Internacional

Crime de guerra na exploração do petróleo da Síria e suas consequências

Tempo de leitura: 12 min

Luiz Eça – Há um ano, Do­nald Trump anun­ciou que os EUA iriam re­tirar suas tropas da Síria. Elas ti­nham ido para lá a fim de com­bate o Es­tado Is­lâ­mico (EI). Agora que os fa­ná­ticos fun­da­men­ta­listas es­tavam di­zi­mados não havia por que con­ti­nu­arem longe de casa.

Os áu­licos que cercam o pre­si­dente e certos mi­li­tares do Pen­tá­gono não gos­taram da ideia.

Deixar o hostil Assad dono do pe­daço, de­pois dele (com o de­ci­sivo apoio da Rússia) re­con­quistar a parte da Síria que mais con­tava, ou seja, as re­giões onde vi­viam a grande mai­oria da po­pu­lação (e põe mai­oria nisso), re­tirar-se seria de­son­roso.

Ainda havia bases mi­li­tares es­ta­du­ni­denses pro­te­gendo os curdos e grupos re­beldes no nor­deste da Síria, a cha­mada re­gião autô­noma curda, li­mi­tando com a Tur­quia, e ainda no leste, em al­deias in­crus­tradas nos grandes de­sertos da re­gião.

Por ser a re­gião autô­noma co­go­ver­nada pelos curdos do PKK, pro­ta­go­nista de re­cente e san­grenta re­vo­lução na Tur­quia, o pre­si­dente Er­dogan re­solveu tomar as áreas mais pró­ximas da fron­teira com seu país.

Com a in­vasão turca da parte mais ao norte da re­gião autô­noma, os curdos foram obri­gados a se re­tirar já que seus grandes ali­ados, os EUA, para não romper seus laços com a Tur­quia, si­na­li­zaram que não os de­fen­de­riam. Op­taram por sair da re­gião autô­noma em de­manda de bases no vi­zinho Iraque.

Ao re­cu­arem, os sol­dados norte-ame­ri­canos pa­raram no meio do ca­minho, em campos pe­tro­lí­feros, antes ocu­pados pelo EI.

Foi quando, con­tra­di­zendo sua in­for­mação an­te­rior, de que os EUA iriam li­vrar-se dessa de­cla­ra­da­mente inútil guerra síria, o er­rá­tico The Do­nald pro­clamou que suas tropas per­ma­ne­ce­riam no local, no con­trole do pe­tróleo local.

Foi lem­brado que não pe­garia bem junto à opi­nião pú­blicas in­ter­na­ci­onal. Havia acu­sa­ções de que os EUA ti­nham feito guerra ao Iraque e à Líbia com o ob­je­tivo de se apossar das ri­quezas pe­tro­lí­feras desses países.

Trump não se abalou. Ex­plicou que os sol­dados de Tio Sam ti­nham ocu­pado a área e suas ins­ta­la­ções, não para os EUA, mas para pro­teger o pe­tróleo em be­ne­fício dos curdos, evi­tando que caíssem nas mãos san­gui­no­lentas do EI.

Su­geriu que sua ex­plo­ração po­deria ser re­a­li­zada através de “um ne­gócio com a Exxon Mobil, ou uma das nossas grandes com­pa­nhias”. Em­bora len­ta­mente, o ar­ranjo foi em frente. É ver­dade que, não tendo nem a Exxon, nem al­guma das “nossas grandes com­pa­nhias” se in­te­res­sando, o par­ceiro da ope­ração vai ser uma em­presa que não existia a cerca de um ano, quando foi fun­dada, apres­sa­da­mente.

Trata-se da Delta Cres­cent Energy, cujo corpo de pro­pri­e­tá­rios é eno­bre­cido pela pre­sença de James Reese, ex-ofi­cial da tropa de elite Delta Force, ci­dadão muito bem re­la­ci­o­nado entre os che­fões do Pen­tá­gono.

Ca­berá a Delta Cres­cent Energy re­finar e usar o pe­tróleo lo­cal­mente e também ex­portar através do norte do Iraque e da Tur­quia.

O se­cre­tário de Es­tado Mike Pompeo diz que os lu­cros irão para os com­ba­tentes da re­gião autô­noma curda. Evi­den­te­mente, a Delta Cres­cent Energy vai ser re­mu­ne­rada pelos tra­ba­lhos que de­sen­vol­verá. Não se sabe qual será sua fatia do bolo que irá abo­ca­nhar, mas não deve ser pe­quena, pois é apa­dri­nhada pelo mo­rador da Casa Branca e pelo Pen­tá­gono.

As tropas norte-ame­ri­canas serão re­du­zidas ao papel de guardas de se­gu­rança das ins­ta­la­ções de uma em­presa pri­vada. Não acre­dito que Ge­orge Washington ou Thomas Jef­ferson gos­ta­riam dessa nova função as­su­mida pelo exér­cito do país que eles fun­daram.

Ainda mais porque a re­gião autô­noma curda nada tem de legal, já que é parte in­te­grante do ter­ri­tório sírio. O dono da re­gião é a Síria, cujo povo, através de seu pre­si­dente eleito, não a re­co­nhece como autô­noma. A ONU e os de­mais países também ig­noram essa se­cessão.

Através de uma com­pa­nhia pri­vada norte-ame­ri­cana, a ser pro­te­gida por sol­dados ame­ri­canos, os EUA estão as­su­mindo a ex­plo­ração do pe­tróleo de ter­ri­tó­rios de outro país, sem re­ceber sua au­to­ri­zação.

É um roubo, sem tirar nem por. Um aten­tado contra a so­be­rania da Síria.
Não é es­tranho que, a não ser a pró­pria Síria, e algum país amigo, nin­guém de­nun­ciou o go­verno Trump pela prá­tica desse ilí­cito penal que, na es­fera pri­vada, con­de­naria o in­frator a penas de prisão.

A co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal nada fez para exigir que os EUA a de­vol­vessem a re­gião pe­tro­lí­fera a quem ela per­tence.

Cadê co­ragem para co­locar o guizo no rabo do gato? Sendo a maior po­tência mi­litar e econô­mica do mundo, os EUA im­põem res­peito. Para Ba­rack Obama, seu país de­veria ser res­pei­tado por ser amado, não te­mido. Do­nald Trump, mais re­a­lista, pensa o con­trário.

Com base no poder, o pre­si­dente em fins de man­dato (um “pato manco”, se­gundo os norte-ame­ri­canos) po­si­ciona-se acima das leis in­ter­na­ci­o­nais. Note, porém, que ele as in­voca, sempre que possam ser usadas como pre­texto para ex­pungir algum país pouco amis­toso.

Coisa que ele está fa­zendo contra a Síria, e não só rou­bando pe­tróleo, também lan­çando me­didas pu­ni­tivas que causam in­tenso so­fri­mento aos civis ino­centes deste pobre país.

A ONU e go­vernos norte-ame­ri­canos an­te­ri­ores ao de Trump já vi­nham cas­ti­gando o go­verno de Assad com san­ções por vi­o­la­ções de di­reitos hu­manos. Há um mês, o pato manco aplicou novas san­ções muito mais duras.

Serão con­ge­lados re­cursos nos EUA de em­presas de qual­quer na­ci­o­na­li­dade, que façam ne­gó­cios com o go­verno de Assad. E mais: san­ções pu­nirão in­di­ví­duos ou cor­po­ra­ções que, em qual­quer parte do mundo, re­a­lizem ope­ra­ções econô­micas nos três se­tores fun­da­men­tais para a eco­nomia síria: a in­dús­tria de pe­tróleo, as força ar­madas e obras pú­blicas e de cons­tru­ções de em­presas.

Quem ousar ig­norar os man­da­mentos de The Do­nald terá o mer­cado norte-ame­ri­cano in­ter­na­ci­onal fe­chado para seus ne­gó­cios. Ra­rís­simos to­parão abrir mão das chances de lu­crar com o mer­cado mais rico do mundo.

A Síria, de­vas­tada por oito anos de guerras, e agora também pela pan­demia, graças às san­ções, passa a ser aco­me­tida por mais uma onda brutal de ter­rí­veis im­pactos na sua com­ba­lida eco­nomia e às suas con­sequên­cias ma­lignas: ca­rência ainda maior de ali­mentos e me­di­ca­mentos, preços em cons­tante alta, mais de­sem­prego, au­mento de do­enças cau­sadas pela des­nu­trição, po­ten­ci­a­li­zando os so­fri­mentos de um povo, onde 80% con­vivem com a mi­séria.

Os EUA têm uma vasta ex­pe­ri­ência no uso de san­ções. Elas vêm sendo usadas contra o Irã, sem grande re­sul­tado. Seu ob­je­tivo era de­vastar a eco­nomia do país para forçar a re­negar o acordo nu­clear com as grandes po­tên­cias (menos os EUA) e aceitar um novo acordo com os termos di­tados por Trump.

No en­tanto, o go­verno Rouhani con­tinua tão hostil quanto antes e só aceita dis­cutir com os EUA caso Trump can­cele as san­ções.

É fato que elas le­saram bru­tal­mente a eco­nomia do país, cau­sando uma piora acen­tuada da si­tu­ação so­cial. Isso en­fra­queceu o pres­tígio do go­verno Rouhani e, em con­sequência, pro­vocou a vi­tória da linha dura nas re­centes elei­ções par­la­men­tares, com pro­vável re­pe­tição do feito no pleito pre­si­den­cial de maio do ano que vem. Tendo esses ul­tras con­tro­lando le­gis­la­tivo e exe­cu­tivo, as chances de guerra com os EUA au­mentam, e muito, contra os in­te­resses pa­cí­ficos dos povos ira­niano e norte-ame­ri­cano.

Para com­pletar as ca­la­mi­dades, acres­cen­tamos as pos­si­bi­li­dades de con­flitos entre tropas russas e as norte-ame­ri­canas se­di­adas nos campos de pe­tróleo da sua nova ti­tular, a DELTA CRES­CENT ENERGY.

Em re­cente en­tre­vista a jor­nais dos EUA, Trump ad­mitiu que “nós po­demos ter de lutar pelo pe­tróleo.” Citou o EI como pos­sível ameaça, re­mota porque os fa­ná­ticos fun­da­men­ta­listas estão re­du­zidos a uma mera agre­mi­ação ter­ro­rista, como tantas ou­tras que pu­lulam pelo Ori­ente Médio.

Mas Trump falou ainda que po­de­riam ser ata­cados por “ou­tros” em de­fesa do pe­tróleo e nesse caso “te­ríamos o diabo de uma luta”.

O se­cre­tário De­fesa, Mark Esper de­mons­trou estar bem afi­nado com o pen­sa­mento do seu chefe. Quando per­gun­tado se os planos de Trump in­clui­riam cho­ques com forças russas ou sí­rias, res­pondeu ru­gindo: “a res­posta curta é sim, atu­al­mente é sim”. E o re­pre­sen­tante es­pe­cial para as­suntos da Síria, en­car­re­gado de rever os planos de Trump, não es­teve para panos quentes: “Meu tra­balho é tornar (a Síria) um pân­tano para os russos”.

O pro­blema é que Putin pode não aceitar manter-se nesse local tão des­con­for­tável.

Afinal, seu país foi au­to­ri­zado a ex­plorar o pe­tróleo do país pelo seu de­tentor legal, o go­verno Assad. Tem todo di­reito de pro­curar re­cu­perar a re­gião ex­plo­rada pela DELTA ENERGY, in­clu­sive usando a força contra os sol­dados norte-ame­ri­canos, os se­gu­ranças da em­presa.

A esse res­peito, de­clarou o se­nador Tim Kaine: “Ar­riscar as vidas dos nossos sol­dados para guardar o pe­tróleo no leste da Síria não é apenas ir­res­pon­sável, não é au­to­ri­zado le­gal­mente (In­de­pen­dent, 12-11-2019).”

O risco é sério.

No mês pas­sado, o Ob­ser­va­tório Sírio de Di­reitos Hu­manos, se­diado em Lon­dres, in­formou: “as ten­sões con­ti­nuam a crescer sig­ni­fi­ca­ti­va­mente nos úl­timos dias entre as forças dos EUA e da Rússia, no nor­deste da Síria.”

Basta um ofi­cial de um ou do outro lado pisar na bola, pro­vo­cando um con­flito que vá para as man­chetes das pri­meiras pá­ginas dos jor­nais, para…
Até a turma do “deixa disso” con­se­guir acalmar os pa­tri­otas, muita coisa pode rolar, muito sol­dado pode morrer.

O mo­mento é ruim: Trump pre­cisa mos­trar-se ma­chão para ar­re­batar co­ra­ções, mentes e votos nas pró­ximas elei­ções. E Putin pre­cisa fazer o mesmo, pois sua imagem in­terna anda meio murcha.

Que será, será.

Fonte da matéria:
(https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14377-crime-de-guerra-na-exploracao-do-petroleo-da-siria-e-suas-consequencias)

Deixe uma resposta