Economia

À procura do lucro perdido

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José Martins – Pouco mais de três meses atrás, podia ser ob­ser­vado que a eco­nomia mun­dial co­me­çava a ser re­ti­rada do coma in­du­zido im­posto pelos ca­pi­ta­listas a partir do mês de abril.

Qual seria a cara do pa­ci­ente de­pois do pe­ri­goso lock­down (fe­cha­mento) da eco­nomia de­ci­dido pelos seus pro­pri­e­tá­rios como forma de en­fren­ta­mento da epi­demia sa­ni­tária da COVID 19?

A res­posta quase unâ­nime podia ser en­con­trada na ilu­sória e for­tís­sima opi­nião dos eco­no­mistas e dos go­vernos de um re­torno ao cres­ci­mento econô­mico, do em­prego e dos pro­vi­den­ciais lu­cros a partir do ter­ceiro tri­mestre do ano (julho/se­tembro).

A quase to­ta­li­dade dos ca­pi­ta­listas e seus eco­no­mistas acre­di­tavam pi­a­mente no im­pre­ciso re­torno em V da eco­nomia: bate no chão e volta triun­fante para novo ciclo de lu­cros e cres­ci­mento. E tudo volta ao normal.

A hora da ver­dade havia che­gado. A se­gunda me­tade do ano seria, então, o mo­mento de ‘mostre-me’ para os que apos­taram pe­sado na ex­pec­ta­tiva de uma re­cu­pe­ração em forma de V da eco­nomia real após o “des­li­ga­mento do co­ro­na­vírus”. Afinal, a eco­nomia mun­dial co­me­çava a sair do coma in­du­zido…

E agora, já en­cer­rado o ter­ceiro tri­mestre do ano e se ace­le­rando ra­pi­da­mente para o en­cer­ra­mento do se­gundo se­mestre? Como é que a coisa se passou? Como está a cara do pa­ci­ente neste mo­mento do “mostre-me”, de­pois do “des­li­ga­mento do co­ro­na­vírus”? A res­posta é: nem um pouco ani­ma­dora; e muito menos com sor­riso em V.

Na re­a­li­dade, o que se re­vela com a di­vul­gação de novos nú­meros deste pro­cesso é uma coisa muito im­por­tante: ao con­trário do que ima­gina a vã opi­nião po­pular, esta crise econô­mica não é pro­vo­cada pela COVID 19 – como os ca­pi­ta­listas e seus eco­no­mistas ainda vendem (e con­ti­nu­arão ven­dendo) para a opi­nião pú­blica – e nem mesmo pelo efe­tivo lock­down da eco­nomia que durou de ma­neira mais in­tensa entre março e junho deste ano.

Sem essa im­por­tante se­pa­ração da re­a­li­dade e das fan­ta­sias da eco­nomia vulgar acerca da na­tu­reza da atual crise econô­mica fica im­pos­sível acom­pa­nhar seus des­do­bra­mentos. A me­lhor ma­neira de evitar esta ar­ma­dilha é ana­lisar cri­te­ri­o­sa­mente esses dados sobre o es­tado do pa­ci­ente. Vamos a eles.

Se existe al­guma se­me­lhança da atual crise pe­rió­dica de su­per­pro­dução de ca­pital com a COVID 19 é que as duas co­me­çaram a se ma­ni­festar ainda dis­cre­ta­mente em 2019. Exa­ta­mente no 4º tri­mestre de 2019.

Mas a se­me­lhança para por aí. Sem a mí­nima pre­sença de qual­quer lock­down na eco­nomia, a in­dús­tria de bens de con­sumo du­rá­veis dos EUA caiu 1,5% no úl­timo tri­mestre de 2019.

E con­ti­nuou caindo pe­sa­da­mente (– 9,8%) no 1º tri­mestre de 2020, se­gundo re­la­tório mensal da Pro­dução In­dus­trial e Uti­li­zação da Ca­pa­ci­dade, pu­bli­cado nesta sexta-feira (16) pelo Fe­deral Re­serve Bank (Fed, banco cen­tral dos EUA).

Note-se que neste 1º tri­mestre do ano (ja­neiro a março), a in­dús­tria dos EUA não havia ainda so­frido efeito de qual­quer lock­down. Isso pode ser com­pro­vado pelos nú­meros da uti­li­zação da ca­pa­ci­dade ins­ta­lada, pu­bli­cados pelo re­la­tório do Fed.

Assim, no 4º tri­mestre de 2019, os ramos de pro­dução de bens du­rá­veis re­gis­tavam 74,9% de uti­li­zação da ca­pa­ci­dade ins­ta­lada. No 1º tri­mestre de 2020 (quando, re­pe­tindo, a pro­dução caiu 9,8%) a uti­li­zação da ca­pa­ci­dade ins­ta­lada ainda es­tava bas­tante ele­vada: 72,9%. E ainda com pleno em­prego da força de tra­balho.

Estes dados são muito im­por­tantes para es­cla­recer a na­tu­reza do atual pe­ríodo de crise do ciclo econô­mico. Ob­serva-se então, em pri­meiro lugar, que antes de qual­quer lock­down a pro­dução in­dus­trial dos EUA – que re­gula a di­nâ­mica real do mer­cado mun­dial – já es­tava em queda sig­ni­fi­ca­tiva por dois tri­mes­tres se­guidos.

E a pe­quena va­ri­ação da uti­li­zação da ca­pa­ci­dade ins­ta­lada no 1º tri­mestre de 2020 é a com­pro­vação in­dis­cu­tível que os ele­mentos en­dó­genos da pro­dução in­dus­trial (valor agre­gado, mais-valia, lucro e preço de pro­dução) foram os ele­mentos de­ter­mi­nantes da queda do pro­cesso de va­lo­ri­zação do ca­pital.

Esta pre­va­lência dos ele­mentos en­dó­genos do pro­cesso de acu­mu­lação do ca­pital na crise atual pode ser também com­pro­vada pelo mais re­cente Re­la­tório Fi­nan­ceiro Tri­mes­tral das Ma­nu­fa­turas dos EUA, pu­bli­cado em 8/9/2020 pelo do Bu­reau of Census dos EUA.

Re­vela-se, então, que no 2º tri­mestre de 2020 (abril/junho), quando já se po­deria con­si­derar algum efeito exó­geno do lock­down sobre a pro­dução, o valor do fa­tu­ra­mento das ma­nu­fa­turas es­ta­du­ni­denses (bens du­rá­veis e não du­rá­veis) caiu apenas 24% frente ao 2º tri­mestre do ano an­te­rior. Na mesma com­pa­ração, no 1º tri­mestre/2020 o fa­tu­ra­mento havia caído só 10%.

No ima­gi­nário po­pular, o COVID 19 fez com que a pro­dução e as vendas da in­dús­tria te­nham sido tão pa­ra­li­sadas quanto às ocor­ridas com inú­meros se­tores im­pro­du­tivos da eco­nomia – pe­queno co­mércio, es­colas, ci­nemas, bares, res­tau­rantes, ca­be­lei­reiros, aca­de­mias, fu­tebol, te­atro, li­vra­rias, vi­a­gens aé­reas etc. Con­tudo, os dados reais re­velam exa­ta­mente o con­trário.

Outro mo­vi­mento im­por­tante: em­bora o fa­tu­ra­mento da in­dús­tria tenha caído pouco mais de 30% nos pri­meiros seis meses deste ano, a massa de lucro ope­ra­ci­onal das ma­nu­fa­turas caiu 30% no pri­meiro tri­mestre e 50% no 2º tri­mestre (sempre com­pa­rando com o 2º tri­mestre/2019).

Lem­bremos que lucro ope­ra­ci­onal é o que re­trata me­lhor as con­di­ções de va­lo­ri­zação do ca­pital e da em­presa. Trata-se do lucro com a ati­vi­dade prin­cipal e pro­du­tiva (ope­ra­ci­onal) da em­presa – quer dizer, lucro antes dos im­postos, das re­ceitas ou des­pesas não ope­ra­ci­o­nais como juros, rendas etc., assim como das des­pesas im­pro­du­tivas ocor­ridas dentro da em­presa, como ad­mi­nis­tração, vendas, pu­bli­ci­dade etc.

O saldo final destas re­la­ções foi o se­guinte: a taxa de lucro ope­ra­ci­onal média de 8,43% do pe­ríodo de ex­pansão do ciclo an­te­rior (re­gis­trada no 2º tri­mestre/2019) havia caído ful­mi­nan­te­mente para 6,63% no 1º tri­mestre de 2020 e para 5,73% no 2º tri­mestre de 2020.

Im­por­tante con­si­de­ração a ser le­vada em conta: a su­pe­ração do atual pe­ríodo de crise, a saída bem su­ce­dida do coma in­du­zido, só será pos­sível quando este de­sa­ba­mento da taxa de lucro ope­ra­ci­onal nas ma­nu­fa­turas for re­ver­tido para as pro­xi­mi­dades do pa­tamar de 8,43%, que cor­res­pondia, grosso modo, à taxa de lucro geral nas ma­nu­fa­turas es­ta­du­ni­denses no pe­ríodo de ex­pansão cí­clica dos úl­timos dez anos.

Mas esta re­cu­pe­ração da taxa de lucro geral da eco­nomia de ponta do sis­tema, ab­so­lu­ta­mente ne­ces­sária para a su­pe­ração da crise atual, de­pende uni­ca­mente e antes de tudo de duas coisas:

primo, do au­mento da taxa de mais-valia, quer dizer, da pro­du­ti­vi­dade ou de ex­plo­ração da classe ope­rária em toda crosta ter­restre;

se­condo, mas não menos im­por­tante: a re­to­mada da taxa geral de lucro na eco­nomia re­gu­la­dora do sis­tema global de­pende do au­mento da dis­puta e ex­pansão im­pe­ri­a­lista por novos mer­cados (mais glo­ba­li­zação), re­dução dos preços de ma­té­rias primas no co­mércio in­ter­na­ci­onal e, como re­sul­tado final, au­mento da ex­plo­ração das eco­no­mias do­mi­nantes sobre as eco­no­mias do­mi­nadas da pe­ri­feria do sis­tema.

Mais im­por­tante que tudo. Estas pro­vi­dên­cias para a “es­ta­bi­li­zação da eco­nomia” não podem de­morar eter­na­mente. Ao con­trário do pe­ríodo de ex­pansão (com uma taxa geral de lucro ade­quada) que é bas­tante elás­tico e pode va­riar de quatro a dez anos, apro­xi­ma­da­mente, o pe­ríodo de crise, no qual a eco­nomia se en­contra atu­al­mente, não pode durar mais do que sete ou oito tri­mes­tres.

Se o pa­ci­ente não sair do coma in­du­zido em bom es­tado (exa­lando ní­veis ade­quados de taxa de lucro) neste curto pe­ríodo de tempo, a crise, por en­quanto par­cial, pode de­sabar abrup­ta­mente para uma crise geral, quando o tempo de­sa­pa­rece.

Por­tanto, resta ob­servar agora (ou­tubro de 2020) como está se mos­trando a cara do pa­ci­ente de­pois do pleno res­gate do coma in­du­zido e do “des­li­ga­mento do co­ro­na­virus”.

Quais são os re­mé­dios que os ca­pi­ta­listas, os eco­no­mistas e suas ins­ti­tui­ções bu­ro­crá­ticas in­ter­na­ci­o­nais estão re­cei­tando para re­tomar seus lu­cros e evitar a ameaça de re­vo­lu­ções e ex­tinção do mundo da pro­pri­e­dade pri­vada, do Es­tado, do mer­cado e do ca­pital?

Quais as pers­pec­tivas (ou ce­ná­rios) para os de­ci­sivos pró­ximos tri­mes­tres da eco­nomia mun­dial?

Fonte da matéria:
(https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14402-a-procura-do-lucro-perdido)

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