Saúde

A conveniente ilusão da saúde mental individual

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André Carvalhal – Para começar a escrever este texto, ‘dei um google’ em “pandemia e saúde mental”, na intenção de encontrar algum artigo científico que tratasse do tema. O primeiro resultado trazia uma espécie de mensagem padrão, do próprio Google, com algumas frases e links organizados.

Elas diziam:

“SUPERAÇÃO – Problemas de saúde mental são comuns. Pare, respire, pense. Converse com outras pessoas. Mantenha uma rotina saudável. Seja gentil com você e com os outros. Peça ajuda se precisar. Consulte um médico de confiança para receber orientações adequadas”.

Pronto. Não era o que eu queria, mas era o que eu precisava para começar a escrever este texto (e ir além do contexto da pandemia). Há um tempo tenho sentido um grande desconforto com a forma o tema saúde mental tem sido tratado. Não só pela linguagem e conteúdo “gourmetizado” sobre a psicanálise que vejo crescer ou pela disseminação da “psicologia fastfood” nas redes sociais, mas principalmente por ver poucas pessoas falando sobre as verdadeiras raízes da questão.

Vale deixar claro: não sou profissional de saúde. Sou um escritor. Estudo e investigo aquilo que quero aprender, e é a partir desta perspectiva que falarei. Fique à vontade para se aprofundar mais e estabelecer um olhar crítico ao que trago aqui (é disso que precisamos).

Então voltemos ao resultado do Google: “SUPERAÇÃO”. Eu leio e penso que vivemos tempo duros, tão utópicos quantos distópicos, e a ideologia neoliberal quer a todo momento lançar sobre o indivíduo a responsabilidade por seus problemas e pela cura deles.

Então se você tem um problema de saúde mental, é você que deve superá-lo.

“Problemas com saúde mental são comuns”. – São comuns? Mesmo? Eu entendo a intenção dessa fala: não devemos estigmatizar o problema, criar nenhum tipo de barreira de diálogo. Mas será que não estamos vendo uma banalização da saúde mental? Nas entrelinhas, o texto do Google diz: “Todo mundo tem problemas de saúde mental e OK. Viva com isso. Ou supere você mesmo”.

A mensagem que recebemos é “Respira. Inspira”. Certamente não sou contra respirar, mas percebo a superficialidade desses discursos

“Esta semana várias amigas e amigos me ligaram chorando, sem saberem que eu também estava. Parecia um surto coletivo. Talvez seja. Certamente é”. Esse post do artista Felipe Morozini reproduzia o que eu tinha acabado de falar com outro amigo. Estamos vivendo a maior crise sanitária e de desgoverno da história daqueles que estamos vivos (a esta altura não seria errado dizer “que sobrevivemos”). As consequências da pandemia e dá má gestão das crises que decorreram dela, podem causar nas pessoas os mesmos efeitos de um estresse pós traumático, diz o psicólogo Lucas Veiga.

Individualismo

Mas a mensagem que recebemos é “Respira. Inspira”. Certamente não sou contra respirar, mas percebo que a superficialidade desses discursos, e até mesmo do que é saúde mental, traz um outro problema, que é a individualização da saúde mental.

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No final do ano e no Carnaval, vimos diversas “pessoas de bem”, amigos e amigas próximos até pessoas que amamos, confiamos e que até então achávamos coerentes buscarem um tempo e espaço “para respirar”. Uma viagem para Bahia, para a Amazônia, atrás de um “respiro”, um “contato com a natureza” e “melhorar a saúde mental”, após um ano muito difícil. E fizeram isso mesmo sabendo de todos os riscos envolvidos e as previsões de colapso, que semanas após se confirmaram.

“A noção de que a saúde mental é algo circunscrito aos limites do próprio indivíduo, tem a ver com uma lógica atomista liberal, que tenta explicar a realidade sempre a partir da experiência individual dos sujeitos, deslocados da realidade social. Neste cenário, o sujeito é compreendido como ‘proprietário de si’, de sua ‘propriedade privada’ que é o seu próprio corpo – o que lhe daria o direito incontestável de fazer uso como bem entender deste ‘corpo propriedade’ – ignorando que ninguém vive isolado no mundo, mas sim em relação com outras pessoas”, diz Dassayeve Távora Lima, psicólogo e mestrando em Psicologia e Políticas Públicas.

A lógica (muitas vezes criticada por essas mesmas pessoas que foram em busca de um ‘respiro’) é a mesma de quem não quer tomar a vacina — justificando que se vacinar é uma escolha e não uma ação coletiva. E também de quem diz “ninguém pode me obrigar a usar máscara”. Minha intenção é refletir sobre as forças que contribuem com a pandemia (e o que decorre dela), que na verdade é o que está causando o mal-estar.

O enfraquecimento do isolamento social sob a justificativa de que é necessário “respirar” para o bem da saúde mental, também reforça a lógica individualista (e é impossível não relacionar à própria doença que tem como sintoma a falta de ar e a necessidade de “respiradores” em casos mais graves).

“Que saúde mental é essa que demanda aglomerações em meio a pandemia? Que ignora mais de 200 mil mortos no País? E como fica a saúde mental de quem perdeu seus entes queridos? questiona Dassayeve em seu perfil @saudementalcritica no Instagram. Ele nos alerta da urgência de discutir saúde mental por uma perspectiva coletiva e politizada.

Medicalização x politização

“Consulte um médico de confiança para receber orientações adequadas”, é a última mensagem do resultado da busca. Quem tem a chance de procurar um, muitas vezes recebe, junto com o diagnóstico, prescrição de medicamentos para “regular” algum “desequilíbrio químico do cérebro”.

Sem querer demonizar o uso de medicamentos, nem quem encontra alívio no uso, não podemos negar que eles dão conta de tratar as “consequências”. Como diz o psicanalista Jorge Forbes: “os remédios resolverão os mal-estares das doenças a que se dirigem, mas não o mal-estar de viver”.

Relacionar a nossa saúde mental (e problemas como ansiedade, stress, depressão…) a “desequilíbrios químicos” e até espirituais, sem considerar as causas sociais sistêmicas faz com que a gente viva sempre remediando (com trocadilho), sem tratar a causa.

Diversos autores fazem esse tipo de relação:

Para Deleuze e Guattari, a esquizofrenia, é a condição que demarca os limites exteriores do capitalismo, o transtorno bipolar é a patologia mental própria ao “interior” do capitalismo.

Christian Marazzi pesquisa as conexões entre o aumento da bipolaridade e o contexto do pós-fordismo.

Mark Fisher diz que “o capitalismo alimenta e reproduz as oscilações de humor da população em um nível nunca antes visto em outro sistema social”.

Oliver James aponta para significativos aumentos nos índices de “transtornos psíquicos” junto à industrialização.

O psicólogo Jay Watts diz que “pobreza, desigualdade, estar sujeito ao racismo, ao sexismo, à demissão e à uma cultura competitiva aumentam a probabilidade de sofrimento mental”.

Lucas Veiga, que é mestre em Psicologia e especializado em psicologia negra diz estar certo de que o sofrimento psíquico é um problema político. “Sintomas como ansiedade, depressão, compulsões, insônia e burnout estão cada vez mais presentes na clínica. Estes sintomas são produtos da situação que estamos vivenciando, efeitos diretos na saúde mental das pessoas provocados pelo contexto político”.

Em sua avaliação, promover saúde mental no Brasil passa, necessariamente, por distribuição de renda e promoção de justiça social.

“Se o adoecimento psíquico é efeito de como a sociedade é organizada e gerida, a promoção de saúde mental só é verdadeiramente efetiva quando novos modos de organização forem construídos. É neste ponto que a clínica e a política se transversalizam. Por mais fundamentais que sejam as terapias de cuidado, elas são insuficientes quando se trata, por exemplo, de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social. Não há terapia capaz de reduzir a ansiedade de uma mãe que não sabe se vai poder alimentar filhos”.

Jay Watts diz: “Governos e farmacêuticas estão financiando  estudos que analisam a genética e biomarcadores físicos em oposição às causas ambientais do sofrimento. Há pouca vontade política de relacionar o aumento do sofrimento mental com desigualdades estruturais, embora a associação seja robusta e muitos profissionais pensem que esta seria a melhor maneira de enfrentar a atual epidemia de transtornos mentais”.

A individualização dos distúrbios mentais é proporcional à sua despolitização. Considerá-los um problema químico e biológico individual dá uma vantagem enorme ao capitalismo e aos sistemas políticos dominantes. Primeiramente, porque cria um mercado enormemente lucrativo para multinacionais farmacêuticas e todo mercado de “bem estar”. Em segundo lugar, porque não estimula a mobilização coletiva em prol da resolução daquilo que de fato precisa ser feito. “Mitigar nossas possibilidades de articulação e vínculo com o outro faz parte do projeto de poder dominante”, diz Lucas.

Entre as toxinas do capitalismo, a necropolítica daqueles que tem o poder de governar, passando pelas síndromes (de impostoras) impostas pela cultura meritocrática, “repolitizar” a saúde mental através de uma perspectiva coletiva é urgente.

Como diz Lucas Veiga, “se entendemos que o sofrimento psíquico é um problema político, podemos canalizar as forças que temos para a resolução desse mal-estar. Resolver o que nos adoece coletivamente é importante também para não canalizarmos nossas angústias nas nossas relações afetivas”.

“Estamos vendo e vivendo o colapso do sistema e da natureza. Mas temos que entender que não estamos sozinhos”, diz Felipe Morozini. “Está todo mundo com a mesma sensação de fim dos tempos. Mas talvez seja o começo de outros.”

Mas para que seja de fato o início de um novo tempo, se faz necessária uma nova mentalidade, uma nova subjetividade, mais inclusiva, empática e coletiva.

Caso contrário nossa “saúde mental individual” será sempre uma conveniente fantasia.

Fonte da matéria: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-conveniente-ilusao-da-saude-mental-individual/#.YFlgvYlw95w.facebook

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