Luiz Eça – Há um ano, Donald Trump anunciou que os EUA iriam retirar suas tropas da Síria. Elas tinham ido para lá a fim de combate o Estado Islâmico (EI). Agora que os fanáticos fundamentalistas estavam dizimados não havia por que continuarem longe de casa.
Os áulicos que cercam o presidente e certos militares do Pentágono não gostaram da ideia.
Deixar o hostil Assad dono do pedaço, depois dele (com o decisivo apoio da Rússia) reconquistar a parte da Síria que mais contava, ou seja, as regiões onde viviam a grande maioria da população (e põe maioria nisso), retirar-se seria desonroso.
Ainda havia bases militares estadunidenses protegendo os curdos e grupos rebeldes no nordeste da Síria, a chamada região autônoma curda, limitando com a Turquia, e ainda no leste, em aldeias incrustradas nos grandes desertos da região.
Por ser a região autônoma cogovernada pelos curdos do PKK, protagonista de recente e sangrenta revolução na Turquia, o presidente Erdogan resolveu tomar as áreas mais próximas da fronteira com seu país.
Com a invasão turca da parte mais ao norte da região autônoma, os curdos foram obrigados a se retirar já que seus grandes aliados, os EUA, para não romper seus laços com a Turquia, sinalizaram que não os defenderiam. Optaram por sair da região autônoma em demanda de bases no vizinho Iraque.
Ao recuarem, os soldados norte-americanos pararam no meio do caminho, em campos petrolíferos, antes ocupados pelo EI.
Foi quando, contradizendo sua informação anterior, de que os EUA iriam livrar-se dessa declaradamente inútil guerra síria, o errático The Donald proclamou que suas tropas permaneceriam no local, no controle do petróleo local.
Foi lembrado que não pegaria bem junto à opinião públicas internacional. Havia acusações de que os EUA tinham feito guerra ao Iraque e à Líbia com o objetivo de se apossar das riquezas petrolíferas desses países.
Trump não se abalou. Explicou que os soldados de Tio Sam tinham ocupado a área e suas instalações, não para os EUA, mas para proteger o petróleo em benefício dos curdos, evitando que caíssem nas mãos sanguinolentas do EI.
Sugeriu que sua exploração poderia ser realizada através de “um negócio com a Exxon Mobil, ou uma das nossas grandes companhias”. Embora lentamente, o arranjo foi em frente. É verdade que, não tendo nem a Exxon, nem alguma das “nossas grandes companhias” se interessando, o parceiro da operação vai ser uma empresa que não existia a cerca de um ano, quando foi fundada, apressadamente.
Trata-se da Delta Crescent Energy, cujo corpo de proprietários é enobrecido pela presença de James Reese, ex-oficial da tropa de elite Delta Force, cidadão muito bem relacionado entre os chefões do Pentágono.
Caberá a Delta Crescent Energy refinar e usar o petróleo localmente e também exportar através do norte do Iraque e da Turquia.
O secretário de Estado Mike Pompeo diz que os lucros irão para os combatentes da região autônoma curda. Evidentemente, a Delta Crescent Energy vai ser remunerada pelos trabalhos que desenvolverá. Não se sabe qual será sua fatia do bolo que irá abocanhar, mas não deve ser pequena, pois é apadrinhada pelo morador da Casa Branca e pelo Pentágono.
As tropas norte-americanas serão reduzidas ao papel de guardas de segurança das instalações de uma empresa privada. Não acredito que George Washington ou Thomas Jefferson gostariam dessa nova função assumida pelo exército do país que eles fundaram.
Ainda mais porque a região autônoma curda nada tem de legal, já que é parte integrante do território sírio. O dono da região é a Síria, cujo povo, através de seu presidente eleito, não a reconhece como autônoma. A ONU e os demais países também ignoram essa secessão.
Através de uma companhia privada norte-americana, a ser protegida por soldados americanos, os EUA estão assumindo a exploração do petróleo de territórios de outro país, sem receber sua autorização.
É um roubo, sem tirar nem por. Um atentado contra a soberania da Síria.
Não é estranho que, a não ser a própria Síria, e algum país amigo, ninguém denunciou o governo Trump pela prática desse ilícito penal que, na esfera privada, condenaria o infrator a penas de prisão.
A comunidade internacional nada fez para exigir que os EUA a devolvessem a região petrolífera a quem ela pertence.
Cadê coragem para colocar o guizo no rabo do gato? Sendo a maior potência militar e econômica do mundo, os EUA impõem respeito. Para Barack Obama, seu país deveria ser respeitado por ser amado, não temido. Donald Trump, mais realista, pensa o contrário.
Com base no poder, o presidente em fins de mandato (um “pato manco”, segundo os norte-americanos) posiciona-se acima das leis internacionais. Note, porém, que ele as invoca, sempre que possam ser usadas como pretexto para expungir algum país pouco amistoso.
Coisa que ele está fazendo contra a Síria, e não só roubando petróleo, também lançando medidas punitivas que causam intenso sofrimento aos civis inocentes deste pobre país.
A ONU e governos norte-americanos anteriores ao de Trump já vinham castigando o governo de Assad com sanções por violações de direitos humanos. Há um mês, o pato manco aplicou novas sanções muito mais duras.
Serão congelados recursos nos EUA de empresas de qualquer nacionalidade, que façam negócios com o governo de Assad. E mais: sanções punirão indivíduos ou corporações que, em qualquer parte do mundo, realizem operações econômicas nos três setores fundamentais para a economia síria: a indústria de petróleo, as força armadas e obras públicas e de construções de empresas.
Quem ousar ignorar os mandamentos de The Donald terá o mercado norte-americano internacional fechado para seus negócios. Raríssimos toparão abrir mão das chances de lucrar com o mercado mais rico do mundo.
A Síria, devastada por oito anos de guerras, e agora também pela pandemia, graças às sanções, passa a ser acometida por mais uma onda brutal de terríveis impactos na sua combalida economia e às suas consequências malignas: carência ainda maior de alimentos e medicamentos, preços em constante alta, mais desemprego, aumento de doenças causadas pela desnutrição, potencializando os sofrimentos de um povo, onde 80% convivem com a miséria.
Os EUA têm uma vasta experiência no uso de sanções. Elas vêm sendo usadas contra o Irã, sem grande resultado. Seu objetivo era devastar a economia do país para forçar a renegar o acordo nuclear com as grandes potências (menos os EUA) e aceitar um novo acordo com os termos ditados por Trump.
No entanto, o governo Rouhani continua tão hostil quanto antes e só aceita discutir com os EUA caso Trump cancele as sanções.
É fato que elas lesaram brutalmente a economia do país, causando uma piora acentuada da situação social. Isso enfraqueceu o prestígio do governo Rouhani e, em consequência, provocou a vitória da linha dura nas recentes eleições parlamentares, com provável repetição do feito no pleito presidencial de maio do ano que vem. Tendo esses ultras controlando legislativo e executivo, as chances de guerra com os EUA aumentam, e muito, contra os interesses pacíficos dos povos iraniano e norte-americano.
Para completar as calamidades, acrescentamos as possibilidades de conflitos entre tropas russas e as norte-americanas sediadas nos campos de petróleo da sua nova titular, a DELTA CRESCENT ENERGY.
Em recente entrevista a jornais dos EUA, Trump admitiu que “nós podemos ter de lutar pelo petróleo.” Citou o EI como possível ameaça, remota porque os fanáticos fundamentalistas estão reduzidos a uma mera agremiação terrorista, como tantas outras que pululam pelo Oriente Médio.
Mas Trump falou ainda que poderiam ser atacados por “outros” em defesa do petróleo e nesse caso “teríamos o diabo de uma luta”.
O secretário Defesa, Mark Esper demonstrou estar bem afinado com o pensamento do seu chefe. Quando perguntado se os planos de Trump incluiriam choques com forças russas ou sírias, respondeu rugindo: “a resposta curta é sim, atualmente é sim”. E o representante especial para assuntos da Síria, encarregado de rever os planos de Trump, não esteve para panos quentes: “Meu trabalho é tornar (a Síria) um pântano para os russos”.
O problema é que Putin pode não aceitar manter-se nesse local tão desconfortável.
Afinal, seu país foi autorizado a explorar o petróleo do país pelo seu detentor legal, o governo Assad. Tem todo direito de procurar recuperar a região explorada pela DELTA ENERGY, inclusive usando a força contra os soldados norte-americanos, os seguranças da empresa.
A esse respeito, declarou o senador Tim Kaine: “Arriscar as vidas dos nossos soldados para guardar o petróleo no leste da Síria não é apenas irresponsável, não é autorizado legalmente (Independent, 12-11-2019).”
O risco é sério.
No mês passado, o Observatório Sírio de Direitos Humanos, sediado em Londres, informou: “as tensões continuam a crescer significativamente nos últimos dias entre as forças dos EUA e da Rússia, no nordeste da Síria.”
Basta um oficial de um ou do outro lado pisar na bola, provocando um conflito que vá para as manchetes das primeiras páginas dos jornais, para…
Até a turma do “deixa disso” conseguir acalmar os patriotas, muita coisa pode rolar, muito soldado pode morrer.
O momento é ruim: Trump precisa mostrar-se machão para arrebatar corações, mentes e votos nas próximas eleições. E Putin precisa fazer o mesmo, pois sua imagem interna anda meio murcha.
Que será, será.
Fonte da matéria:
(https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14377-crime-de-guerra-na-exploracao-do-petroleo-da-siria-e-suas-consequencias)
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