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Laval: Uma nova guerra civil mundial?

Tempo de leitura: 25 min

Christian Laval“O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial”, escreve Christian Laval, professor emérito de Sociologia na Université Paris Nanterre.

“Em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal”, avalia.

Laval expõe alguns dos argumentos desenvolvidos no livro coletivo (escrito junto com Pierre Dardot, Haud Guéguen e Pierre Sauvêtre) Le choix de la guerre civile: Une autre histoire du néolibéralisme, Lux Editions, Montreal, 2021, apresentado no curso Direitas radicais e neoliberalismo autoritário, organizado pela Universidade do País Basco, com as Fundações Betiko e Viento Sur e o Centro de Pesquisa em Multilinguismo, discurso e comunicação (MIRCo).

Eis o artigo.

A situação mundial se caracteriza por uma grande crise das formas da democracia liberal clássica. Esta crise se manifestou, primeiro, por poderosos movimentos que reivindicaram uma verdadeira democracia entre 2010 e 2016. Depois, manifestou-se em um sentido completamente diferente, com a ascensão reativa de forças da extrema direita e o surgimento de governos com aspectos abertamente ditatoriais, nacionalistas, violentos, racistas, sexistas e, em alguns casos, fascistizantes. Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán e Erdogan são algumas das figuras emblemáticas que se somam na longa lista de déspotas e tiranos que fazem estragos em todos os continentes.

Ao desestimular as reivindicações democráticas, sociais e ecológicas que entram em contradição com o projeto neoliberal, estes dirigentes só conseguiram encontrar base eleitoral enaltecendo os valores morais e religiosos tradicionais e o nacionalismo dos grupos sociais mais conservadores. Estes governos não estão aí para administrar uma situação, acomodar interesses diferentes, representar a população. Realizam uma guerra contra inimigos. Esta postura guerreira parece nova, ao menos para aqueles que tinham fé nas democracias de tipo clássica.

Os liberais norte-americanos ainda permanecem sob o choque da invasão do Capitólio pelos fanatizados partidários de Trump, no dia 6 de janeiro de 2021. Como foi possível semelhante violação da democracia?, perguntam-se. Para compreender o fato é preciso adotar um ponto de vista estratégico, o de governos que estão comprometidos em uma guerra total: social, é claro, porque se busca enfraquecer os direitos sociais da população; étnica, porque pretende excluir os estrangeiros de qualquer possibilidade de acolhida e de coexistência; política e jurídica, utilizando novos meios de repressão e de criminalização da esquerda e dos movimentos sociais; cultural e moral, ao atacar os direitos individuais e as evoluções culturais das sociedades.

Esta sequência histórica, cujo apogeu foi, de momento, o dia 6 de janeiro, não cai do céu. Há várias décadas, diversos sinais permitiam pressentir tal momento político, efeito de uma combinação de diferentes fatores, embora todos ligados ao colapso da crença na representação e legitimidade das elites e da classe política. Para prevê-lo, bastava estar atento ao sentimento de exclusão e de marginalização de uma grande parte da população, a ascensão de uma cólera antissistema, e o ódio crescente às minorias, estrangeiros e inimigos internos.

Os comentaristas se contentam em estigmatizar esta reação complexa e contraditória, classificando-a como populista. Com isso, não explicam nada, embora considerem necessário preconizar a continuidade da abertura, da modernidade, do multilateralismo e, na Europa, a continuação da construção da União Europeia.

Este momento de crise não tem uma causa única. No entanto, parece que é preciso levar a sério uma delas: a implementação, há várias décadas, de um determinado tipo de governo que consegue se afastar do controle dos cidadãos para impor pela força transformações profundas das sociedades, das instituições e das subjetividades. Como não ver uma relação entre esta chamada reação populista e o neoliberalismo, que fez nascer uma nova sociedade organizada como um mercado?

Na verdade, esta reação, longe de colocar fim ao período neoliberal, constitui uma nova fase e uma nova forma do mesmo. O que estamos vendo hoje é um neoliberalismo cada vez mais violento, que se apoia nas cóleras e frustrações populares para reforçar ainda mais o império do poder sobre a população e fazê-la aceitar retrocessos sociais impossíveis de contemplar sem que ao menos uma parte consinta.

É um novo neoliberalismo? Não exatamente. Trata-se muito mais, como acaba de ser dito, de uma fase histórica em que, diante de múltiplas contestações e temíveis prazos impostos pela crise climática, para garantir a continuidade de seu projeto neoliberal, os governos só se fortalecem com as paixões populares dirigidas contra minorias, estrangeiros, intelectuais.

Com isso, obtêm certo apoio popular, deslocando os desafios políticos do campo da injustiça social para o campo dos valores da nação e a religião, desviando os medos sociais e as indignações morais para um conjunto de objetivos considerados como tantos outros desvios e ameaças: imigrantes, negros, mulheres, homossexuais, sindicalistas, militantes, intelectuais, e contra todas as forças sociais, corpos profissionais e instituições democráticas que se opõem a esta domesticação da sociedade.

O caso do Brasil é muito instrutivo deste ponto de vista. Naquele país, não existe nenhuma esfera da vida cotidiana e nenhuma instituição que não tenham sido afetadas por um retrocesso dos direitos humanos, liberdade de pensamento e igualdade. É o que demonstram os repetidos ataques contra o meio ambiente, o mercado de trabalho, o sistema de aposentadorias, a universalidade da escola pública, os direitos dos povos autóctones.

E não se deve esquecer que para esses neoliberais abertamente autoritários, como o bolsonarismo, o inimigo é acima de tudo a esquerda e o socialismo. Inclusive, é possível dizer que se trata de uma guerra civil contínua contra a igualdade em nome da liberdade. É uma das principais faces do neoliberalismo atual, visto pelo ângulo da estratégia.

Um novo fascismo?

Costuma-se falar de um novo fascismo. Embora seja verdade que o ódio e a pulsão criminosa estão no centro da expansão das formas ditatoriais de poder, como demonstra mais uma vez o caso atual do Brasil, e também a prática e a retórica de Trump, existem importantes diferenças em relação ao fascismo clássico. Ignorá-las levaria ao erro de diagnóstico. Diferente dos anos 1930, que viram a emergência dos fascismos europeus como reação diante do deixar fazer do liberalismo econômico e suas consequências, os neoliberalismos nacionalistas, autoritários e xenófobos de hoje em dia não pretendem reenquadrar o mercado no Estado total, nem mesmo, mais simplesmente, enquadrar os mercados, mas pretendem, ao contrário, acelerar a extensão da racionalidade capitalista à custa de aumentar ainda mais as desigualdades econômicas, consequência inevitável do livre jogo da concorrência e das privatizações.

Nesse sentido, estes governos não viram as costas para o neoliberalismo, como alguns afirmam de forma imprudente, mas desnudam a lógica intrinsecamente autoritária e violenta do próprio neoliberalismo. Embora o Brasil seja o espelho crescente de uma guerra total contra as instituições da sociedade que não se dobram ao modelo neoliberal, seria errôneo pensar que esta violência estatal se circunscreve aos chamados países periféricos.

Também no próprio centro dos países capitalistas mais desenvolvidos se exerce esta violência, ainda que sob formas diferentes. As violências policiais com as quais o governo liberal de Macron queria impor medidas impopulares, em 2018, ou o envio de tropas federais por Trump contra os manifestantes de Portland e de Chicago e a forma posterior de acender o fogo questionando o resultado das eleições presidenciais que eram desfavoráveis a ele, são exemplos recentes.

Evidentemente, essas formas de violência saem do marco político liberal clássico, baseado desde o Iluminismo nas liberdades individuais e coletivas, no respeito ao sufrágio universal, na pluralidade de opiniões, na defesa do conhecimento racional e no respeito à verdade. Contudo, não nos deixemos confundir pela idealização do modelo político clássico nas democracias ocidentais.

Se o neoliberalismo pôde se impor nos Estados Unidos e na Europa por governos legalmente eleitos (Giscard, Mitterrand, Thatcher, Blair, Reagan, Clinton, Schmidt, Kohl), não se privou, e há muito tempo, do uso da força legal, sobretudo policial e judicial, e de todos os tipos de medidas de coação regulatórias, administrativas e disciplinares à disposição dos Estados. Se estes vêm reforçando há muito tempo a vigilância dos indivíduos em nome da luta antiterrorista, as potências capitalistas privadas não ficam para trás, impondo, sobretudo aos assalariados, uma gestão baseada no controle individual que em parte destruiu a capacidade de defesa coletiva na esfera do trabalho. Mas, então, por que é possível falar em uma nova fase do neoliberalismo?

A confissão da violência

O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial. A expressão guerra civil mundial foi utilizada, desde a sua invenção por Carl Schmitt, em vários sentidos diferentes. Para ele, desde meados dos anos 1940, a Weltbürgerkrieg se refere ao final das guerras interestatais próprias do mundo westfaliano e ao nascimento de guerras assimétricas, realizadas em nome de um ideal de justiça que permite às superpotências exercer um poder de polícia no marco de um direito internacional renovado e exercido com uma vontade missionária.

Para Arendt, a expressão se refere muito mais à guerra travada pelos regimes totalitários – nazismo e stalinismo – que, apesar de importantes semelhanças, não puderam evitar o enfrentamento direto por causa de sua vontade expansionista. Essa forma de análise foi retomada por Ernst Nolte, em sua obra La guerra civil europea, 1917-1945. Outros autores assumiram esta expressão para falar do confronto internacional entre as forças do progresso, surgidas do Iluminismo, e o fascismo. Foi o caso de Eric Hobsbawm, em A era dos extremos: o breve século XX.

Evidentemente, utilizamos a expressão em um sentido muito diferente, por isso a importância do adjetivo nova. A nova guerra civil mundial não opõe diretamente uma ordem global de tipo imperial, mesmo que seja dirigida por uma potência hegemônica, à população, como também não opõe dois regimes políticos ou dois sistemas hegemônicos entre si. Opõe Estados, cujos meios de comunicação estão monopolizados por oligarquias agrupadas, a amplos setores de suas próprias populações.

Mas qual é o objeto desta guerra? Oficialmente, trata-se de se opor a qualquer forma de intrusão de um inimigo exterior e de combater todos os seus aliados que, no interior, minam a unidade nacional, a homogeneidade do povo, a grandeza e a identidade da nação. Pode-se dizer que, para os defensores de um capitalismo sem fronteiras, é paradoxal inflamar as paixões com um nacionalismo exacerbado e com um racismo pouco velado, mas, na última década, já se provou que a divisão do povo e a inflexão de setores inteiros da população contra seus próprios interesses significaram enormes êxitos políticos.

Nesse sentido, o Brexit é uma obra-prima do gênero. A França oferece um exemplo muito interessante de uma manobra política bastante surpreendente. Desde o outono de 2020, enquanto se esforça para conter a epidemia e multiplica seus erros de gestão, o governo se lançou em uma ampla campanha de caluniosos ataques contra as universidades, em especial contra as ciências sociais, acusadas de estar “pervertida pelo islamo-esquerdismo”. A palavra se refere a um puro fantasma, construído seguindo o modelo do judaico-bolchevismo dos fascistas e os nazistas de antes da guerra.

O ministro da Educação nacional, assim como o do Ensino Superior e o do Interior (que dirige a polícia), durante meses, foram se revezando para fazer a opinião pública acreditar que o terrorismo encontrava apoio no meio universitário, que estaria contaminado pelos estudos pós-coloniais, decoloniais e outras teorias do gênero. É assombroso que tal quantidade de ignorâncias e de calúnias tenham sido emitidas pelos representantes de um governo que se diz liberal. Em algum momento, Macron não se apresentou como o anti-Orbán na Europa?

Deve-se concluir: esse discurso de ódio de tipo fascistoide nada mais é do que uma versão local de uma lógica guerreira mais geral que consiste em designar, neste caso, no corpo de universitários e pesquisadores, o inimigo a ser esmagado, e que pode encontrar outros alvos em outros lugares ou mais tarde.

A palavra guerra não pode ser tomada, aqui, como uma simples metáfora. A luta estratégica pela dominação à qual se dedicam os agentes políticos, econômicos e intelectuais do neoliberalismo, às vezes com o pretexto de lutar contra o terrorismo ou o islamismo radical, pretende consolidar o poder das oligarquias dominantes por outros meios distintos ao da confrontação pacífica de opiniões.

Para dizer de outra maneira, em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal. Ellen M. Wood chama isso de guerra sem fim (infinite war): a guerra neoliberal não tem objetivos limitados, como seria a destruição de um exército inimigo ou a conquista de um território, mas é marcada pelo objetivo ilimitado da dominação do Estado sobre a população.

A guerra em questão requer todos os meios pelos quais o Estado afirma seu domínio sobre a população, começando, para além do Exército, pela Polícia e a Justiça e, claro, pelos meios de comunicação de massas e as tecnologias de vigilância, o que supõe a estreita subordinação, ou ao menos a neutralização dos agentes do Estado para que cumpram da melhor forma possível sua função de dominação. A situação presente nos confirma o que dizia Foucault quando, ao contrário de Clausewitz, afirmava em seu curso, A sociedade punitiva, que “a política é a continuação da guerra por outros meios” (Foucault, 2013: 29).

Maximizar a divisão das forças populares por meio da inflamação nacionalista e racista, mobilizar uma parte da população contra os intelectuais irresponsáveis e perigosos e, por fim, encontrar um inimigo a combater não é um fim em si. Não há nada de gratuito em designar um inimigo, se a política tem alguma racionalidade. Mas qual é o inimigo último? Tem como nome genérico a igualdade e aqueles que a almejam.

O neoliberalismo como estratégia política contra a igualdade

É claro, não existe uma única forma de neoliberalismo que seria idêntico em todas as partes. A ordem econômica mundial é construída se apoiando em estratégias nacionais diferenciadas e singulares em cada ocasião. Esta plasticidade e este caráter proteiforme do neoliberalismo devem nos prevenir contra qualquer tentação essencialista, embora não por causa disso devemos deixar de destacar a lógica antidemocrática inerente ao neoliberalismo desde a sua formação.

O neoliberalismo autoritário não se opõe a um neoliberalismo que antes não fosse. O neoliberalismo assume uma lógica de enfrentamento violento com todas as forças e as formas de vida que não cabem no marco de um mundo hierárquico e desigual baseado na concorrência. E, para se realizar, este projeto neoliberal que pretende a construção de uma sociedade de mercado pura requer a violência do Estado.

Falar em nova guerra civil mundial é, portanto, reinterpretar o neoliberalismo pelo ângulo de sua violência intrínseca e, sobretudo, questionar a maneira acadêmica de compreendê-lo como conjunto de doutrinas ou como posições puramente ideológicas. É aceitar o campo em que se desenvolve, o da luta política pela dominação, e entendê-la como uma estratégia política de transformação das sociedades em ordens concorrenciais que supõem o enfraquecimento ou a eliminação das forças de oposição.

O termo neoliberalismo é objeto de um uso inflacionista que, hoje em dia, provoca certa confusão. O viés universitário, que Bourdieu chamaria de escolástico, consiste em não ver no neoliberalismo mais do que uma corrente intelectual com fronteiras também problemáticas, em que o estudioso se dedica a discutir sua unidade e a destacar sua diversidade, às vezes até negando sua existência em nome do número e diferença dessas variantes.

É muito fácil constatar, e isso não deixou de ser feito doutamente, que desde os anos 1920 e 1930 existem divergências epistemológicas e ontológicas entre as diferentes correntes que hoje são chamadas, retroativamente, de neoliberais. Embora o conhecimento direto dos autores seja indispensável, limitar-se à história das ideias é ignorar que o neoliberalismo, na história política efetiva, não é apenas um conjunto de teorias, uma coletânea de obras, uma série de autores, mas um projeto político anticoletivista efetivado por teóricos e ensaístas que também são empreendedores políticos.

Durante décadas, não pararam de buscar apoios e aliados entre as elites políticas e econômicas, construíram redes, criaram associações e think tanks para ganhar influência, desenvolveram uma verdadeira visão do mundo e até mesmo uma utopia radical, que permitiram o triunfo da governamentabilidade neoliberal, em quarenta anos de incansáveis esforços. O neoliberalismo, portanto, não é só Hayek, ou Röpke, ou Lippmann, é uma vontade política comum de instaurar uma sociedade livre, baseada principalmente na concorrência, em um marco determinado de leis e princípios explícitos, protegido pelos Estados soberanos, encontrando na moral, na tradição e na religião ancoragens para uma estratégia de mudança radical da sociedade.

Em outras palavras, o neoliberalismo, como o socialismo, como o fascismo, deve ser compreendido como uma luta estratégica dirigida contra outros projetos políticos qualificados pelos neoliberais, globalmente e sem muitas nuances, como coletivistas, como o objetivo de impor às sociedades certas normas de funcionamento de conjunto, sendo a concorrência a principal delas para todos os neoliberais, já que é a única que assegura a soberania do indivíduo-consumidor.

Somente esta dimensão estratégica e conflituosa permite compreender tanto as condições de surgimento como a sua continuidade no tempo e as consequências para o conjunto da sociedade. Sem esta definição política do neoliberalismo, nos perdemos no imbróglio das posições doutrinais e na busca de pequenas diferenças individuais, esquecendo o principal: o projeto unificador de uma empresa política, ao mesmo tempo militante e governamental.

Quando nos deslocamos do campo puramente teórico ao dos preceitos práticos e as razões para atuar, descobrimos uma grande confluência de todas estas diferentes correntes no objetivo político perseguido, o que permite falar justamente de uma racionalidade política do neoliberalismo perfeitamente identificável. Este foi o enfoque de Foucault, às vezes mal compreendido por aqueles que o censuram por ter ignorado a heterogeneidade das escolas teóricas do neoliberalismo. O que o unifica relativamente é o objetivo político de instauração ou de restabelecimento de uma ordem de mercado ou de uma ordem de concorrência, considerada não só como a fonte de toda prosperidade, mas como o fundamento da liberdade individual.

Essa ordem pode ser concebida de forma diferente, seja como uma ordem espontânea que reivindica ser confirmada e apoiada pelo marco jurídico (o neoliberalismo austro-americano de Hayek), bem como uma ordem social construída por uma vontade normativa do legislador (o ordoliberalismo alemão). Mas todo o cosmos neoliberal está convencido, antes de tudo, que é necessária uma ação política para realizar e defender tal ordem social.

Esta também foi a base do acordo formulado, pela primeira vez, durante o Colóquio Lippmann, de 1938, e em uma segunda com a fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em 1947. Todos os grandes combates posteriores do neoliberalismo político confirmam este acordo, e nenhum neoliberal deixará de denunciar o Estado de bem-estar e de lutar contra o comunismo [1].

Mas não é preciso muita exegese para compreender como todos esses empreendedores políticos interpretam o sentido de sua própria ação. O dizem e o escrevem com todas as letras. Assim, Röpke: “A humanidade se deixará levar pelo coletivismo, enquanto não tiver em vista outro objetivo palpável, dito de outra maneira, enquanto não tiver frente ao coletivismo um contraprograma que possa entusiasmá-la” [2]. E se equivoca quem pense que existam ordoliberais mais sociais, mais moderados e mais razoáveis, que esperam do Estado serviços indispensáveis, e neoliberais mais radicais, os austro-americanos, que querem eliminar completamente o Estado [3].

Exceto alguns anarco-libertários que mantêm a chama do foco utópico na versão radical de um Von Mises, a imensa maioria dos teóricos do neoliberalismo que querem desempenhar um papel político eficaz tem uma concepção positiva do Estado, ainda que muito diferente dos promotores do Estado social. Quer se chamem Rougier, Lippmann, Eucken, Hayek ou Röpke, todos concordam em fazer do Estado o guardião supremo das leis fundamentais do mercado, papel eminente que deve obrigá-lo a se aliviar das responsabilidades sociais que os coletivistas o fizeram suportar indevidamente desde o final do século XIX.

O mercado acima de tudo

Os neoliberais têm a convicção de que o que está em jogo com a ordem de mercado é muito mais do que uma decisão de política econômica, é uma civilização inteira, baseada na liberdade e na responsabilidade individual do cidadão-consumidor. E como a sociedade livre se baseia em seu fundamento, o Estado, com todas as suas prerrogativas soberanas, conserva um eminente papel a desempenhar, e faz disso o dever de utilizar os meios mais violentos e mais contrários aos direitos humanos, caso a situação o exigir.

O mercado competitivo é uma espécie de imperativo categórico que permite legitimar as medidas mais extremas, inclusive o recurso à ditadura militar se necessário, como ocorreu com o golpe de Estado no Chile, aplaudido pelas cúpulas intelectuais do neoliberalismo mundial. Para dizer em uma linguagem um pouco envelhecida, mas que expressa claramente as coisas: o mercado é a nova grande razão do Estado neoliberal. Este ponto fixo explica a plasticidade política do neoliberalismo.

Em algumas ocasiões históricas, o neoliberalismo parece se confundir com o advento ou o restabelecimento da democracia liberal, em outras circunstâncias, quando a ordem de mercado parece ameaçada, conjuga-se com as formas políticas mais autoritárias, chegando até a violação dos direitos mais elementares dos indivíduos. E em muitos outros casos, a democracia parlamentar se vê pouco a pouco esvaziada de sua substância por um Estado policial que exerce vigilância e malevolência, diante de tudo o que possa ameaçar a sacralizada ordem da concorrência. Assim é possível considerar as circunstâncias tão distintas que atravessou o neoliberalismo, dos anos 1930 até hoje.

A refundação teórica do liberalismo nos anos 1930 pretendia ser uma reação às formas ditatoriais do comunismo russo, do fascismo italiano e do nazismo alemão, todas entendidas como a consequência lógica do dirigismo e do nacionalismo econômico. O ordoliberalismo alemão, de finais dos anos 1940, foi a principal fonte da refundação de uma Alemanha ocidental desnazificada e democratizada e, mais tarde, nos anos 1950 e 1960, o principal fundamento doutrinal de um mercado comum europeu, contemplado como a base das instituições democráticas e da paz.

Mais adiante ainda, entre os anos 1970 e inícios dos anos 1990, a lógica neoliberal avançou à medida que ocorreu o enfraquecimento e a posterior queda dos regimes comunistas, e acompanhou o progressivo desaparecimento das ditaduras militares anticomunistas, tanto na Europa como na América Latina. Graças ao mercado universal que estava sendo construído, podia parecer que o Estado jamais poderia esmagar a sociedade, oprimir os indivíduos, bloquear a informação. A abertura do mundo exigia um Estado apaziguado, respeitoso com os cidadãos, não desejar mais controlar e reprimir a população.

Inclusive, a globalização foi entendida por certo número de ensaístas e jornalistas como o meio mais radical e mais eficaz de estender as liberdades políticas à China! As próprias guerras mudavam de sentido: não derivavam mais de nações inimigas, não pretendiam conquistar, opunham a civilização do Bem às forças obscuras do Mal. A grande ilusão, que favoreceu justamente o desenvolvimento do neoliberalismo, foi ter acreditado no casamento feliz entre o mercado e a democracia.

Essa época acabou. É o momento do enfrentamento brutal contra os revoltosos e descontentes, da instrumentalização da justiça e o exercício da força desencadeada pelos policiais. Mas o mais novo e desconcertante, na atualidade mais recente, é sem dúvida a nova conjugação entre o neoliberalismo e o populismo nacionalista mais autoritário, como se, na gama de técnicas para impor a liberdade dos mercados contra todas as reivindicações de igualdade, novos poderes tivessem conseguido a façanha de desviar a cólera das massas e de a fazer servir, por incrível que possa parecer, para promover o neoliberalismo mais radical.

Um erro constante na ciência política consiste em simplesmente opor progressistas da globalização a populistas nacionalistas. A situação contemporânea exige mais sutileza na análise. O neoliberalismo de hoje não é mais o de ontem, está dividido entre versões aparentemente muito diferentes, o que pode ser a melhor garantia para a sua sobrevivência e reforço.

Assim como a crise econômica e financeira de 2008 foi uma bela oportunidade para se ir mais longe ainda na via neoliberal, a atual crise da representação, no centro da democracia liberal, oferece às forças conservadoras a oportunidade para mobilizar as massas mais desfavorecidas e mais desesperadas para colocá-las a serviço de uma forma de neoliberalismo tão turvador que é difícil identificá-lo como tal, já que é ao mesmo tempo nacionalista, reacionário e racista. E enquanto outrora o neoliberalismo se baseava no medo fóbico das massas, fonte de todas as derivas coletivistas, agora parece se transformar em uma espécie de fundamentalismo da nação e do povo.

O aspecto já habitual de usar a violência neoliberal contra as instituições e as pessoas força a interrogar de uma forma nova a história do neoliberalismo em suas relações com a violência e o Estado. A questão política e teórica em questão é se as aparências liberais, pluralistas, abertas, modernistas do neoliberalismo, que serviram para seduzir a novas gerações urbanas, culturalmente avançadas e em sua época tecnologicamente de ponta, não foram iscas que dissimularam, durante um período que já ficou para atrás, o caráter profundamente agressivo e regressivo de uma estratégia que hoje se avalia melhor, pelos obstáculos e contestações que encontra e que precisa superar por todos os meios.

Referência

Foucault, Michel (1992). Genealogía del racismo. Madrid: Ed. de La Piqueta.

Notas

[01] Quando em 1948 os ordoliberais alemães passaram à ação para convencer os dirigentes alemães da dupla zona anglo-americana de liberar os preços e reformar a moeda, o primeiro número de seu órgão de combate, o Ordojahrbuch, que se apresentava como o manifesto do ordoliberalismo, colocou como introdução um grande texto de filosofia social de Hayek. “O verdadeiro e o falso individualismo”, F. Hayek, “Der Wahre und falsche Individualismus”, Ordojahrbuch, nº 1, 1948. Cf. Patricia Commun, Les ordolibéraux, Histoire d’un libéralisme à l’allemande, Les Belles Lettres, 2016.

[02] Citado por Jean Solchany, Wilhelm Röpke, l’autre Hayek, Aux origines du néolibéralisme, París, Publications de la Sorbonne, 2015, p. 85.

[03] A biografia de Röpke, de Jean Solchany, oferece uma negação definitiva das interpretações que veem no sociólogo liberal um contrapeso moderado ao ultraliberalismo de Hayek. Demonstra que Röpke é muito mais radical na crítica da modernidade democrática do que Hayek, até o ponto de condenar a descolonização e aprovar o apartheid sul-africano.

Fonte da matéria: Laval: Uma nova guerra civil mundial? – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/outrasmidias/laval-uma-nova-guerra-civil-mundial/

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