pouco debatida e estudada pela esquerda nas ciências econômicas, para tentar eliminar o senso comum que acabamos repetindo por ignorância.

O que é o dinheiro?

As teorias monetárias discutem diferentes aspectos do dinheiro, tais como o conceito, a origem e a função primária do dinheiro, assim como as relações sociais que o atravessam. Entre o fim do século XIX e começo do século XX o sistema monetário baseado em moedas de metais preciosos começou a dar mostras de seus limites pelos desafios que o crescimento da população e da economia acarretaram, necessitando de uma expansão monetária correspondente que não podia ser satisfeita pelos metais preciosos que se achavam nos bancos. Por isso, o papel moeda começou a ganhar mais relevância.

Como reação a essas transformações, duas diferentes teorias monetárias se destacaram. Do lado da escola historicista alemã se desenvolveu o chamado cartalismo – nome que remete à palavra charta, -ae em latim, “papel”. Do outro lado estava o metalismo, cujo nome faz referência aos metais preciosos, defendido pelo economista austríaco Carl Menger.

O debate entre metalistas e cartalistas pode ser resumido em algumas diferenças centrais que opõe ambas perspectivas. Primeiramente, é importante distinguir duas coisas. A primeira é que o metalismo entende que a função primária do dinheiro é ser meio de troca entre os agentes econômicos. Assim o explica Carl Menger, e adverte que o dinheiro muda em diferentes épocas e povos, dificultando a comparação entre as diferentes moedas ou para uma mesma moeda em momentos diferentes. Por isso, sugere que seria útil um bem de valor constante que funcionasse como um critério de medida que seria aplicável igualmente a todos os mercados em todos os tempos, porque permitiria compará-los. Mas, isso não só não existe, como é impensável pelos níveis de regulação, estabilidade e resistência a fatores externos que seriam necessários, reconhece o austríaco.

A segunda, é que o metalismo define o dinheiro como dinheiro-mercadoria. Isto fica mais claro a partir da explicação de Karl Marx. De sua perspectiva teórica, falar de dinheiro-mercadoria implica que o dinheiro é produto do trabalho humano e portanto se produz através do mesmo processo social que as demais mercadorias da sociedade capitalista. Se para o metalismo não é necessário aprofundar essas questão, uma vez que o ouro teria justamente essa forma de mercadoria – um sólido brilhante e cobiçado, para Marx é necessário explicá-lo a partir de sua teoria do valor. Dado que o ouro se transforma em mercadoria por meio do trabalho humano, como todas as demais mercadorias na sociedade capitalista, ele pode servir como medida de valor universal, um equivalente geral. Assim, o valor do dinheiro expressaria o valor do trabalho acumulado na produção do dinheiro.

O cartalismo, por sua vez, fala em dinheiro-crédito e considera que sua função primordial é ser uma unidade de conta. Esta diferença se explica em função dos antecedentes históricos que cada teoria reconhece como fundantes da instituição do dinheiro. A perspectiva metalista atribui a origem do dinheiro à sua capacidade de facilitar o intercâmbio no mercado entre os diferentes agentes. Isso, de algum modo, sugere uma relação horizontal entre os participantes desta atividade. Para explicar isso, autores como Menger e Marx se valem de lógicas evolucionistas – muito em voga naquela época – e argumentam pelas vantagens dos metais preciosos para ocupar, após determinado processo histórico, o lugar do dinheiro. Em oposição a isso, o cartalismo vincula essa origem às antigas economias palacianas, ou organizações estatais em geral, que aplicavam diferentes modalidades de impostos, os quais deveriam ser pagos nos termos ditados pela autoridade soberana. O dinheiro havia sido primeiro a unidade de conta com a qual o Estado geria as relações sociais de produção, e a moeda emitida por essa autoridade adquire sua importância e demanda a partir dessa relação. Em termos gerais, o dinheiro-crédito institui uma relação assimétrica entre as pessoas que impõem obrigações e aqueles que devem obedecê-las.

Este último traço é importante porque explicita que, para a perspectiva cartalista, o dinheiro não pode ser neutro – como pode dar a entender o metalismo – mas que ele constitui uma relação de poder. Keynes explica essa oposição em termos da diferença entre uma economia “real” (quando o dinheiro é assumido como um elemento “neutro”) e uma economia monetária (onde o dinheiro opera como elemento autônomo). Para Keynes, a teoria econômica deve se ocupar da economia “real”, mas vivemos em uma economia monetária e os desenvolvimentos teóricos não podem aplicar-se tão facilmente à nossa experiência econômica.

Por último, outro ponto relevante deste debate é que, enquanto para o cartalismo o dinheiro é essencialmente criado por meio da intenção de uma autoridade estatal, para o metalismo a criação de dinheiro depende da descoberta e extração de metais. Em outras palavras, para a perspectiva cartalista o dinheiro é um elemento integrante da economia, é dinheiro endógeno (interno), e para a metalista o dinheiro se cria de maneira exógena (externo), à economia. Este traço se torna relevante na hora de pensar problemas econômicos e suas possíveis soluções.

Essa discussão segue vigente, apesar de o ouro ter perdido sua função de meio de troca na experiência da enorme maioria da população.

Alguns autores da tradição marxista, como Rolando Astarita, seguem compreendendo o ouro como o fundamento do valor dos demais tipos de dinheiro, tomando como base a vigência das enormes reservas de ouro das principais instituições financeiras nacionais. Em tempos de crise o ouro continua sendo a garantia última de liquidez, seu preço sobe na medida em que a confiança nas moedas nacionais caem. Outros autores da mesma tradição, como Michel Aglietta, propõem uma interpretação alternativa, que já não considera o ouro como fundamento do dinheiro contemporâneo, mas entende o dinheiro como expressão do tempo de trabalho (Monetary Expression of Labour TimeMELT). O valor do dinheiro estaria determinado pelo total de trabalho realizado e materializado no total das mercadorias produzidas.

A partir da tradição austríaca, Hayek nos oferece um olhar muito mais pragmático sobre o dinheiro, onde impera a função de meio de troca. Com uma posição combativa contra o papel do Estado como autoridade monetária, o economista austríaco menciona o fato de que numa mesma sociedade diferentes grupos utilizam uma diversidade de moedas: segundo a geografia, segundo o objeto de troca, etc. O autor se apoia no fato de que o dinheiro é algo que se utiliza independente da existência do aparato estatal. É uma posição interessante, porque embora não se baseie na ideia de um dinheiro-mercadoria que justifique ou explique tal ou qual forma de dinheiro, supõe que a criação do dinheiro não necessita de uma soberania assimétrica que emita o dinheiro, reconhecendo a iniciativa dos povos para regular o uso do dinheiro, ou seja, toda e qualquer coisa que venha a ser utilizada como dinheiro.

Longe de haver uma correlação clara entre teoria monetária e postura ideológica, como se pode ver no metalismo de Marx e de Menger, existem também posturas críticas à ideia de dinheiro-mercadoria por parte de autores marxistas. O português João Bernardo rejeita toda tentativa de conceber o dinheiro como expressão de valor, uma vez que a estrutura capitalista de exploração da mais-valia se baseia em defasagens e imprevisibilidades quanto ao valor produzido no processo de trabalho global. A função do dinheiro seria conjugar os valores, sem expressá-los, para permitir o funcionamento desequilibrado e imprevisível deste modo de produção. Bernardo entende o dinheiro antes como uma linguagem, dado que é incapaz de expressar as coisas como entidades transparentes. Ao contrário, conserva a opacidade que lhes é natural.

Formulando perguntas

Após percorrer esta resumida bibliografia se abrem muitas perguntas, e a primeira é evidente: podemos pensar as criptomoedas efetivamente como dinheiro? Se sim, o que isso implica?

Em que medida as criptomoedas cumprem as “funções” tradicionais do dinheiro na teoria monetária? Ainda que de forma muito marginal, elas têm sido utilizadas para a realização de operações de compra e venda (de imóveis e jogadores de futebol, por exemplo), também como uma atípica reserva de valor (especialmente nos países com elevada inflação) e como meio de pagamento de impostos (El SalvadorRio de JaneiroMendozaBuenos Aires), como concebia o cartalismo.

Mas não só isso. Elas assumem também outras funções do dinheiro. Por um lado, a função de meio de pagamento de salários, e por outro a transferência de valores de um país para outro. Estas modalidades não são consideradas na maior parte da bibliografia consultada, e nos permite pensar novas dinâmicas, como por exemplo a tranferência internacional de valores já não de capital mas de salário, ou seja: não como uma circulação entre capitalistas mas entre trabalhadores e trabalhadoras.

Contudo, permanece uma inquietação a respeito das criptomoedas assim como de todas as formas de dinheiro: quem emite? Ou, em outros termos, como se organiza a produção e a circulação desta forma de dinheiro? Quais são os atores e que dinâmicas novas podem ser observadas no ecossistema das criptomoedas? Alterará nossa forma de compreender o dinheiro, ou será apenas uma forma a mais?

*Este texto é um resumo de alguns dos temas abordados em um grupo de estudos sobre criptomoedas, ativo durante o ano de 2022.

Bibliografia:

Aglietta, Michel, “El capitalismo en el cambio de siglo: la teoría de la regulación y el desafío del cambio social”, New left review 7 (2001)

Bernardo, João, “Economia dos Conflitos Sociais”, Expressão Popular (2009)

Cruz, Esteban; Parejo, Francisco; Rangel, José, “El dinero moderno y el enfoque cartalista institucional” Revista de Economía Institucional 22, 43 (2020)

Hayek, Friedrich, “La desnacionalización del dinero”, Ediciones Folio (1996)

Keynes, John, “Una teoría monetaria de la producción”, Cuadernos de Economía 17, 28 (1998)

Marx, Karl, “El Capital” Volumen I, Siglo XXI (2008)

Menger, Carl, “El Dinero”, Unión Editorial (2013)

Traduzido pelo Passa Palavra. O original, em espanhol, pode ser lido aqui.

As imagens que ilustram o artigo são reproduções de obras de Jac Leirner.

Fonte da matéria: Criptomoedas e a questão monetária | Passa Palavra – https://passapalavra.info/2023/09/149952/

Deixe uma resposta