Sociedade

Nem bandido, nem herói: o policial trabalhador

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Orlando Zaccone – Humilhados nos quartéis e submetidos a rígida hierarquia, PMs são vistos como bandidos, pela esquerda. O discurso bolsonarista os convida. E se fossem vistos como trabalhadores que precisam servir à população — e não à lógica da opressão?

Se preferir, escute na versão podcast:

Orlando Zaccone em entrevista a Rôney Rodrigues, no OP Entrevista

O carioca Orlando Zaccone, 56 anos, é um policial diferente, que foge ao imaginário sisudo que fazemos da profissão: é harekrishna, skatista, defende a legalização de todas as drogas e é, declaradamente, “de esquerda” – uma espécie de anti-Capitão Nascimento. Doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense, é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Foi o responsável pela investigação do emblemático caso da morte do pedreiro Amarildo, em 2013, na Rocinha, que apontou para uma ação criminosa de policiais. Zaccone também é um dos fundadores dos Policiais Antifascismo, movimento surgido em 2017 que defende a urgência de construir a identidade do policial como trabalhador, que serve à população, não a seus comandantes – e, hoje, um dos principais contrapontos ao avanço da ultradireita nos quartéis brasileiros.

Os crescente índice de suicídio, que mata mais policiais que os confrontos em serviço, é o sintoma mais visível do grave problema que aflige a categoria, de acordo com o delegado antifascista. Policiais estão submetidos a humilhações, rígida hierarquia e impedidos de ascender aos postos de comando. Não têm direito à sindicalização, greve, filiação partidária e, tampouco, à livre manifestação de pensamento. “Eles são subcidadãos. Como esperar que alguém que teve direitos fundamentais retirados respeite e proteja os direitos e liberdades aos outros?”, questiona Zaccone.

Segundo dados de 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 425,2 mil policiais militares e 117,6 mil policiais civis – ou seja, um PM para cada 473 habitantes e um policial civil para cada 1.790. A lógica que impera nas corporações, como se pode observar pela alta letalidade policial no Brasil, é conservadora e antidemocrática, voltada contra as classes populares. Essas característica são reforçadas, segundo o delegado, pelo modelo de Segurança Pública: uma polícia civil, que trabalha com investigação cartorial, e a PM nas ruas, com arma na cara da população. Ambas, sem diálogo com a população, tampouco fruto de uma construção coletiva, humanista e democráticas. São ineficientes por natureza: não reduzem o crime; ao contrário, produzem e estimulam mais contravenções.

Quando o policial é cooptado pelo bolsonarismo

A truculência policial, infelizmente, está arraigada não apenas em parte significativa da categoria, mas também em corações e mentes da política tradicional, da velha mídia e até da população. Porém, nos últimos anos, houve uma mudança. Antes, quando havia violência em ações policiais, governadores e comandantes da PM expressavam, mesmo que hipocritamente, pesar: desculpavam-se (ou justificavam-se) publicamente e iniciavam protocolos de apuração interna – o que gerava, na mentalidade do policial, que segue às ordens de um alto-comando, uma sensação de insegurança. “Estavam só pra foto boa”, conta Zaccone. Hoje em dia, sob o lema ultradireitista de “bandido bom é bandido morto”, os agentes envolvidos são parabenizados – ou até condecorados – por seus superiores. Uma espécie de carta branca para reprimir nas ruas e violar direitos nas periferias, pois estão cientes não apenas da impunidade, mas que também serão amparados pela corporação. O discurso fascista, portanto, passa a se materializar nas instituições, aponta Zaccone.

Para o delegado, há dois estereótipos imperantes sobre a categoria que contribuem para essa crescente institucionalização do fascismo. O de policial bandido, encampado por boa parte da esquerda, que os acusa de serem da “banda podre”, corruptos e violentos – o que, inevitavelmente, afastam-no das lutas sociais. E o de policial herói, uma fantasia mítica do bolsonarismo usada para cooptar os policiais. Abandonados pelo setor progressista, esse discurso fascista torna-se muito convidativo: “a esquerda e os movimentos sociais não gostam de polícia, mas nós gostamos, até a idolatramos, tiramos selfies”, parece sugerir a ultradireita.

Está na hora, aponta Zaccone, de construir a figura do policial-trabalhador.

Frear a militarização da vida

Com o acirramento da crise política no Brasil, diversos integrantes do Policiais Antifascismo passaram ser mais ameaçados e intimidados. No Rio Grande do Norte, conta o delegado, um integrante do movimento postou um vídeo nas redes sociais, dizendo que monitoraria as “carreatas da morte”, manifestações de apoio ao presidente que desobedeciam decreto governamental que determinava o isolamento social. Tornou-se alvo de uma investigação do Ministério Público, com cerca de 600 páginas, contendo fotos, nomes, endereços e telefones de dezenas de policiais antifascismo, acusando o movimento de ser um grupo paramilitar. No Rio Grande do Sul, um deputado do PSL representou contra um policial antifascismo porque ele fez postagens de apoio aos movimentos antifascistas locais.

Por outro lado, aponta Zaccone, diversos policiais, que antes entre aqueles considerados “isentões”, passaram a procurar o movimento, principalmente após as tentativas de controle de instituições como a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República e de cerceamento do Legislativo e Judiciário. Segundo ele, ficou patente que os Policiais Antifascismo não deliravam com teorias da conspiração: a institucionalização de um projeto fascista avança de fato. O último manifesto do movimento foi assinado por mais de 500 policiais – outros 200, segundo Zaccone, procuraram dispostos a assinar os próximos.

“A porta de entrada do fascismo no Brasil é pela militarização da segurança pública”, analisa o delegado antifascista. “Inclusive, temos como tese que a militarização da política e da vida, por meio de escolas militares e de todo esse crescimento da militarização no espaço social, aconteceu via militarização da segurança pública. Desmilitarizar as polícias e construir o policial como trabalhador é um ponto principal para enfrentar esse modelo de polícia, que coloca os policiais na posição de obedecer a um comando que segue os interesses de quem está no poder”, completa.

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