Sociedade

Os cristãos e o individualismo

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LUIZ GONZAGA BELLUZZO – O papa rejeita a religiosidade que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo.

A Igreja, além da sua principal missão, não deixa de preocupar-se com as exigências da vida cotidiana dos homens

Na manhã que se seguiu ao evento de apoio à candidatura do companheiro Luiz Inácio – reunião de entusiastas apoiadores abrigada nas já históricas instalações do Tuca da PUC de São Paulo –, recebi mensagens de muitos amigos que celebravam a menção de meu nome pelo candidato do PT.

Em uma delas, o jornalista Ricardo Leopoldo, companheiro e amigo de muitas empreitadas, comemorou:

– Fiquei feliz pelo Lula ter citado o senhor no Tuca.

Respondi:

– Não era necessário.

Ricardo redarguiu:

– Respeitosamente, discordarei. O Brasil deve muito ao senhor.

Ainda nas alegrias do evento, trepidações das redes espicaçaram meu celular com uma mensagem do papa Francisco aos cristãos: “Vigiemos o narcisismo e o exibicionismo baseados na vanglória que leva, também nós cristãos, a ter sempre nos lábios a palavra ‘eu’: ‘Eu fiz isto, eu havia dito, eu havia entendido’. Onde há muito eu, há pouco Deus”.

Minha hipocrisia tem estado debilitada de uns tempos para cá, na mesma medida em que os exames de consciência que pratico diariamente acusam fragilidades e insuficiências. Assim, se não posso recusar o agrado, tampouco posso acatar o elogio.

Minhas razões para a certificação de tal ambiguidade repousam nas sandálias confeccionadas nos meus tempos do Seminário Menor dos Jesuítas, o ­Aloisianum. Nos quatro anos de ruidosa convivência com as transformações da Igreja de João XXIII, enfiei-me nas sabedorias do filósofo cristão Emmanuel Mounier.

Mounier cuidou de apresentar as inconformidades entre a moral cristã e o individualismo professado pelo ethos das sociedades modernas capitalistas. Em seu livro Personalismme, Mounier afirma que a concepção burguesa é o ápice de um período de civilização que se desenvolve desde o Renascimento até os dias atuais. Ela tem origem na revolta do indivíduo contra um aparelho social que se tornou muito opressivo e contra uma ordem espiritual cristalizada. Essa revolta não foi totalmente desordenada e anárquica. Nela estremeceu a exigência legítima da pessoa. Mas, imediatamente, essa exigência se desvia para uma concepção estreita do indivíduo, concepção que carregava dentro de si, desde o início, o germe de sua decadência. O individualismo é uma decadência do indivíduo antes de ser seu isolamento; o individualismo isolou os homens na medida em que os degradou.

Esse isolamento do indivíduo em suas particularidades, ou melhor dito, em suas singularidades, decorre da secular transição entre a ordem medieval organicista e a modernidade maquínica, como bem diz o filósofo padre Henrique de Lima Vaz.

A transcendência não pode ser usada como pretexto para sufocar as liberdades e as carências

Esse repovoamento do espaço humano, diz Lima Vaz, requer, evidentemente, novos objetos e uma nova fonte produtora de objetos. Abolido qualquer recurso a uma causalidade transcendente, pois o conceito do Deus-Criador desaparece lentamente do universo mental do homem moderno, não resta senão a iniciativa de transferir para o homem-demiurgo a tarefa de criar uma nova esfera de objetividade para o seu mundo. Esse processo de criação ou de recriação do mundo dos objetos constitui verdadeiramente o movimento fundamental de constituição do horizonte ontológico do homem da modernidade.

Não por acaso, na Encíclica Mater et Magistra, João XXIII advoga o reatamento das relações entre Transcendência e Imanência:

“O cristianismo é, de fato, a realidade da união da terra com o céu, uma vez que assume o homem, na sua realidade concreta de espírito e matéria, inteligência e vontade, e o convida a elevar o pensamento, das condições mutáveis da vida terrena às alturas da vida eterna, onde gozará sem limites da plenitude da felicidade e da paz.

“De modo que a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de as fazer participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de se preocupar ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas”.

Este trecho da Mater et Magistra está estampado na abertura da Encíclica e define com clareza a visão cristã a respeito das relações entre a transcendência divina e a imanência da vida concreta dos homens.

A transcendência não pode ser usada como pretexto para sufocar as liberdades e as carências de mulheres e homens em sua peregrinação existencial, mas, sim, deve cuidar da valorização e do atendimento de suas angústias e anseios.

Nas páginas da nossa CartaCapital já mencionei que o teólogo Hans Kung escreveu em sua obra magna, The ­Incarnation of God, que o Deus da Torá permanecia “externo”, como o “outro” dos homens. Jesus, o Deus entre os homens, era o amigo-homem dos pecadores e falava as palavras da comiseração do Pai amoroso pelos filhos sofridos.

Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo. Depois da Encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo Sacrifício da Cruz e pela Ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços.”

Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do Império Romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.

Tal como nos personagens do ­Satyricon, percebo em muitos que hoje se proclamam cristãos a nostalgia do Cristo que não voltou. Por isso, o papa Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um ­Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus.” Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.

Fonte da matéria: Os cristãos e o individualismo – CartaCapital – https://www.cartacapital.com.br/opiniao/os-cristaos-e-o-individualismo/amp/#aoh=16676522901436&csi=0&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&amp_tf=Fonte%3A%20%251%24s

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