Teoria

Francis Fukuyama — quem diria — morreu em Pequim

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Fernando Marcelino – Vinte hipóteses sobre a trajetória do socialismo e o “fim da História”. Em 1989, caiu o estatismo soviético, mas não a esperança de superar o capitalismo. Ela reaparece na China — imperfeita, mas em claro desafio à ordem neoliberal.

  1. É bem conhecida a ideia promulgada pelo “marxismo ocidental” de que atualmente é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O socialismo encabeçado pela URSS acabou. Todos seus métodos passaram a ser vistos como obsoletos. As alternativas socialistas só poderiam nos levar a uma sociedade cinzenta, tediosa e supercontrolada. Enquanto uns apontaram que era preciso liquidar o capitalismo imediatamente, outros passaram a defender a ideia de “mudar o mundo sem tomar o poder”. Ganharam força os ímpetos de domesticar o capitalismo por meio da democracia liberal, com uma democracia mais participativa. Novas formas de lutar dentro do capitalismo liberal contra o capitalismo passaram a ser incentivadas. A tese exposta por Francis Fukuyama de que havíamos chegado ao “fim da história” por não existir um sistema superior ao capitalismo liberal ganhou corações e mentes por todo canto. Até mesmo badalados críticos marxistas passaram a enfatizar que os países remanescentes socialismo real como a China estavam desembocado em algo pior que o capitalismo ocidental, pois passaram a combinar um Estado forte e autoritário e com dinâmica capitalista selvagem, sem contar o trabalho escravo e a violação de direitos humanos.
  2. É verdade que não existe um consenso geral sobre o que seja o socialismo, nem sequer entre aqueles que se consideram socialistas. Nunca o significado de socialismo foi o mesmo para aqueles que se identificam com o socialismo. Diante de tantas opiniões e divergências, vamos tomar como base a noção básica desenvolvida por Marx: o socialismo é uma formação social que deve superar o capitalismo no longo processo histórico por se tratar de um modo de produção da vida social que atende as necessidades materiais e imateriais da humanidade.
  1. Marx concluiu que o sistema econômico e social capitalista gerava contradições próprias que deveriam transformá-lo, ao amadurecer, numa sociedade de novo tipo. Chamou-a socialismo (fase inicial) e comunismo (fase superior). São diferentes modos de produção com correspondências próprias entre uma estrutura econômica (forças produtivas + relações de produção correspondentes), uma estrutura jurídico-política (responsável por garantir a unidade da formação social sob a dominância desse modo de produção produzindo as condições de sua reprodução) e uma estrutura ideológica que interpela os indivíduos como sujeitos do modo de produção (engajando, pelo imaginário, os indivíduos em relações sociais objetivas).
  1. Para Marx, o caminho do socialismo se abriria apenas quando as forças produtivas atingissem um alto nível de desenvolvimento capitalista e só poderia se desenvolver com uma economia planificada socialista. O desenvolvimento das forças produtivas se chocaria com a estreiteza e a mesquinhez das relações de propriedade, colocando-as em tensão e forçando sua transformação em relações de novo tipo, em que a cooperação, e não o conflito, deveria ser predominante. O socialismo seria, desse modo, uma criação direta das contradições do capitalismo. Esta sociedade não desapareceria antes que se desenvolvessem todas as forças produtivas que ela podia comportar. E jamais apareceriam relações de produção novas e mais elevadas antes que as condições materiais para a sua existência houvessem brotado no seio da própria sociedade capitalista. Nessas condições, Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos estavam fadados a vivenciar as primeiras revoluções socialistas.
  1. Se Marx previu que a ocorrência do socialismo só viria em estágios avançados do capitalismo, o que fazer quando o proletariado se vê obrigado a fazer a revolução social onde o capitalismo não esteja avançado, como aconteceu na Rússia, China, Cuba e outros países? Durante o século XX, o crescimento das lutas dos operários, camponeses e outras camadas populares de países atrasados, assim como os conflitos de interesse entre camadas burguesas locais e as burguesias imperialistas, abriu um novo horizonte, fazendo com que a possibilidade de revoluções socialistas se transferisse dos países capitalistas avançados para os atrasados. É evidente que esta situação entrava em contradição com as condições materiais exigidas por Marx para o socialismo. Porém, deveriam os socialistas no poder encaminhar até o final o desenvolvimento das forças produtivas possíveis pelas relações capitalistas de produção ou devolver o poder à burguesia para realizar o pleno desenvolvimento do capitalismo?
  1. A história do século XX não seguiu a previsão de Marx, pois as revoluções socialistas tiveram como palco central países atrasados. Outras experiências socialistas haviam sido tentadas, como a de Robert Owen na Inglaterra e a Comuna de Paris em 1871, mas nenhuma delas sobreviveu ao cerco capitalista e nem conquistaram o poder estatal com a tarefa de eliminar o antigo sistema econômico e político para construir um novo. A trajetória do socialismo real não começa na Inglaterra ou na França, mas com a vitória dos bolcheviques na Revolução Russa em 1917, o que transformou o país, renomeado de União Soviética, no primeiro Estado socialista da História. As mudanças sociais e políticas nem sempre esperam que o capitalismo esteja completamente maduro. Por isso mesmo, a construção do socialismo soviético não foi fácil. Embora tenha começado sua caminhada com grandes promessas e esperanças, a situação real colocada em seus primeiros passos foram as brutais dificuldades de um país arrasado pela guerra, sem contar com o apoio do sucesso revolucionário em qualquer país avançado, confrontado com um forte bloqueio econômico de todos os países capitalistas, com uma guerra civil promovida pelas tropas fiéis do antigo regime e por forças militares de treze potências estrangeiras, além de uma forte disputa interna sobre os caminhos a seguir após a tomada do poder político.
  1. A experiência soviética passou por diversas etapas. De 1917 até 1921 o foco foi a consolidação do poder comunista, chamado de “comunismo de guerra”. Era um programa emergencial para restabelecer a unidade e a defesa nacional, a consolidação do novo aparato estatal voltando para o combate contra a fome, a miséria e o desespero que assolava a Rússia. A partir de 1921, os bolcheviques passaram a linha política da NEP (Nova Política Econômica). Com a proposta da NEP, Lênin destacava a situação contraditória de um Estado Socialista que se via obrigado a se apoiar em relações de produção capitalistas e, particularmente, no capitalismo de Estado para permitir a sobrevivência da revolução. Graças a esta nova política os camponeses podiam vender seus produtos ao mercado e não somente ao Estado, com a iniciativa privada sendo tolerada em pequenas escalas. Isso levou Lênin a dizer que “a NEP era um capitalismo de Estado, com conteúdo socialista, sob o controle dos trabalhadores”. A NEP permitiu um crescimento limitado do comércio e das concessões estrangeiras ao lado dos setores econômicos nacionalizados e controlados pelo Estado. Também estimulou o crescimento de uma classe de camponeses ricos e de uma burguesia comercial. Para os bolcheviques, tratava-se de um encorajamento das tendências capitalistas, de um recuo estratégico em virtude do atraso da revolução europeia e das condições calamitosas de construção do socialismo na Rússia. Ao promover mecanismos de mercado, propriedade privada, competição e integração na economia capitalista externa, a NEP evidenciou os problemas inerentes da construção do socialismo numa região atrasada, em guerra e onde o capitalismo tinha pouca perspectiva de se desenvolver. Isso para não falar do boicote comercial internacional. Na época, muitos foram aqueles descontentes com o recuo da NEP, apontando que a revolução teria traído seus princípios socialistas. De qualquer forma, trata-se da primeira experiência concreta de “socialismo de mercado”, no sentido de ser uma etapa primária do socialismo num país menos desenvolvido.
  1. A NEP foi uma curta experiência no socialismo soviético. Em 1928,  as empresas comerciais e industriais foram estatizados independentemente do seu tamanho e se iniciaram grandes empreendimentos de infraestrutura (transportes, geração de energia, minas, etc.) e de bens de capital (máquinas, ferramentas, etc.) com os capitais obtidos pela expropriação de milhões de camponeses e pequenos comerciantes. Aquilo que muitas vezes se entende como “modelo socialista soviético” é o modelo pós-NEP, cuja principal marca foi a estatização completa dos meios de produção, com a concentração no Estado de todos os recursos disponíveis e sua alocação de acordo com um planejamento centralizado. Além disso, ao invés de aprofundar a reforma agrária democrático-burguesa, o Estado soviético realizou um processo de coletivização forçada como forma de expropriação do campesinato e sua transformação em força de trabalho industrial. No final dos anos 1920, Stalin e os novos dirigentes soviéticos concluíram que as premissas materiais para construir o socialismo já haviam sido construídas e passaram a restringir as concessões aos capitalistas, adotadas pela NEP. Isso ocorreu paralelamente à ascensão do fascismo, ao agravamento da situação internacional e às ameaças de uma nova guerra mundial imperialista. Stalin e muitos outros achavam que o ritmo da NEP não permitiria à União Soviética industrializar-se na rapidez necessária para enfrentar essa ameaça externa. Não haveria a paz necessária para o desenvolvimento de longo prazo da NEP soviética. A explicação de que a União Soviética precisava de tempo para preparar-se contra a invasão alemã não foi suficiente para evitar que Stalin fosse considerado traidor da causa da revolução. Essa situação só mudou, em parte, após a invasão da União Soviética pelas tropas nazistas e após a virada da batalha de Stalingrado, quando os soviéticos passaram da defensiva à ofensiva e os ventos da guerra mudaram definitivamente. Apesar das perdas terríveis, calculadas em mais de 30 milhões de soviéticos mortos durante o conflito, a União Soviética emergiu da guerra como grande potência socialista.
  1. No final da Segunda Guerra Mundial em 1945, o “modelo soviético” chega ao seu apogeu. Forma-se uma URSS com 15 repúblicas soviéticas. No continente europeu, Rússia, Estônia, Letônia, Lituânia, Belarus, Ucrânia, Moldávia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão. No continente asiático, parte da Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão compuseram o território soviético. Seu apogeu representava não somente a possibilidade de construção de sociedades socialistas em países atrasados e isolados em meio a uma maioria de países capitalistas, mas também a possibilidade de realizar a industrialização acelerada através da ação exclusiva do Estado. Todos os países teriam condições de evitar os males da participação do capital no desenvolvimento das forças produtivas. As antigas dúvidas sobre a necessidade ou não de competir no mercado internacional dominado pelo capital, abolir ou não a propriedade privada dos meios de produção, e extinguir ou não a sociedade do trabalho e o mercado, pareciam resolvidas pela curta história de sucesso da União Soviética. À medida que o poder soviético se consolidou e superou a breve experiência da NEP, ingressando num gigantesco processo de industrialização para fazer frente à ameaça de uma nova guerra imperialista, o método de industrialização e construção econômica também passou a ser disseminado como único modelo que poderia ser seguido por todos os países atrasados para construir o socialismo. Além disso, a centralização estatal permitiu uma distribuição mais equitativa da renda e um contingenciamento mais eficaz das desigualdades sociais, em especial através do pleno emprego.
  1. Nas décadas de 1950 e 1960 ocorreram novas experiências socialistas no Leste Europeu, na China, Coreia, Cuba, em condições históricas e sociais completamente distintas das da URSS. Surgem tentativas de transição ao socialismo no Oriente Médio e na África, como no caso da Argélia, Angola, Moçambique, Camboja, Tanzânia e Etiópia. O processo de expansão mundial do socialismo criou diversas formas e experiências de transição. Seja em virtude das classes sociais formadas historicamente ou porque o capitalismo se desenvolveu de forma desigual em cada um desses povos, o socialismo realmente existente sempre ocorre com características nacionais. Afinal, a força social dos trabalhadores, camponeses e outras camadas populares em diferentes países têm disposições e problemas diferentes e próprios. Por isso, o socialismo se renova cada vez que é capaz de guardar suas características próprias, nacionais. Guardadas as diferenças nacionais, a grande maioria dessas experiências socialistas ocorreu em países atrasados do ponto de vista do desenvolvimento capitalista (incluídas as ciências e as tecnologias, da força e da divisão social do trabalho, e das relações entre os proprietários do capital e os produtores reais), países onde o modo de produção capitalista mal se desenvolvera ou estava muito longe de estar plenamente desenvolvidas. Na falta de indicações mais precisas sobre a transição socialista de sociedades atrasadas, algumas revoluções seguiram o modelo soviético a por meio da estatização total dos meios de produção, desconsiderando seu atraso do ponto de vista capitalista.
  1. Em todo o período após a NEP, era dominante no Partido Comunista Soviético o entendimento de que os países socialistas dispunham de todos os recursos que necessitavam para seu desenvolvimento econômico, não precisando dos países capitalistas para nada. Essa crença isolou a União Soviética, não apenas do fluxo internacional de capitais e de comércio, mas também do fluxo de tecnologias de produtos e de processos, e da elevação dos padrões de produtividade e competitividade que, num mercado mundial, são determinantes no estabelecimento dos valores das mercadorias e, portanto, dos preços e salários. O isolamento da competição capitalista mundial, ao invés de proteger a União Soviética dos efeitos maléficos da ação do capital, representou uma trava poderosa no desenvolvimento de suas forças produtivas. Outras experiências socialistas, mesmo sob a pressão do “modelo soviético” de estatização total, levaram em conta também a experiência da NEP que unia formas capitalistas com novas formas sociais de propriedade, sendo considerada uma tentativa consistente de resolver o problema da construção do socialismo em países capitalistas atrasados que haviam realizado revoluções.
  1. Em 1956, Nikita Krushov publica o “relatório secreto” em que joga sobre Stalin toda a responsabilidade dos problemas existentes na União Soviética, anunciando um vasto programa de reformas administrativas, econômicas e educacionais. Em 1959-1960, o governo soviético decidiu anunciar um plano para superar a produção industrial e a renda per capita dos Estados Unidos em sete anos, assim como um novo programa de edificação do comunismo. Realizou uma reforma rumo ao processo de descentralização econômica, na qual a execução dos planos passava para as repúblicas. Também foram criadas novas relações comerciais que aumentaram o acesso da população aos bens de consumo, permitindo uma melhora nos padrões de vida. Krushov defendeu a concorrência com o Ocidente e a coexistência pacífica entre os dois sistemas, mas não contava que os Estados Unidos apostavam na Guerra Fria para cercar e sabotar a URSS, forçando o aumento dos gastos militares e do desequilíbrio econômico. Ela incluía a rápida recuperação econômica da Europa Ocidental e do Japão, o auxílio econômico e militar a todos os países que se dispusessem a participar da cruzada anticomunista, a intervenção militar onde fosse necessário, e a ameaça do uso de armas nucleares, cuja tecnologia era monopolizada pelos norte-americanos. O plano de Krushov sofreu um duro golpe com a crise agrícola de 1962 e 1963, obrigando a União Soviética a se transformar de exportadora de trigo, em importadora, especialmente do Canadá e da Austrália. Com isso, aumentaram os desequilíbrios entre os diversos departamentos econômicos e, em especial, entre a indústria pesada, a indústria de bens de consumo e a agricultura. Após a cisão sino-soviética em 1960, a União Soviética e a República Popular da China alegaram ser as verdadeiras herdeiras intelectuais do marxismo-leninismo e os chineses foram especialmente críticos da liderança pós-Stalin na URSS, começando com Nikita Krushov. Nos governos posteriores de Leonid Brejnev (1964-1982), Yuri Andropov (1982-1984) e Konstantin Chernenko (1984-1985), a URSS ingressou num processo crescente de estagnação, impossibilitando-a de consolidar as condições para a efetiva construção socialista. Como uma experiência sitiada, o capitalismo dominante encabeçado pela OTAN apostava que o socialismo da URSS não conseguiria se sustentar por meio de sua economia, produzindo escassez e ineficiência. Nos anos 1970, já se apresentavam sinais das dificuldades de desenvolver suas forças produtivas. Mesmo assim, a URSS tinha que manter a guerra econômica, militar e tecnológica contra os EUA, sem a possibilidade de uma gradual e lenta reforma capaz de se desenvolver com novas formas de propriedade e de comércio exterior. Diante do impasse com a URSS, os Estados Unidos aumentam a aposta, aumentando seus gastos militares e isolando ainda mais o socialismo soviético. Assim, apesar de todas as reformas anunciadas e, supostamente, voltadas para superar os problemas da época de Stalin, o sistema de planejamento centralizado continuava o mesmo, assim como permanecia inalterada a total prioridade à indústria pesada, como suporte da indústria bélica. Mesmo as experiências conturbadas de abertura para o mercado na Hungria e na Iugoslávia, na década de 1970, não conseguiram levar adiante a renovação do sistema. Na década de 1980, ficou claro que havia um atraso tecnológico em todos os segmentos, resultado de anos de práticas em que as empresas estatais não sofriam concorrência do capital privado. O monopólio estatal criou uma situação economicamente insustentável. No plano externo, a crise converge com a sua maior derrota militar na Guerra do Afeganistão (1979-1989), uma guerra demasiadamente longa e cara para a URSS. Os cidadãos soviéticos tornaram-se descontentes com a guerra, que se arrastou sem sucesso. Logo após a derrocada soviética no Afeganistão, a sustentação do socialismo soviético era inviável. Nos anos 1980, a apresentação e execução dos planos de abertura política (Glasnost) e reforma econômica (Perestroika), apenas apressou a falência da União Soviética, no início dos anos 1990. A escassez de bens – inclusive alimentos – se tornou o principal foco do crescente descontentamento social, ao mesmo tempo em que o sistema soviético apresentava crescentes sinais de fadiga e fraturas, com o surgimento de máfias que traficavam os bens escassos e às quais estavam ligados dirigentes de empresas estatais, do Estado e do partido comunista. Com uma estagnação crônica, a legitimidade do Partido Comunista foi se perdendo rapidamente, até o fim do bloco socialista das repúblicas soviéticas em 1991, culminando na fragmentação política do país.
  1. Em 1989, Francis Fukuyama publicou artigo intitulado “O Fim da História?” sobre o declínio do comunismo e o triunfo do Ocidente. O esgotamento da experiência soviética seria o esgotamento do próprio socialismo como alternativa ao capitalismo. O capitalismo liderado pelos EUA ganhou e o socialismo liderado pela URSS perdeu. O capitalismo liberal passaria a ser inexorável. Sem a estrela-guia soviética, as experiências socialistas estariam fadadas ao fracasso. Os desdobramentos imediatos da crise soviética pareciam atestar esta tese. Tudo apontava para que o efeito em cadeia fosse completo. Entre 1989 e 1992 deixou de existir a grande maioria dos estados que se denominaram socialistas do mundo. A República Popular Polonesa voltou ao multipartidismo e ao capitalismo de mercado em 1990. A República Democrática Alemã foi absorvida pela República Federal Alemã. Os conflitos nacionalistas acabaram com a República Socialista Federal da Iugoslávia. Com a queda das repúblicas sociais da URSS, outros países socialistas também mudaram de regime. Em 1990, abandonam o marxismo-leninismo Argélia (república socialista apoiada pelos soviéticos desde 1962), Benin (que era Estado Socialista desde 1975), Moçambique (que desde 1975 havia adotado o governo socialista). Em 1991, o mesmo acontece no Congo (que teve um estado socialista desde 1970 sob o governo do Partido Trabalhista congolês), Guiné-Bissau (que seguia o modelo soviético desde 1974), Etiópia, Somália e Mali. Em 1992, Mongólia abandona a República Popular, criada em 1924. Ainda em 1992, Angola passa por reformas. Com a derrocada da “nave-mãe”, era apenas uma questão de tempo para que os governos socialistas “satélites” seguissem o mesmo caminho. E para os socialistas no resto do mundo, o recado estava dado: era melhor nem tentar mais porque seu fracasso seria inevitável. Busquem outro caminho dentro do capitalismo liberal, porque o socialismo real acabou.
  1. Em 1989, talvez Fukuyama estivesse certo ao apontar o colapso inevitável de experiências socialistas que buscam estatizar completamente a economia por longo prazo, mas não percebeu que as promessas do capitalismo liberal não estão conseguindo se manter em pé. Trinta anos depois, em entrevista de 2019, o próprio Fukuyama reconhece que “os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e outros países ocidentais passaram por esse período do que às vezes é chamado de neoliberalismo, em que os indivíduos são elevados, realmente colocados acima do estado, e o estado é considerado uma fonte de ineficiência e tirania potencial contra indivíduos. E acho que isso foi simplesmente levado longe demais, então acho que uma das coisas que vai acontecer é que na maioria dos países ocidentais, o neoliberalismo, nesse sentido, morreu e as pessoas vão voltar a um tipo diferente de liberalismo em que acreditavam nas décadas de 1930 e 1940. Queremos proteger os direitos individuais, mas o estado tem um papel importante na proteção das pessoas e na criação de proteções sociais na criação de sistemas de saúde e pensões e outras coisas desse tipo”. E, pelo menos desde 2016, Fukuyama vem apontando que a China é provavelmente a única alternativa realmente plausível ao estilo de democracia liberal ocidental. A China, conforme Fukuyama, concluiu um período prolongado de crescimento econômico sem precedentes, baseado principalmente na ampla mobilização de mão-de-obra e manufatura para exportação, incorporação de tecnologias e novas formas administrativas, e está mudando para um período mais fortemente baseado em serviços, demanda interna e aumento da produtividade. Em outra entrevista de 2019, Fukuyama apontou que, se Pequim conseguir controlar as tensões sociais e manter a estabilidade econômica, a China pode se apresentar como um sistema superior ao capitalismo ocidental, economicamente recessivo e politicamente imerso numa severa crise democrática com o aumento do populismo de direita, exemplificado pela eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, Brexit no Reino Unido, partidos populistas na Europa, Bolsonaro no Brasil.
  1. O que passou despercebido na visão do “fim da história” em 1989 – que inclusive conquistou diversos setores da esquerda ocidental – é que outras formas de socialismo daquele praticado na União Soviética, apesar de ainda prematuras, já estavam em marcha na China, Vietnã e Laos. Um novo modo de produção (econômico, político, cultural e social) já estava em gestação. Quando acabou a URSS em 1991, o Partido Comunista da China já estava implementando, por mais de uma década, profundas reformas econômicas e institucionais, num ambiente de abertura e reforma. Esse caminho das reformas da China influenciou o Vietnã e o Laos, que passaram a adotar políticas semelhantes a partir de 1986. Ainda durante a década de 1980, a China passou a ser reconhecida por estar se integrando ao capitalismo, com maior inserção nas cadeias produtivas internacionais, zonas industriais para exportação que passaram a beneficiar a acumulação de capital estrangeiro excedente, obtendo altas e consistentes taxas de crescimento. Assim, quando a onda pelo fim do socialismo também apareceu na China, especialmente nos incidentes da Praça Tianamenn em 1989, a ação do partido para manter o sistema socialista teve legitimidade pelos resultados que estavam sendo alcançados pelo processo de reformas de mercado. Após um período de turbulência e maior instabilidade entre 1988 e 1992, a China manteve firmemente seu processo de desenvolvimento ancorado no socialismo de mercado, fazendo gradualmente reformas visando a melhor organização das forças produtivas, especialmente as estatais, o sistema financeiro e de defesa nacional. Manteve seu crescimento em nível quantitativo e acelerado, vislumbrando as metas definidas para o fim do século. Enquanto isso, Fukuyama e muitos outros torciam para que as reformas dessem errado (colapso iminente) ou que levassem a reconversão total ao capitalismo. Dos outros dois países remanescentes do socialismo real, a Coreia do Norte se manteve na linha soviética diante do persistente impasse militar com a Coreia do Sul e o Japão. E Cuba iniciou reformas, mas o estrangulamento e o bloqueio liderado pelos EUA se tornou ainda mais acirrado, dificultando ao máximo qualquer processo de abertura. Mesmo assim, com a manutenção do socialismo de mercado na China, Vietnã e Laos, após o fim da URSS, o esperado “fim da história”, na realidade, não aconteceu.
  1. Diante deste novo cenário global e ainda devoto das virtudes do capitalismo liberal, Fukuyama aponta sua crítica ao sistema político chinês. Em entrevista de 2019, diz que “o problema na China é realmente causado por excessiva autoridade estatal que muitas vezes leva a tiranias, a resultados muito ruins. Nesse sentido, é possível respeitar a China pelas coisas que ela faz bem, mas também é muito importante ser crítico da China quando ela ultrapassa as fronteiras do que considero um regime bom e equilibrado”. Este prognóstico deve levar Fukuyama novamente ao erro. Em primeiro lugar, porque o Estado Socialista deveria recuar de seu poder em implementar as reformas se está sendo bem sucedido? Porque um sistema multipartidário e de eleições livres asseguraria para a China a continuidade do processo de reformas? O Socialismo de Mercado é uma nova formação econômico-político-social baseada nas formulações de Deng Xiaoping. Não foi a economia liberal que transformou a China numa potência global, mas o socialismo com uma economia mista, onde concorrem e cooperam – sob a mediação do Estado liderado pelo Partido Comunista – diferentes formas e relações de propriedade. Seu socialismo realista incorpora o capitalismo como força produtiva, mantendo o Estado na vanguarda da construção econômica com a propriedade social paralelamente à propriedade privada. Neste modo de produção de transição ao socialismo, cooperam e concorrem formas e relações de propriedade capitalista com formas e relações de propriedade social e estatal, assim como formas de propriedade coletiva, mista e estatal entre si. Tudo de modo a evitar a burocratização, criar uma governança mais eficiente e legítima do país, desenvolver as forças produtivas e preparar as condições objetivas para extinguir a propriedade privada quando o desenvolvimento das forças produtivas puder atender a todas as necessidades sociais. Quem garante este macroarranjo são os sistemas políticos adotados pelo Partido Comunista Chinês, com sua rigorosa formação de quadros com base no centralismo democrático, no marxismo e no socialismo.
  1. Fukuyama também enfatiza: “não acho que o modelo da China possa ser facilmente exportado para outros países que não têm as tradições culturais da China. As tradições mais antigas da China têm a ver com meritocracia, com educação, com uma burocracia que é escolhida com base no mérito, e é uma forma de governo muito autodisciplinada, da qual o Partido Comunista tem uma versão. E eu acho que é extremamente difícil estabelecer esse tipo de modelo em países que não têm as tradições confucionistas que a China tem. Se você levar isso para a América Latina ou para a África Subsaariana, onde realmente não há tradição de estado comparável à da China, isso apenas se torna uma desculpa para um tipo de governo autoritário desagradável e ineficaz”. É verdade que um “modelo chinês” não é exportável. Nenhum país tem a população e a história da China. O confucionismo é integrado à prática do socialismo chinês sem contar outras características específicas que criam uma singular sinergia, mas é pura especulação que o socialismo de mercado não possa ser aplicado em qualquer país, independentemente de suas características históricas e culturais. O socialismo de mercado ganhou espaço na Ásia com a condução política do socialismo no Vietnã e no Laos a partir de 1986. O Laos funde marxismo com budismo. E o socialismo de mercado também vêm sendo adaptado às condições nacionais em Cuba e na Namíbia.
  1. Apesar da breve experiência da NEP na Rússia durante a década de 1920 e das tentativas de introduzir o mercado no sistema soviético, especialmente na Hungria e Iugoslávia durante os anos 1970, foi com as experiências socialistas na China e no Vietnã que o “socialismo de mercado” vem ganhando mais força e melhor forma, com a duração histórica necessária para romper o subdesenvolvimento combinando o modo de produção camponês e o modo de produção socialista com o modo de produção capitalista, num tipo de economia denominada de “socialismo de mercado”. O mundo de paz e  prosperidade, prometido pela propaganda capitalista, especialmente após o fim da URSS e do socialismo do Leste Europeu, vem se transformando rapidamente não só num mundo cínico e perigoso, mas também de desemprego, pobreza e desesperança nos países que antes se arrogavam os centros desenvolvidos e ricos do planeta. Enquanto isso, a experiência da China, e também de Vietnã e Laos, nas últimas décadas demonstra que, para desenvolver as forças produtivas com estabilidade política, o sistema socialista possui aspectos realmente superiores ao capitalismo ocidental dominante.
  1.  Algumas vezes o socialismo é apresentado como algo ultrapassado e com pouca relevância na história, mas o marxismo, comunismo e socialismo não podem ser banidos enquanto o capitalismo existir. Por isso, aqueles que têm medo de perder seus privilégios econômicos e políticos no sistema capitalista procuram desacreditar o socialismo, pois sabem que é o movimento que pode subordinar os interesses privados às grandes necessidades do povo. Não é à toa que os capitalistas desencadeiam permanentemente uma ofensiva política e ideológica no sentido de consolidar a sua hegemonia sobre o povo com o objetivo de banir as ideias e práticas socialistas. No caso da China, isso é evidente. Difícil imaginar um país que tenha sua realidade tão deturpada como a China. Apesar da propaganda, a China vem provendo, segundo alguns estudiosos, a “maior transformação econômica dos últimos 250 anos” da história mundial, com relativo sucesso no que tange à melhora das condições de vida da população. A novidade deste modo de produção emergente é sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas e se subordinar a um processo de constante redistribuição de renda, de presença da sociedade e do Estado na economia através de empresas de propriedade cooperativa, pública, estatal e mista. Ao invés de adotar a cartilha neoliberal, a China modernizou e reforçou suas empresas estatais. Manteve o monopólio sobre os ramos econômicos estratégicos (financeiro, petróleo, energia, etc.), mas com a novidade de colocar as diversas estatais em concorrência, evitando a burocratização e promovendo o desenvolvimento científico. As estatais também concorrem com as empresas privadas, obrigando-as a elevar a produtividade, baixar custos e preços. A China também aproveitou os excedentes de capitais dos países em desenvolvimento com programas específicos e controlados para atrair investimentos diretos e plantas industriais, de modo que superem as lacunas de suas cadeias produtivas e introduzam tecnologias avançadas em suas empresas estatais. Com as estatais concorrendo entre si e com o mercado para desenvolver a produtividade ficou bem fácil  encontrar soluções combinando propriedades sociais e propriedades privadas, algo extremamente complexo em países capitalistas pouco desenvolvidos. Este caminho vem se consolidando pelo rápido crescimento industrial e agrícola e aumento da geração de riqueza, o que permite uma redistribuição constante da renda, embora com desigualdade. A renda das camadas mais pobres está sendo elevada, de modo a tornar o mercado doméstico o principal foco da produção industrial e os serviços públicos estão em processo de universalização. O socialismo de mercado, mais bem expressado pela experiência chinesa atual, não é uma ideia abstrata, mas ação mobilizadora social de milhões de pessoas sob a liderança do Partido Comunista com o objetivo de desenvolver as forças produtivas e populares, enfrentar as contradições do capitalismo e substituí-lo por uma nova formação social. É claro que não se trata de um sistema perfeito e imune a defeitos, retrocessos e derrotas, mas um sistema que mantém o Estado Socialista com uma mistura de vários sistemas econômicos, em que os meios de produção básicos são de propriedade estatal e/ou cooperativa, sendo operados de forma socialmente como uma economia de mercado. Os lucros gerados por empresas estatais são alocados para a remuneração direta dos empregados, ou acumulados em uma forma de financiamento público. A nação se desenvolve de forma acelerada rompendo as amarras do subdesenvolvimento. Diante de tantas transformações, tendo como núcleo a China, estaria emergindo um novo modo de produção socialista de mercado superior ao capitalismo em crise crônica?
  1. É verdade que, com o fim da URSS e a desintegração do campo socialista, a presença de China, Vietnã e Laos não consegue construir um contrapeso efetivo às tendências mais destrutivas do capitalismo. Mas é verdade também que estes países mantêm o socialismo (com mercado) como uma grande marcha de desenvolvimento que está produzindo, especialmente depois da crise de 2008 e a crise do coronavírus desde 2020, impactos profundos no capitalismo liberal-keynesiano ocidental. Ainda existe um longo caminho para o processo de desenvolvimento socialista com mercado nestes países, porém, pode ser que um socialismo que conjugue desenvolvimento nacional, com estabilidade política e crescimento econômico – como o socialismo de mercado – venha a despontar durante o século XXI como um sistema social mais dinâmico, eficaz e justo que o capitalismo. E assim, a teoria do fracasso comunista se transforma em fracasso neoliberal. Mas este processo ainda deve durar muitas décadas.

Fonte da matéria: Francis Fukuyama – quem diria – morreu em Pequim – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/francis-fukuyama-quem-diria-morreu-em-pequim/

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