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Pandemia impôs a maior crise da história do capitalismo, afirma historiador

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Luiz Felipe Albuquerque – Um dos setores que mais cresce nesse processo é o de tecnologia. Não à toa, Jeff Bezos, dono da Amazon, pode se tornar o primeiro trilionário do mundo no próximo período. O que representa esse crescimento exponencial do “capitalismo de plataforma” e quais suas consequências?

Antes do isolamento, as principais plataformas digitais (sendo a Amazon a maior) já haviam absorvido quantidades consideráveis do mercado de varejo; o objetivo delas é que as pessoas comprem tudo online e, assim, eliminar as lojas físicas. Durante o isolamento, muitas pessoas experimentaram essas plataformas para comprar uma variedade de produtos. Foi o treinamento mais eficaz; muitos não retornarão às lojas físicas depois que o isolamento terminar, depois de ver como é conveniente comprar pela Internet. Já existe a expectativa de que mais bens e serviços sejam negociados online permanentemente, e não mais pelo varejo presencial. Mas não devemos exagerar; certamente se tornará dominante nos Estados capitalistas avançados, onde a cobertura da Internet é ampla, mas não deve ocorrer em partes do mundo onde esta é irregular. No entanto, as plataformas certamente acabarão com muitas empresas familiares, as quais – como mostram as evidências – empregam mais pessoas que essas plataformas. A ecologia social das cidades pode ser afetada, uma vez que as lojas de varejo vão fechar. Nem tenho certeza sobre o retorno de cafés e restaurantes, já que as pessoas, logo após a pandemia, ainda terão receio de retornar a esses espaços para comer; a entrega de alimentos, novamente por meio de plataformas, se expandirá. Ainda veremos o que tudo isso significará para o setor de varejo.

Mais do que tudo, o crescimento das empresas de plataforma tem implicações no setor produtivo. Já vemos que as empresas transnacionais – como a Amazon – têm tanto domínio sobre a cadeia de suprimentos que são capazes de ditar termos aos seus fornecedores, que geralmente são terceirizados menores que exploram intensamente os trabalhadores que contratam; a pressão das plataformas desenvolve uma corrida na camada inferior, entre os terceirizados e, portanto, torna a existência infernal para os trabalhadores dessas várias zonas de livre comércio, maquiladoras e fazendas industriais. Ao olharmos para o crescente domínio das empresas de plataforma, não devemos ignorar a pressão que isso colocará no setor produtivo.

Outro elemento que parece estar se intensificando com a pandemia é a crise entre EUA e China. A percepção é que o país asiático pode sair muito mais fortalecido desse processo pelas suas atitudes em relação ao enfrentamento da covid-19. O que podemos esperar na geopolítica mundial no próximo período em relação ao fortalecimento da China e uma possível perda de hegemonia dos EUA?

Sinto profundamente que teremos uma grande crise pela frente. A China agora é o lar da manufatura do mundo e usou seus superávits robustos para reforçar acordos comerciais em todos os continentes; também possui uma política externa baseada na ideia de benefício mútuo, o que permitiu obter a boa vontade de muitos países, incluindo a Itália, no coração da Europa. Além disso, a resposta da China à covid-19 tem sido exemplar. Uma vez que ficou claro para os cientistas que o coronavírus poderia ser transmitido a seres humanos, o governo chinês fechou a cidade de Wuhan, que é uma cidade de onze milhões de habitantes, depois conduziu o fechamento por fases, bem como convocou uma ação pública do Partido Comunista, sindicatos e organizações populares (incluindo comitês de bairro). Em qualquer outro mundo, os chineses seriam parabenizados por sua conduta.

Por outro lado, temos os Estados Unidos, que há muito tempo utilizam os meios necessários para manter seu poder hegemônico. O Brasil viu isso em primeira mão, quando os EUA participaram de um golpe de Estado em 1964 que fortaleceu as forças anticomunistas que se utilizaram do terror de Estado para fragmentar os movimentos populares e depois exportaram esse método para outros países da América do Sul; tais métodos não envergonharam os Estados Unidos, apesar de seus protestos formais. Essa violência se manifesta nos EUA, que possui a maior força militar do planeta e continuam desenvolvendo novos sistemas bélicos, incluindo mísseis de cruzeiro hipersônicos, que podem atingir qualquer lugar do planeta em uma hora. Eles são muito perigosos e derrubam qualquer hipótese de dissuasão.

Os Estados Unidos estão descontentes com o fato de a China ter emergido como uma das principais potências científicas e tecnológicas. Era aceitável que a China fosse a fábrica do mundo, fornecendo sua força de trabalho qualificada e saudável para o capital transnacional; mas uma vez que se tornou líder em alta tecnologia – como o 5G – tornou-se uma ameaça para o poder dos EUA. É nesse contexto que a guerra comercial ocorre e é nesse contexto que os EUA estão usando a pandemia da covid-19 para prejudicar a imagem da China e reorganizar sua cadeia de suprimentos. A linguagem beligerante reconhece a crescente independência chinesa do sistema dominado pelos EUA, e essa linguagem, combinada com o armamento perigoso, leva-nos à beira da guerra no mar do Sul da China. Vivemos tempos perigosos.

Por isso, lançamos o Apelo de Bouficha Contra os Preparativos para a Guerra. Esperamos que os movimentos e partidos populares façam campanha com esse Apelo para torná-lo uma força material na vida das pessoas em todo o planeta. Temos que construir um movimento internacional de paz contra a beligerância dos EUA.

Como você mesmo já disse, temos visto um certo sucesso no controle da propagação do vírus em países socialistas, como a própria China, o Vietnã, o estado de Kerala, na Índia, Portugal, Cuba e Venezuela, por exemplo. Quais lições podem ser tiradas desse processo e o que elas podem refletir na vida política do planeta? 

Se você observar a ordem socialista – da China ao Vietnã, de Kerala a Cuba, passando pela Venezuela -, encontrará uma abordagem muito diferente da crise. No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, chamamos essa diferença de CoronaChoque, um termo que se refere a como o vírus atingiu o mundo com tanta força e como a ordem social burguesa desmoronou, enquanto a ordem social nas regiões socialistas do mundo pareceu mais resistente. É crucial estudar cuidadosamente o que foi feito nestas últimas e informar as pessoas sobre o que essas experiências ensinam; há mais esperança no governo da Frente Democrática de Esquerda no estado indiano de Kerala do que em toda a liderança do G20 reunida.

A esquerda deve olhar em duas direções. Primeiro, precisamos trabalhar para fornecer o máximo de apoio possível aos nossos profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, paramédicos, motoristas de ambulância, cuidadores – que estão enfrentando uma doença muito infecciosa e estão fazendo isso sob condições de austeridade. Os valores de uma sociedade não estão na constituição de seu país, mas em seus orçamentos; e os orçamentos da ordem burguesa penalizam profundamente o setor da saúde. A crise diante de nós não é apenas fruto da pandemia, que é genuína, mas é agravada pela crise de um sistema de saúde que foi entregue para lucro privado e, portanto, depende da superexploração dos profissionais de saúde. Segundo, precisamos garantir alívio aos trabalhadores excluídos e desempregados – os do setor informal que vivem com seus salários diários e semanais, e geralmente não têm contas bancárias ou acesso a economias pessoais e transferências em dinheiro do governo. Nas partes socialistas do mundo – do Vietnã a Kerala, da China à Venezuela – armazéns coletivos foram criados para fornecer alimentos diretamente à classe trabalhadora; essa é uma ação essencial, absolutamente normal em uma sociedade socialista, mas simplesmente não tão fácil de se reproduzir na ordem burguesa.

Com base nessa percepção, precisamos entender fundamentalmente a diferença entre a ordem burguesa e a ordem socialista, como exemplificado pela diferença entre o Vietnã e a Itália, por exemplo. O primeiro, mais próximo da China, não teve mortes por Covid-19 e lidou com a entrada do vírus com uma metodologia científica; o último foi convulsionado pela doença e achou muito difícil quebrar a cadeia de infecção. O que explica a diferença entre a Itália e o Vietnã? São precisamente cinco fatores: uma abordagem científica dos líderes políticos, ação rápida do Estado para se preparar para o vírus, mobilização em larga escala por organizações populares, alívio imediato para permitir que se cumprisse o isolamento e um compromisso com o internacionalismo que incluía a produção de equipamentos de proteção para doações solidárias. Esse último ponto significava que não havia sequer um gesto de xenofobia na reação do Vietnã à doença; por isso, o primeiro ministro Nguyên Xuân Phúc deve ser parabenizado por sua liderança.

Por último, diante de um aprofundamento do neoliberalismo, o avanço da extrema direita e do neofascismo em diversos países, como no caso do Brasil, uma certa desorganização da esquerda e a impossibilidade de realizar manifestações de rua – a principal ferramenta de luta das organizações populares -, é possível ter esperança? Onde a agarramos?

A esquerda deve atentar ao fato de que as reservas de nossas forças – sindicatos e organizações camponeses – foram gravemente enfraquecidas. Construir organizações da classe trabalhadora e camponesa, bem como de trabalhadores precarizados, é essencial. Não há substituto para organizações sólidas. Não basta que tenhamos ideias e até mesmo a vocação popular. Se não tivermos capacidade organizacional, é impossível superar o neofascismo que se alimenta do sofrimento e o converte em ódio. Durante a pandemia, a esquerda ao redor do mundo busca manter suas forças, a acumular força e não desmoronar. É difícil construir o socialismo na solidão e a maioria de nossa classe não participa – por várias razões – do debate na internet (a falta de acesso é a principal razão, mesmo que hoje existam os celulares). Sabemos que o sofrimento é agudo. Acompanhamos as pessoas que prestam socorro. Devemos esperar que, quando a pandemia termine, possamos permanecer entre o povo com um programa de ação que capte suas ansiedades. O programa de ação para um mundo pós-covid-19 deve estar firmemente enraizado na imaginação socialista.

O fracasso dos Estados capitalistas em lidar com a pandemia é apenas mais um capítulo hediondo da experiência humana. Mas há outro lado que é a nossa capacidade de lutar para sermos decentes. Não vamos nos atolar no hediondo. Devemos lembrar dialeticamente que temos a capacidade de pessoas sensíveis de lutar por algo decente. É para isso que temos que viver. Não fique atolado isoladamente. Você deve viver com solidariedade social.

(*) Entrevista por Luiz Felipe Albuquerque, especial para Opera Mundi

Fonte da matéria:
https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/65050/pandemia-impos-a-maior-crise-da-historia-do-capitalismo-afirma-historiador

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