Sociedade

Por uma esquerda que não odeie o dinheiro

Tempo de leitura: 17 min

Christian Ingo Lenz Dunker – Enquanto não inventarmos uma nova maneira de fazer circular o dinheiro sem que ele seja um pecado laico entre nós, será difícil ganhar eleições, se apresentar publicamente sem ser percebido como hipócrita ou arrogante, e recuperar a nossa capacidade coletiva de sonhar.

Há muito tempo venho observando certos comentários críticos no que diz respeito à circulação de dinheiro no contexto do campo progressista. Revistas de cultura são criticadas por ambicionarem ganhar dinheiro com o conteúdo que produzem, em vez de simplesmente disponibilizá-lo gratuitamente. Ciclos de conferências, envolvendo palestrantes internacionais e custos elevados de produção, são criticados por cobrarem valores, ainda que módicos, de entrada. Mesmo na universidade pública onde leciono, a USP, os alunos acham uma afronta ter que comprar livros em vez de poder usufruir de cópias ou PDF livre. É o jeito básico e cotidiano de protestar contra o capitalismo, ali onde ele parece estar mais próximo de nós, nas trocas comerciais, especialmente no espaço dos campi universitários onde queremos fazer valer o ensino público e gratuito.

Mas a coisa começou a soar mal quando vi três pessoas que vendiam café e pequenas refeições serem convidados a se retirarem da USP, sob aplausos, porque estavam praticando comércio irregular, em local fora das normas técnicas de construção e que ademais não resistiam à inspeção sanitária. Sim, deviam passar por editais, fazer frente às exigências e adequações tarifárias… Mas não conseguia deixar de ver três pessoas negras, periféricas, duas delas mulheres, desempregadas, que faziam parte de nossa comunidade há anos, sendo expulsas por “excesso de capitalismo”. O gosto amargo na boca aumentou quando vi meus alunos mais favorecidos pegarem seus carros para comer fora do campus, enquanto os alunos mais pobres se viam privados de seu “rango” mais barato e acessível. Ali onde antes todos comíamos juntos, mesmo que irregularmente, restava agora um lugar limpo e vazio: a desertificação do espaço público.

O problema assumiu outra proporção para mim quando participei, recentemente, de um seminário sobre urbanização e educação, no qual discutia-se um paradoxo que atravessa a cidade de São Paulo. Há uma zona central, que vive na legalidade, com alvarás e arquitetos, com regras de zoneamento, mas também com práticas tácitas de ilicitude e corrupção, com grupos privados associados a interesses públicos, que dominam bairros inteiros negociando e empreitando oportunidades construtivas. Do outro lado, há uma São Paulo informal, que é a que mais cresce. São os puxadinhos, as lajes, as ocupações, as construções irregulares e os arremedos construtivos. Nela o dinheiro circula sem recibo, as inspeções são raras e via de regra seu contato com o Estado sofre do mesmo efeito punitivo que testemunhei em primeira mão na pequena lanchonete da faculdade de psicologia.

Moral das histórias. Há algo profundamente equivocado quando tratamos pequenos comerciantes, que empreendem seu negócio tentando sobreviver ao caos do capitalismo neoliberal (e particularmente quando ele possui alguma relação com educação, cultura ou saúde), de forma disciplinar e discursiva semelhante ao que trataríamos uma grande indústria ou corporação, cujo representante nunca estará na nossa frente, nem com ele conseguiremos falar em vida. O efeito que quero descrever é mais o menos o seguinte: como o capitalismo não é tangível, no seu núcleo, ele nos força a atacar sua própria periferia, porque é com ela que conseguimos contato. Com isso ele cria um colchão adicional de segurança para si, com divisões infinitamente pequenas no interior da periferia. Isso substitui a consciência de classe por sentimento de grupo e dissemina a moral do ressentimento contra ricos, privilegiados e elites. Logo, aquele que prospera e avança, acumulando dinheiro, torna-se imediatamente um inimigo traidor. Essa ilação fez a festa da narrativa evangélica da teologia da prosperidade, simplesmente com a fagulha moral de que “não há nada errado com o desejo de enriquecer”.

A chegada da linguagem digital e o imenso repertório de conteúdo que ela disponibilizou gratuitamente, mudou a representação social do capitalismo, ou seja a ideologia. O enfraquecimento das formas históricas de luta, baseadas em sindicatos e organização de trabalhadores, bem como a percepção de que há pessoas com muito mais dinheiro do que o razoável nos trouxe a esta posição de resistência que, por falta de nomeação mais rigorosa, chamo de “uma esquerda que odeia o dinheiro”.

“A psicanálise nos ensinou que a culpa é um sentimento de baixíssima potência transformativa. Infelizmente, é justamente nesse tipo de retórica que vejo o melhor desta nova geração crítica investir suas forças e recursos.”

A desagradável notícia aqui é que não há ninguém que esteja fora do capitalismo, portanto, que possa se colocar legitimamente do alto da montanha a condenar a miséria do mundo, tal qual a bela alma de Hegel. Isso começa a acumular curtos-circuitos quando a narrativa liberal-conservadora traduz essa atitude em hipocrisia, mentira e dali a pouco mau-caratismo. Ocluindo a discussão sobre suas formas e sua história, sobre sua incidência diferencial entre identidades (inclusive a identidade de privilegiados e periféricos), a esquerda tem como tarefa propor uma outra maneira de fazer circular o dinheiro, em vez do projeto de ocupar o Estado para ser seu sócio no tipo de capitalismo que ele propõe e no tipo de ocupação do espaço público que ele legisla.

Por trás dessa esquerda que odeia o dinheiro não encontramos Marx nem Adorno, tampouco Losurdo ou Žižek, mas uma espécie de crítica moral do capitalismo. Tudo se passa como se o problema da forma mercadoria pudesse ser reduzido às atitudes de pessoas ruins, gananciosas demais, hedonistas que sofrem com ambição descontrolada, o que as leva a querer ter desenfreadamente mais do que podem gastar. Isso coloca a esquerda no lugar discursivo de quem quer limitar o gozo, reduzir o excesso, conter a liberdade e restringir experiências de satisfação: tudo isso ligado ao dinheiro.

Nessa chave de compreensão, tudo se passa como se o problema da alienação fosse apenas a falta de educação formal, como se o problema da mais-valia se resumisse apenas a um ajuste na distribuição dos salários, como se a divisão social do trabalho fosse um assunto de recursos humanos. Não sou especialista em Marx, mas acho que Sabrina Fernandes e Jones Manoel poderiam nos ajudar com este problema: o dinheiro é mercadoria, e mercadoria como equivalente de valor, cuja referência é originalmente o ouro. Coisas aparentadas ao dinheiro como notas de crédito, promissórias e outros papeis não lastreados são também igualmente dinheiro? Neste caso a circulação do dinheiro, ele mesmo, em pequenas quantidades, de pequenos negociantes, seria algo bem diferente de empresas que vivem de seu valor de marca, de suas aplicações imateriais na bolsa ou no sistema financeiro.

É um contrassenso que menos de quinhentas pessoas no mundo possuam mais dinheiro do que seria necessário para sanar o problema na forme na África. No entanto, não me parece que o incentivo à generosidade das pessoas resolva o problema. Aliás, doações massivas e fundações têm investido fortemente nessa matéria sem os resultados esperados.

No Brasil – campeão moral em termos de desigualdade social e má distribuição de renda, mas também quando o assunto é capital social e cultural –, é muito compreensível que a culpa seja o afeto social que se espera dos ricos. Nossa elite é poder, sabemos disso. Mas também sabemos disso a tempo bastante para isso não ter gerado nenhuma mudança substantiva. A psicanálise nos ensinou que a culpa é um sentimento de baixíssima potência transformativa. Contudo, é justamente nesse tipo de retórica que vejo o melhor desta nova geração crítica investir suas forças e recursos. Ódio aos homens ricos brancos e privilegiados. Ódio contra as elites que não souberam partilhar seus bens simbólicos, nem investir na educação distributiva, nem cultivar políticas de justiça e reparação. Ódio contra as almas impuras.

Entre o público e o privado
Por tempo demais escutei que aquilo que é do interesse público deve ser da alçada do Estado, e que pelo fato de pretender incluir e se destinar a todos, deve ser gratuito. Ao passo que aquilo que não pertence ao espaço e ao interesse públicos, pertence ao privado, como se a soma entre público e privado representasse a totalidade do que existe. Segundo essa lógica, aquilo que é privado tem ou virá a ter a estrutura e a lógica da empresa, e consequentemente está impuro e comprometido com o capitalismo. Isso significa que não aprendemos nada com as experiências históricas do socialismo ocidental, particularmente no leste europeu, nos quais o Estado, ao se encarregar de todas as áreas da economia e da vida social, acabou tornando-se ele mesmo o único e maior capitalista. Uma política baseada na ocupação do Estado para que a partir disso possamos garantir a sua interveniência e proteção para o que chamamos de “social” como expansão do espaço público e inclusão de mais pessoas na condição de cidadania: essa me parece a plataforma que melhor define o que significa ser de esquerda depois de 1989 no Brasil. Embora isso esteja muito longe do (e não deve ser confundido com) comunismo, arrisco dizer que é suficiente para definir o que veio a significar esquerda entre nós. É neste sentido que Antonio Candido dizia que o socialismo é triunfante:

“Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na Ideologia alemã: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.”

Antonio Candido, “O socialismo é uma doutrina triunfante”, entrevista a Joana Tavares, Brasil de Fato n. 435.

Ou seja, o homem é criador de riqueza e o socialismo luta contra a exploração que ocorre ao longo do processo de produção dessa riqueza, e não contra a riqueza ela mesma. O maior erro da representação social da esquerda é consentir que sua defesa dos explorados se confunda com o elogio do empobrecimento. Com a dissolução da luta coletiva em torno de direitos trabalhistas e com o declínio da plataforma de proteção do trabalhador a esquerda se viu diante de uma nova etapa do capitalismo, na qual cada um aparece como “empresário de si mesmo”, o que significa dizer que cada um é também explorador de si mesmo, ou que dentro de cada um de nós mora um capitalista. A distinção rapidamente evoluiu então para uma dicotomia entre, por um lado, aqueles que se encontram cronicamente fora do sistema (os estrangeiros, os desamparados, os miseráveis, os “inimpregáveis”), e de outro os privilegiados.

“Uma esquerda que não odeie o dinheiro tem por tarefa primeira desativar essa equação que, por um lado, identifica o Estado como guardião do interesse público, e por outro, assimila tudo o que tem que ver com a circulação do dinheiro com a forma empresa e a propriedade privada.”

Uma esquerda que não odeie o dinheiro tem por tarefa primeira desativar essa equação que, por um lado, identifica o Estado como guardião do interesse público, e por outro, assimila tudo o que tem que ver com a circulação do dinheiro com a forma empresa e a propriedade privada. Entre o público e o privado existe o comum, do ponto de vista do coletivo, e o íntimo, do ponto de vista dos indivíduos. Mas a esquerda que odeia o dinheiro parece incapaz de conceber que é possível pensar um tipo de circulação e de troca envolvendo dinheiro que não seja nem estatal nem empresarial.

Um caso concreto
Foi esta a primeira lição formativa que nosso projeto de atendimento aos refugiados da construção da hidroelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará me deixou. Levar psicanalistas para uma região remota do Brasil, colocá-los em voadeiras para chegar em baixões e ilhas afastadas, alimentá-los por semanas, fazer registros e sustentar uma base operacional custa uma coisa chamada dinheiro. Meu primeiro impulso, como professor da USP e pesquisador acostumado a solicitar verbas para projetos de pesquisa e extensão, foi providenciar os pedidos de auxílio para o CNPq e para a Fapesp. Qual não foi minha surpresa quando recebemos dos movimentos sociais de lá, como o Xingu Vivo e o Movimento dos Atingidos por Barragens, que não era bem vindo o subsídio estatal para o projeto, ainda que a necessidade dele fosse urgente e inegável. Logo percebi problema. O mesmo Estado que havia destruído o modo de vida de 30 mil pessoas, deslocado elas de suas residências, criando situações dramáticas, traumáticas e patógenas, se ofereceria agora para consertar a situação, corrigindo o estrago feito, bancando a vinda de míseros vinte psicanalistas. Como se isso fosse deixar a situações quites. Percebi ali, na hora e em carne viva, como eu mesmo estava acostumado com a equação: se é público, é Estatal e gratuito.

A falsa solução necessária foi inverter os sinais da equação. Vamos procurar empresas que subsidiam iniciativas no terceiro setor e que podem se interessar pelo desastre humano e ambiental de Belo Monte. Há várias delas e muitas desenvolvem trabalhos legítimos em várias áreas há muitos anos no chamado terceiro setor. Contactamos algumas e recebemos um sinal positivo. Percebi que a “grife USP”, como dizem alguns de meus colegas, é bem-vinda em ambientes empresariais. Mas então qual não foi minha surpresa ao ouvir das mesmas pessoas e entidades envolvidas no projeto, que não podiam aceitar um financiamento de empresas, pois o conceito de “empresa”, neste caso, estava indelevelmente associado com coisas como Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez, causas motrizes e razão maior do desastre que se abatera sobre aquela comunidade.

Foi então que decidimos por um crowdfunding bem-sucedido que tornou possível a operação. Ou seja, dinheiro de pessoas comuns, doado e administrado de modo transparente com o objetivo de levar a cabo uma tarefa. Divulgamos o projeto por meio dessa empresa muito capitalista chamada YouTube, braço da corporação tecnológica transnacional Google, recebemos doações por intermédio de um banco, retribuímos a ajuda recebida por meio de prêmios como livros e fotos de nossa própria lavra. Quando cito esse exemplo em debates, frequentemente recebo a crítica de que o princípio da “vaquinha” representaria a institucionalização da precariedade, o que livraria o Estado de suas obrigações e desenvolveria um negócio paralelo que desmobiliza a pressão pela efetivação e de direitos e obrigações. É difícil entender que o exemplo não se restringe à coleta de dinheiro das pessoas “físicas”, mas que está em jogo um desafio que a esquerda não consegue se colocar: como gerir o dinheiro de outra maneira que não identifique o não-estatal com a forma empresa? Como dizer para as pessoas que é possível que a boleira consiga ir adiante em seu negócio sem estar simplesmente fora da lei do pagamento de impostos, ou então se transformando em uma “megastore” de doces (que aliás comprará o seu negócio impiedosamente assim que ele começar a dar certo). Como dizer que todo o universo de construções informais, na periferia de São Paulo, pode ser feito de outra maneira que não trabalhador explorando trabalhador? Como dizer para as pessoas que a esquerda está interessada, sim, em fazer você ganhar dinheiro e progredir na vida, e que não há vergonha nenhuma em desejar isso? Como dizer que a esquerda quer caviar para todos? Como lembrar que comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social e cooperativismo, como dizia Antonio Candido, andam juntos com todas as tradições críticas que simplesmente se definem pela conjectura de que é possível sonhar com um mundo melhor. É possível uma esquerda que não odeie o dinheiro, que o pense fora da gramática da violência e da extorsão, sem devastação ambiental, sem anjos e demônios no seu caminho.

Quem corre o risco de fazer “o elogio do empobrecimento” certamente não é o empobrecido, ao passo que há certas pessoas cujas condições materiais imediatas sequer permitem se enredar nesse “ódio ao dinheiro” e que vão interpretar tal narrativa como uma profunda arrogância. Nesse sentido, percebemos como o ódio ao dinheiro se coloca como um impeditivo para uma adesão mais massiva ao discurso de esquerda, principalmente entre as classes mais populares – uma dificuldade para o catolicismo e que o neopentecostalismo jamais teve. Se há uma maneira de pensar outra forma de operar trocas envolvendo dinheiro, é o que Dardot e Laval desenvolveram em torno do conceito de comum. Nossa experiência em Belo Monte não foi financiada nem pelo Estado nem pelas empresas, mas pelas pessoas “comuns”. São pessoas comuns, agindo em comum, em espaços comuns que constroem casas na periferia de São Paulo, que vendem comida nas universidades públicas e privadas que precisam ter sua forma de fazer economia reconhecida de outra maneira. Os sonhos dessa nova economia não são nem públicos nem privados, mas são sonhos comuns.

Enquanto não inventarmos essa nova maneira de fazer circular o dinheiro sem que ele seja um pecado laico entre nós, será difícil ganhar eleições, se apresentar publicamente sem ser percebido como hipócrita ou arrogante, e recuperar a nossa capacidade coletiva de sonhar.

É isso que chamo de oniropolítica.

Fonte da matéria:
(https://blogdaboitempo.com.br/2020/08/12/por-uma-esquerda-que-nao-odeie-o-dinheiro/)

Deixe uma resposta