Economia

Preços dos combustíves e a disputa pela distribuição da riqueza gerada com petróleo nacional e Petrobras

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Ildo Luís Sauer – O debate em torno dos preços dos combustíveis tem mobilizado a opinião pública. A Petrobras e o ICMS dos Estados foram alçados ao papel de vilões.

Quais são as disputas de interesses e quais as alternativas de políticas públicas?

Em 2021 foi produzido 1,06 bilhão de barris de petróleo. Com o custo direto de extração (capital e trabalho) de aproximadamente 10 dólares por barril, o excedente econômico é extraordinário. Em 2021, com preço de realização de 70 dólares por barril, foram mais de 60 bilhões de dólares (300 bilhões de reais) e, atualmente, em razão da conjuntura geopolítica, petróleo em torno de 100 dólares, mais de 90 bilhões de dólares (450 bilhões de reais).

Qual foi a distribuição dessa riqueza?

Os dados da Petrobras, publicamente disponíveis, permitem ilustrar a geração e distribuição do excedente do petróleo. A Petrobras produziu pouco menos de 75 por cento, sendo o restante de empresas privadas, principalmente estrangeiras, com destaque para a Shell, com 11,5 por cento. A análise do balanço da Petrobras serve de referência para avaliar a repartição do excedente econômico, lucro, do petróleo no Brasil. A exploração e produção de petróleo foi responsável por 78,5% dos lucros da empresa, por concentrar a renda petrolífera; o restante foi gerado pelo refino, abastecimento, gás e energia operam em regime competitivo, tendo, portanto, lucros normais compatíveis com o regime de mercado capitalista concorrencial, e pela venda de ativos, como a da BR Distribuidora por 2,5 bilhões de dólares.

Resultado da Petrobras, em 2021, em bilhões de reais:

Lucro bruto: 219; Despesas: 17; Lucro antes do resultado financeiro, participações e impostos: 202; Custo financeiro: 59; Lucro antes de impostos, participações e impostos: 151; Imposto de renda e contribuição social: 44; Lucro líquido: 107 bilhões de reais. Os royalties e participações especiais, incluídos nos custos, foram de 60 bilhões de reais. Assim, as transferências de riqueza gerada pela extração do petróleo foram: por royalties e participações especiais (60), IR e CSLL (44) e lucros (107) avultam a 211 bilhões de reais, além dos 59 bilhões apropriados pelo sistema financeiro.

Os 60 bilhões de royalties e participações especiais foram distribuídos entre União, Estados e municípios produtores (principalmente Rio de Janeiro).

O lucro líquido de 107 bilhões de reais foi destinado para:

  • 28,7% para governo federal, 7,9 para BNDES, 1,2% para FGTS;
  • 44,5 % para investidores estrangeiros: 20 na Bolsa de Nova York e 24,5 na Bolsa de São Paulo;
  • 17,5 % para acionistas brasileiros (pessoas físicas e jurídicas).

Diante desse quadro, da Petrobras, representativo de ¾ da riqueza nacional do petróleo, a pergunta que se impõe é: existe outra forma de partilhar a riqueza do petróleo? Qual a razão dessa distribuição assimétrica se a Constituição Federal define que: a) os recursos do subsolo, incluindo o petróleo, constituem bem da União; b) as atividades de exploração, produção, refino, transporte, importação de petróleo e derivados são monopólio da União.

A questão principal está vinculada aos preços cobrados aos consumidores e às transferências aos poderes públicos (via dividendos, royalties, participações ou mediante novo modelo) para compensar os direitos do povo brasileiro, titular dos bens da União e construtor da Petrobras.

Preços dos combustíveis

Desde o Decreto-Lei nº 395, de 29 de abril de 1938, os preços internos guardam relação com os internacionais e em todas implementadas reformas o preço de realização ex-refinaria, dos derivados, estava vinculado ao preço internacional do petróleo, inclusive o produzido no País. Preço era resultado da multiplicação do preço do barril de petróleo importado, por coeficientes que variavam de 1,8 para querosene de aviação, 2,3 para GLP, a 2,6 para gasolina tipo B, até 7 para lubrificantes. O excedente servia para cobrir custos de refino, logística, tributos e contribuições, subsídios cruzados para a inserção do etanol na matriz de combustíveis e unificação dos preços em todo o território nacional, em vigor por longo período. O repasse ao mercado interno era regulado mediante o controle das contas de compensação das diferenças entre o recebido pela Petrobras, responsável pela execução do monopólio estatal, e o previsto para os preços ex-refinaria, incluindo os impactos cambiais.

O grande marco transformador, mantido por todos os governos subsequentes, foi a reforma liberalizante implementada no governo FHC, através de emenda constitucional, que instituiu a quebra do monopólio estatal exercido pela Petrobras, e da Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997, conhecida como a Lei de Política Energética. Definiu como objetivo promover a livre concorrência; instituiu a Agência Nacional do Petróleo (ANP), com a finalidade de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, cabendo-lhe implementar a política nacional de petróleo e gás natural, com ênfase na garantia do suprimento de derivados de petróleo em todo o território nacional, e na proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos. Dispôs que as atividades econômicas da Petrobras serão desenvolvidas em caráter de livre competição com outras empresas, em função das condições de mercado. Portanto, a responsabilidade pela garantia do suprimento do mercado passou da Petrobras para a ANP, através de mecanismos de mercado competitivo. Houve uma metamorfose pela qual o monopólio e os bens da União passaram a gerar riqueza apenas para os investidores.

Assim os dirigentes da Petrobras passaram a ter o papel exclusivo de servir ao interesse dos acionistas, nos ditames da Lei das Sociedades Anônimas de 1976, da Lei do Petróleo, da Lei das Estatais de 2016. O não cumprimento da legislação sujeita os dirigentes às sanções previstas pela legislação da concorrência, sob vigilância do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e pela legislação das empresas de capital aberto, sob a vigilância da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), além das penalidades do própria Securities and Exchange Commission (SEC) dos EUA, à cuja regulação a Petrobras foi submetida pelo governo FHC, em 2000, ao vender 20 por cento do capital da empresa, na Bolsa de Nova York. A questão não está no âmbito da Petrobras, demonizada, mas na responsabilidade do Estado Nacional, Executivo e Legislativo, de definir um equilíbrio de interesses na disputa pela riqueza do petróleo. Tampouco tem papel central o ICMS dos Estados, que em 2021 foi da ordem de 120 bilhões de reais (com alíquotas médias de 25%, gasolina, 12,5%, diesel, e 13,5%, GLP), mesmo com o aumento da arrecadação em 2022 em função do incremento dos preços dos derivados.

É preciso resolver o conjunto de interesses conflitantes em torno da função do petróleo e da Petrobras na sociedade:

  • Os acionistas buscando sua valorização, com aceleração da produção a preços de produtos elevados, visando a obter maiores dividendos e aumento na cotação das ações;
  • Os consumidores de derivados visando a obter preços mais baixos; os contribuintes também, de um lado, querendo o aumento de dividendos, e, de outro, na condição de consumidores, a redução de preços;
  • A população, não consumidora ou consumidora reduzida de derivados, potencialmente, teria por objetivo que a Petrobras, graças a sua capacidade tecnológica e gerencial, construída pelo apoio histórico do povo brasileiro, fosse instrumento de geração de renda para ser investida em finalidades sociais: renda mínima de cidadania, educação e saúde pública gratuitas, ciência, tecnologia, reformas urbana e agrária, transição energética;
  • Integrantes do governo, partidos e base aliada, que têm, sistematicamente buscado a instrumentalização da Petrobras para seus propósitos de manutenção do poder e enriquecimento pessoal, indicando e nomeando despachantes de seus interesses para funções de direção;
  • Finalmente, há um conjunto de interesses externos, que une empresas e governos estrangeiros, vinculados à OCDE e China, que tem por objetivo aceder a recursos de petróleo, como o pré-sal, visando a acelerar sua produção e a redução do seu preço, propiciando o aumento de sua prosperidade e bem-estar. De modo particular, as antigas empresas internacionais de petróleo, originadas das chamadas Sete Irmãs, primas e descendentes, em razão da atuação da Opep, tiveram uma forte redução no acesso a reservas de petróleo, e vêm atuando de forma estruturada para ter acesso a reservas em novas fronteiras, das quais a mais importante em escala mundial é a do pré-sal, e vêm tendo sucesso diante dos governos com ação concertada nos meios de comunicação, no Congresso, partidos políticos e outros espaços de disputa pela hegemonia cultural e social.
Fonte da matéria: Preços dos combustíves e a disputa pela distribuição da riqueza gerada com petróleo nacional e Petrobras – Jornal da USP – https://jornal.usp.br/articulistas/ildo-luis-sauer/precos-dos-combustives-e-a-disputa-pela-distribuicao-da-riqueza-gerado-com-petroleo-nacional-e-petrobras/

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