Carlos Ziller Camenietzki – Infelizmente, a experiência histórica do século XX, do curto ou do longo, mostrou que o fascismo cresce, se instala e toma o poder no vazio deixado por enganos estruturais e erros circunstanciais das forças republicanas, democráticas e socialmente generosas. O resultado dramático foi constatado em todos os países que passaram por essa experiência: Itália, Alemanha, Espanha… A herança que deixou foram anos de atraso. Não se pode esquecer que o franquismo combateu as escolas mistas e o uso comum por ambos os gêneros das piscinas públicas. Não é possível elidir o gigantesco esmagamento intelectual e artístico que sofreram os espanhóis. Tão pouco é de se desprezar o massacre industrial com o recuo da produção e a estagnação da produtividade. Menos ainda, cabe passar por cima do arcaísmo de sua agricultura nos anos do franquismo. E isso para não falar dos feitos de perseguição pós-guerra – fuzilamentos, massacres, êxodo – contra “comunistas”, “anarquistas” e outros tantos que se acreditou esconder nos infinitos armários de todas as cidades e até mesmo nas pequenas localidades.
O inumano se desenvolve sempre quando o humano falha.
Além do debate sobre os enganos de fundamentos e sobre as péssimas estratégias, a urgência impõe alguma reflexão sobre os caminhos que podem nos retirar do poço em que fomos lançados. Em primeiro lugar, é preciso caracterizar as feições próprias da atual versão do fascismo brasileiro: não se pode deixar de lado o fato do bolsonarismo ser um movimento de massas. A resposta ao chamado às ruas mostra-o muito bem: basta uma convocação para combater fantasmas que as avenidas se enchem de gente furiosa, aos berros, atacando tudo o que se veste de vermelho. De pouco vale desprezar essa característica massiva, como se os milhares que se lançam alucinados nas avenidas com suas camisas amarelas não fossem gente racional: as “velhas de Copacabana”, os “cheirosos” da Paulista são aqueles que encontraram seu calmante nessa furiosa opção.
Não estamos diante de coisa pouca. Todos os esforços resultantes de anos de estudos e empenhos se desmancham diante da arrogância bolsonarista: ciência, medicina, cultura desaparecem diante de uma afirmação exaltada de si mesmo. Trata-se de gente que se recusa sequer a ouvir os sábios, que se satisfaz com o que lê imediatamente em seu telefone esperto e desprovido de inteligência. Esse é um povo que crê cegamente em qualquer barbaridade, ainda que seja o terraplanismo, a famosa mamadeira, a masturbação de crianças, a homossexualidade infantil… E o pior: é capaz de sair às ruas aos berros contra fantasmas que eles próprios inventaram. Combatem cegamente quem tenta proteger as populações durante a pandemia: governadores, médicos, enfermeiros e qualquer um que entenda a necessidade de afastamento social. Parecem loucos, mas não são.
O bolsonarismo, como toda forma de fascismo, conta com forte apoio de massas e disputa a rua e o domínio sobre ela, ao contrário dos conservadores. Disputa ainda a supremacia da direita, como se todos os demais desse espectro político devessem se aglomerar sob sua bandeira. O aliado conservador ou centrista de ontem, passa a inimigo visceral hoje, como se a noite pudesse transformar um liberal em comunista apenas por ter discordado dos procedimentos do líder.
O bolsonarismo usa e abusa das formas de luta tradicionalmente atribuídas à esquerda, dá a elas um vigor violento abandonado pelos progressistas já há dezenas e dezenas de anos. As greves e passeatas da esquerda não mais estimulam a violência. Os bolsonaristas agem como se as formas de luta do passado fossem estratégia presente, mesmo após décadas de progresso nas relações sociais. E mais, agrega um elemento seu, próprio, que nunca constou dos programas operários ao longo do século XX: o medo. Sua estratégia sempre busca se impor pela ameaça, pela intimidação e pelo esmagamento moral. Agem sempre aos berros anunciando assassinatos e espancamentos em tudo o que identificam como diferente deles mesmos.
O bolsonarismo ataca com muita intensidade os tradicionais inimigos da esquerda, grupos de comunicação e organizações que sempre foram alvo das forças da democracia social, sobretudo de seus grupos mais radicalizados. Enfrentam e ameaçam a maior rede de comunicação do país, roubando até palavras de ordem repetidas mil vezes nas manifestações de esquerda: “Globo Lixo”, “o povo não é bobo…” etc.
O bolsonarismo despreza a cultura e busca sempre substituir o esforço em conhecer o mundo pelo empenho em manipulá-lo; troca ciência por técnica; apequena a educação como simples disciplina e controle; ele substitui a maestria da política por relações pessoais, frequentemente comparadas às relações afetivas ou à subordinação: namorados, noivos, amigos e fiéis. Sempre aposta em um discurso anti-intelectual, como se a reflexão sobre o mundo fosse apenas um discurso vazio e sem nenhuma utilidade.
O bolsonarismo combate inimigos inexistentes e busca configurar seus opostos com mitos e com lembranças distorcidas do passado. Distribui acusações antigas, perpetuadas pelo terror de decadências bem maiores que aquelas reais e vividas pelas pessoas. Ele aproveita a insegurança das gentes para fortalecer seu combate aos moinhos transfigurados em dragões e lançados sobre seus opositores. Seu motor real é a defesa da vontade imediata do líder, mesmo que esteja ancorada sobre elementos irrefutáveis da realidade: ação miliciana violenta sobre populações desvalidas, assassinato de opositores, roubos e coerção. Sua conduta sempre busca impor uma nova e mais aguda crise para afastar as consequências de outra crise anterior. Sua única constante é a diversão, afastar pelo susto e pelo impensável o olhar de quem ainda se escandaliza.
O enfrentamento em que entramos exige daqueles brasileiros de bom senso um esforço parecido ao que foi feito em meados do século passado contra essa gente: frente ampla, muito ampla, e enfrentamento impiedoso. E a derrota deles só ocorreu, no passado, após anos de uma guerra monstruosa que ceifou milhões de vidas. Não estamos diante de um enfrentamento entre direita e esquerda, não se trata de burgueses contra proletários, de ricos contra pobres ou de elites contra subalternos, de militares autoritários contra civis democratas. O que se abre diante de nós é a barbárie ignorante, imediatista e violenta! Contra isso, a cooperação entre todos os defensores da humanidade se impõe.
A experiência histórica mostra que prolongar os enfrentamentos de ontem quando as forças de hoje avançam vigorosamente é péssima estratégia. Acreditar que o ex-ministro que tanto mal fez a todo o país, há poucos anos, não é um aliado no enfrentamento ao bolsonarismo é engano que será pago com mais vitórias do inimigo. Crer que o presidente conservador do legislativo, o governador almofadinha de São Paulo, o ministro pavoneado do Supremo e tantos mais não são aliados nesse combate é oferecer uma folga inesperada ao inimigo. Aliás, esse inimigo não é conservador, é fascista. A diferença é enorme entre esses dois grupos e uma característica que os separa é a valorização da vida e da inteligência. A comprovar isso está a violência política que começa a ocupar a cena brasileira.
Ainda que agindo em frente, as forças do progresso têm na rua seu principal espaço de intervenção. Não será um conservador elitista ou um ex-ministro desenganado que descerá para os enfrentamentos que se anunciam. Disputar a voz das ruas, ainda que trancados em casa, é tarefa que se impõe ao povo de esquerda.
A bem da verdade, ainda assistimos apenas a violência verbal que se lança a esmo pelo éter. Em breve as bravatas vão se transformar em atos concretos contra tudo e contra todos que não se alinham integralmente às iniciativas de Bolsonaro. Ofender e ameaçar enfermeiros durante uma pandemia não é coisa que se possa assistir impávido.
O bolsonarismo precisa ser contido sobretudo no terreno que é nosso, com a coragem e, se necessário for, com a força física daqueles que não se intimidam com berros e ameaças. É preciso fazer como foi feito na marcha das galinhas verdes em São Paulo ou teremos instalado um terror gerado por atitudes agressivas de uma gente que só se importa com a prosperidade de seu pequeno comércio ou com o dízimo de seus fiéis.
Dizem os bolsonaristas que desejam uma intervenção militar, mas o que estão querendo implementar é uma ditadura deles mesmos, sem se preocupar com o que os militares pensam disso. Bradam por AI-5, por fechamento do Congresso e do STF sem ter em conta que o Exército Brasileiro de 2020 pouco tem a ver com aquele de 1964, e nada tem daquele de cinco anos depois. O sentido desses brados, por enquanto, é apenas mostrar sua ira e a diametral oposição ao que creem ser a fonte de seus males: a esquerda e seus governos, lembre-se, encerrados há quatro anos.
É preciso entender que a melhor resposta a uns poucos furiosos alucinados que ofendiam e ameaçavam na Praça dos Três Poderes foi dada por uma ciclista indignada com o ataque a profissionais de saúde que protestavam contra a inércia do governo federal. Se a sociedade seguir esse exemplo, se jogarmos detritos em suas carreatas, se enfrentamos fisicamente as agressões, ainda há alguma chance. Caso contrário, os bolsonaristas serão os donos da rua e, em breve, de todo o país, de todos nós! Afinal, eles são milicianos: covardes que reclamam direito de expressão para ameaçar, coagir e intimidar os defensores da democracia.
Agir dessa forma não vai empurrar as forças armadas sobre nós, vai apresentar um limite real da sociedade àquilo que se avoluma aceleradamente. Pode, inclusive, apresentar aos oficiais de bom senso uma alternativa para o posicionamento equilibrado diante de confrontos violentos de rua. Aqueles bolsonaristas que saírem às ruas precisam ser contidos por cidadãos que se importam com a vida, que se lhes imponha o mal estar, a vergonha pública e, se necessário, que recuem a seus lares à força!
Eis a boa estratégia: frente amplíssima na luta política, braço forte contra as agressões e as ameaças, firmeza na defesa da Constituição democrática.
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