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O que será de Putin?

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Luiz Eça – O presidente Macron ainda estava no meio do seu croissant matinal, quando recebeu notícias alarmantes. Sob a liderança do seu comandante, o general Murat, o exército de mercenários da Legião Estrangeira desembarcara em Toulon e ocupara a cidade, praticamente sem resistência. Somente a força aérea tentara detê-los num combate no qual perdeu 1 avião e 7 militares.

O turbulento Murat lançara um manifesto, repetindo suas anteriores acusações contra o ministro da Defesa, de incompetência e perseguição a ele, ao recusar-se em enviar as munições e suprimentos  às operações da legião na guerra da África.

Afirmava também que o ministro estava levando o exército francês a derrotas. Para salvar la France desse atroz destino, ele comandaria uma coluna até Paris, onde derrubaria o chefe da Defes e poria as coisas em ordem.

Depois de vestir-se (e ajeitar seu cabelo na testa) cuidadosamente, Macron  usou uma rede nacional de televisão para anunciar a traição e tranquilizar os franceses, garantindo que a coluna rebelde jamais chegaria a Paris, pois seria dominada no meio do caminho.

Mais tarde,  informou aos franceses que já estava processando o general criminalmente e logo ele iria começar a ver o sol nascer quadrado.

Em seguida, o primeiro-ministro francês ligou para o presidente de Andorra, pedindo que convocasse o rebelde para negociações nessa cidade dos Alpes.

Na reunião acompanhada por Macron, via internet, o turbulento cabo de guerra, já assustado com a própria audácia, prometeu desmobilizar suas forças e exilar-se na vibrante Andorra. Seus subordinados estariam livres para juntar-se ao chefe ou registrar-se como militares do exército do país de Vitor Hugo.

Caso essa fantasia fosse real, acho que a maioria dos franceses aprovaria a brandura com que Macron lidara com o motim do truculento general.

Talvez algum dos fãs de madame Le Pen e suas ideias neofascistas rosnaria que o presidente fizera concessões demais.

Mas seriam raros. O importante é que Macron salvara o povo dos horrores da guerra civil sem disparar um só tiro.

De volta à realidade, apesar do presidente Putin ter vencido e feito um acordo praticamente igual ao estabelecido pelo Macron imaginário, o russo está sendo julgado de forma diferente.

Muitos jornalistas, pesquisadores, observadores e políticos do Ocidente e do Brasil consideram que, nesse episódio, o chefão de Moscou teria se enfraquecido de forma significativa, seu prestígio estaria a perigo, arrastando consigo suas chances de continuar reinando na Rússia como, digamos, Luiz XIV, reinou na França ( l´Etat c´est moi, era o que acharaim ambos).

Vejam o que disseram alguns dos jornais que fazem a cabeça de muitas pessoas de boa fé.

New York Times: “A revolta pode despertar uma séria questão: poderia Putin perder poder”.

Washington Post: “Putin olhou para o abismo no sábado. E pestanejou,”

Al Jazeera: “…A rebelião mostrou a fraqueza de  Putin a todos- o povo russo, as elites russas e os aliados e adversários n exterior. Isso pode encorajar setores da elite a desafiar sua liderança ou status quo político.”

Note que Putin e Macron agiram do mesmo modo no respectivo conflito real e imaginário. No entanto, enquanto Macron teria se saído bem, Putin saiu com sua reputação fraturada, perdendo prestígio, seu futuro político talvez comprometido.

Como se explica esta incoerência?

Bem, Macron tendo crescido na política como cidadão ponderado, adepto das negociações para resolver problemas, enfrentaria desafio do general rebelde da forma esperada. E assim sua imagem pública, que o levara ao poder, permaneceria intacta como uma virgem.

Quanto a Putin, ele fora quatro vezes eleito, como um homem de ferro, o salvador da pátria, duro e implacável na defesa dos interesses russos, o homem que criou a Rússia como potência global.

Coerente com esta imagem, cumpriria a ele  esmagar os rebeldes e puni-los sem dó com pesadas penas de prisão.

Portanto, os russos teriam bons motivos para se sentirem decepcionados com os termos suaves do acordo aceito por Putin: perdão ao general rebelde e sua mudança para um doce exílio na Belarus, onde teria liberdade para rearticular suas forças de olho em outros lucrativos empreendimentos.

Diante destas concessões, a imagem de Putin certamente perdeu certa força. Para alguns, correria o risco de ser arrancada do seu pedestal pelo povo desiludido.

Houve quem augurasse uma possível derrota na eleição presidencial do ano que vem. E o debilitado Putin não teria energia para fraudar esse resultado, coisa de que o acusam em anteriores pleitos.

Acho essas opiniões um tanto apressadas.

Putin não é igual a outros ditadores ou autocratas da idade Modena. Não acredito que sua imagem popular de homem de ferro  enferruje facilmente, mas deve resistir, fortalecida por ações agressivas e ousadas que marcaram e provavelmente continuarão marcando sua trajetória política.

Lembre-se de que se trata de um cidadão que forjou sua personalidade no mais dominante e perigoso ramo da estrutura soviética: a KGB – Comitê de Segurança do Estado.

Passar 16 anos na KGB sem ser rebaixado, expulso ou mesmo executado não é para qualquer um. Tendo começado sua carreira no temível serviço secreto russo como um funcionário anônimo, Vladmir Putin chegou ao cobiçado posto de tenente-coronel.

Mas o mundo da espionagem era um mundo pequeno para suas ambições. Em1999, entrou para o mundo da política, no qual os horizontes eram infinitos na Rússia da época, carente de líderes de vontade férrea.

Graça a seu respeitável currículo, Putin foi nomeado diretor federal de Segurança, onde sua eficiência, rara no funcionalismo público russo, chamou a atenção do então presidente Ieltsin que, em 1999, o nomeou primeiro-ministro.

Com a renúncia de Ieltsin, Putin candidatou-se a presidente pela primeira vez, elegendo-se no pleito de 2.000. Dali em diante,  ocupou alternadamente os postos de presidente e primeiro-ministro, em uma série de eleições, até a mais recente, em 2018.

No início de sua gestão, a Rússia passava pela mais severa crise, com o fim do comunismo, substituído por um regime liberal-democrático (pero no mucho).

Seu antecessor, Ieltsin, havia lançado um ambicioso plano de reformas, do qual a estrela era a conversão do país comunista numa economia capitalista.

As empresas estatais foram privatizadas a toque de caixa e a preço de banana, num processo marcado pela mais absoluta corrupção.

Os chamados oligarcas, ex-chefões do governo soviético, apossaram-se da maior parte das empresas do Estado, desembolsando quantias ridículas.

Dominando a economia, eles impuseram seus interesses a um parlamento sem rumo.

De um modo geral, os resultados não foram exatamente os previstos pelos ideólogos de Ieltsin: falência de inúmeras empresas, crescimento recorde  do desemprego, queda dramática do padrão de vida da população , hiperinflação e eliminação de direitos sociais, inclusive o de aposentadoria.

Coube a Putin, uma vez eleito em 2000, enfrentar esse desafio de proporções gigantescas.

Sem perder tempo, Putin convocou os 21 principais oligarcas. E, logo após a vodca regulamentar, comunicou a seguinte intimação ; “Submetam-se à minha autoridade e saiam do meu caminho que vocês poderão conservar suas mansões, iates, aviões particulares e corporações multi-bilionárias.”

Muitos toparam, mas nem todos, entre eles, Mikhail Khodorkovsky, o homem mais rico da Rússia, que Putin fez processar e condenar a 9 anos de cadeia.

7 dos  outros oligarcas incrédulos morreram em circunstâncias misteriosas E houve ainda alguns precavidos que fugiram do país, levando o que puderam.

Deixaram suas redes de televisão e jornais, que, ou passaram a apoiar Putin incondicionalmente, ou se tornaram propriedade estatal. Poucas sobreviveram neutras. Quase todas por pouco tempo. A última durou até a invasão da Ucrânia.

Livre da influência avassaladora dos oligarcas, Putin iniciou a reconstrução do Estado russo.

Teve  êxito, a Rússia voltou a ser uma grande potência, com elevação significativa do nível de vida do povo.

Mas pagou-se um preço alto. Putin foi aos poucos impondo medidas que aumentavam seu poder e reduziam os direitos da população. As liberdades públicas e os direitos civis foram sendo eliminadas, a maioria dos adversários , presos, enquanto alguns, conforme certos analistas garantem, foram envenenados ou executados.

Apesar destes, digamos, graves deslizes, Putin venceu a todas 4 eleições presidenciais realizadas a partir de 2000.

A oposição denunciou-as como fraudulentas e promoveu grandes manifestações de protestos, reprimidas violentamente pelas forças de segurança.

Na política externa, o autocrata (ou ditador, como prefiram) Putin agiu com a mesma energia.

Venceu a 2ªGuerra da Chechênia, deixando a região arrasada, e a Guerra da Georgia, impondo a independência de duas partes desse país, a Ossétia e a Abecássia, as quais, por pertencerem a etnias hostis à etnia georgiana revoltaram-se contra o governo de Tiflis.

Por solicitação do governo Assad, Putin interveio na guerra da Síria, que estava sendo vencida por forças treinadas, financiadas e armadas pelos EUA e a Arábia Saudita, entre outros menos votados.

O exército e a aviação russos viraram o jogo: graças às forças de Putin, as tropas leais ao governo sírio passaram a vencer todas as paradas. E Assad ganhou a guerra, atualmente domina quase todas as cidades do país, com exceção de Idlib, governada por milícias provenientes da al Qaeda.

Obama reagiu, organizando uma revolução popular na Ucrânia contra o governo pró-Rússia de Victor Yanukowicz

O lance de Putin foi mobilizar o Donbass, região leste da Ucrânia, habitado majoritariamente por pessoas de origem russa, para se rebelar contra o novo governo, em 2014. A luta entre o governo da Ucrânia e as províncias pró-Rússia separatistas prosseguiu nos anos seguintes, alternada por breves situações de cessar-fogo.

Hoje a maior parte do Donbass está sob o poder de Putin.

Ainda em 2014, Putin tomou e ocupou a península da Crimeia, então parte da Ucrânia.

Em seguida, realizou um referendo para a população decidir se preferia integrar a Ucrânia ou a Rússia. Como a população da Crimeia é majoritariamente russa, Moscou venceu.

A ONU, a OTAN, os EUA e a União Europeia responderam ao desafio de Putin, exigindo que ele se retirasse da Crimeia, sob pena de receber pesadas sanções.

Putin rejeitou  essa decisão e, posteriormente, multiplicou sua agressividade, invadindo a Ucrânia e ,assim, iniciando uma guerra brutal, condenada por todo o planeta.

Com grande apoio militar dos EUA, da NATO e da União Europeia, os ucranianos resistiram  à investida russa em direção a Kiev e recuperaram parte do território perdido nos primeiros meses da guerra.

Além de criarem uma força capaz de infringir grandes perdas aos russos, a coalisão ocidental, lideradas por Joe Biden, usou de outro poderoso recurso altamente eficiente: lançou as mais duras sanções contra a Rússia, visando devastar sua economia da Rússia, assim criando o caos no país e esgotando seus recursos para prosseguir encarando a Ucrânia na guerra.

A Rússia ,porém, resistiu. Encontrou novos mercados para seu petróleo e seu gás e adaptou as empresas do país para produzirem os bens de que sua sociedade necessita, cuja importação foi proibida pelas sanções.

Embora sua economia ainda enfrente dificuldades sérias, a verdade é que, longe do caos que se previa, o governo de Putin apresenta dados animadores como inflação neste ano da ordem de 2,4%. A menor de toda a Europa.

A euforia entre os experts em relações internacionais brasileiros e estrangeiros está visivelmente em declínio.

Não se ouvem críticas em Moscou ao comportamento de Putin no encerramento do problema Prigozhin, ainda que moderadas. Demonstrações de aplauso ao primeiro-ministro pelas elites econômicas e militares foram frequentes.

O próprio Putin demonstra tranquiiidade, resistência aos impactos sofridos pelo episódio da tentativa de golpe dos mercenários.

Ao contrário do que afirmam na TV experts em relações internacionais, ele não realizou qualquer ação inesperada de grande impacto, como fazem os ditadores para compensar erros sentidos pelo seu povo.

O exército russo mantém sua estratégia de enfrentar a contraofensiva ucraniana, defendendo-se sob a proteção das vastas fortificações construídas nas fronteiras entre seu território e a posição dos inimigos. Reagem com força total, buscando devastar os armamentos e efetivos do regime de Kiev, com o fim de deixá-lo sem recursos para continuar atacando, o que o forçaria a uma retirada desonrosa.

Putin pode cair, sim, sendo esmagado pela estratégia econômico-militar ocidental, e acabe fechando um acordo que finalize a guerra, atendendo às 10 exigências de Kelesnky.

Trata-se de uma possibilidade real, como real também é a chance dos ucranianos e seus patronos arriarem a bandeira branca.

Acredito que uma destas opções pode ocorrer no meio do próximo ano, quando tanto Biden quanto Putin estarão perto de nova eleição presidencial, onde seu futuro será fortemente relacionado a uma vitória decisiva na Ucrânia.

Por enquanto, Putin está firme e forte, talvez com sua imagem ligeiramente  deteriorada. Sustentar o contrário não passa de wishful thinking – anomalia psicológica aceitável em pessoas muito influenciáveis pela TV, não porém em experts em relações internacionais.

Fonte da matéria: O que será de Putin? – Olhar o MundoOlhar o Mundo – https://www.olharomundo.com.br/o-que-sera-de-putin/

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