Economia

Eis o sistema que é preciso destruir

Tempo de leitura: 22 min

Ann Pettifor – Como os bancos centrais inundam de dinheiro o cassino financeiro global. A moeda do mundo, criada do nada, em favor do 0,1%. O papel dos EUA. A ascensão subversiva da China. Uma estudiosa do “novo” capitalismo conta tudo

Greenback, greenback, dollar bill
Just a little piece of paper, coated with chlorophyll
Ray Charles

(“Nota de dólar, nota de dólar verde
Apenas um pedacinho de papel, revestido com clorofila ”)

Conhecemos a história porque Henry Paulson, que já foi executivo-chefe da Goldman Sachs e, também, secretário do Tesouro dos EUA durante a última crise, está reunindo os capitalistas do mundo para defender a globalização contra o reshoring, o protecionismo e os controles de imigração. Paulson entende isso como uma guerra de ideias. Nas colunas do Financial Times, defendeu que “a iminente batalha colocará as forças de abertura — enraizadas nos princípios de mercado — contra as de fechamento, em quatro dimensões: comércio, fluxos de capital, inovação e instituições globais”

Essa “batalha iminente” já se inclina a favor da classe dos credores do mundo — com o apoio dos bancos centrais e, em particular, o dos EUA, o Federal Reserve, que emprega sua arma mais potente: o dólar americano, aquele “pedacinho de papel revestido com clorofila”. Suas ações deixam claro que pode não haver um comitê internacional para salvar as pessoas de uma pandemia global, mas existe um comitê internacional criando uma “grande rede de segurança” para salvar as finanças privadas, por causa da pandemia. Os dirigentes dos bancos centrais engajaram-se em uma ação decisiva, expansiva e coordenada internacionalmente para salvar o capitalismo rentista, enquanto os governos de presidentes como Trump, Bolsonaro, Modi e Johnson divertem-se, lidando da pior maneira com a crise da covid-19.

A ascensão do nacionalismo e do protecionismo, que levou esses líderes autoritários ao poder, juntamente com ações extraordinárias dos bancos centrais em apoio aos cassinos financeiros de Wall Street e da City [centro financeiro de Londres], são reações e consequências de “externalidades negativas” típicas da globalização: conectividade e integração. A pandemia não deixa de ser também uma consequência dos riscos sistêmicos à saúde, inerentes à conectividade e à integração do projeto de globalização

Onde ficam os progressistas nesse debate de ideias que envolve globalização e políticas monetárias? A julgar pelo tom e nível do debate público ocidental, a esquerda se mantém à margem da arena de batalha entre os pró-globalização e os contrários a ela. Tanto a campanha eleitoral liderada por Jeremy Corbyn, quanto a candidatura presidencial de Bernie Sanders nos Estados Unidos, ofereceram uma análise sólida, além de uma profunda compaixão e solidariedade às vítimas da globalização e do colapso climático. Mas suas campanhas costumavam focar, com frequência, em questões domésticas — tais como sistemas de saúde, moradia acessível, a nacionalização das ferrovias, a atenção para os pobres e sem-teto — e ignoraram tanto a infraestrutura financeira globalizada (que torna praticamente impossível a reforma desses setores), como o establishment político que lutará até a morte para defender o sistema.

Essa ignorância sobre os elementos nocivos do sistema monetário internacional e seus impactos no Sul Global abafa o debate e inibe possibilidades radicais. Afinal de contas, não é possível transformar um sistema e redesenhar sua arquitetura financeira internacional, enquanto esse sistema não for compreendido, discutido e debatido

Em outras palavras, para decidir nosso rumo, precisamos entender como chegamos até aqui.

Como chegamos até aqui

Diferentemente da recente experiência com a crise internacional, o trauma da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial levou a intenso debate público sobre o sistema financeiro internacional. John Maynard Keynes era colaborador regular da imprensa popular, inclusive do Daily Mail — de direita –, e envolvia o público com frequentes transmissões de rádio sobre políticas macroeconômicas. O presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, fazia o mesmo

O Acordo de Bretton Woods de 1944 foi parte do resultado desses debates e levou à construção de uma arquitetura financeira internacional projetada para gerenciar e estabilizar os desequilíbrios no comércio e nas finanças que perturbaram o sistema mundial — e tinham aumentado as tensões políticas, levando a uma guerra catastrófica. O planejamento ajudou a gerenciar os desequilíbrios comerciais no mundo todo por quase trinta anos. Assegurou que moedas nacionais fossem vinculadas a um ativo de valor fixo. Isso impediu a especulação cambial e garantiu que a moeda de cada país refletisse os pontos fortes e as necessidades da economia doméstica, não os interesses dos mercados de capitais na economia internacional

Entretanto, logo surgiram tensões e deformações. Já em 1963, Robert McNamara advertia que os gastos militares norte-americanos no exterior haviam se tornado tão grandes que ameaçavam o que ele chamava de “cobertura de ouro” do dólar dos EUA. Em seu estudo magistral da estratégia econômica do império americano, Michael Hudson relata que, em maio de 1970, o secretário do Tesouro dos EUA, David Kennedy, alertou que se países estrangeiros não viabilizassem o aumento das exportações dos Estados Unidos, o Congresso poderia restringir as importações. Hudson escreve que, “basicamente, ele queria dizer que, à medida em que o capital privado dos EUA continuasse a comprar as indústrias e empresas da Europa e da Ásia, estabelecendo um déficit americano na balança de pagamentos por conta de capital, os países que acabavam tendo um superávit, ao receber esses dólares de forma forçada, deveriam aumentar suas importações dos Estados Unidos em quantidades equivalentes ao custo dos EUA para assumir o controle de seus setores e empresas.

Richard Nixon, o presidente norte-americano à época, tendo seu objetivo frustrado por causa de aliados obstinados como o presidente De Gaulle, desmantelou unilateralmente e sem consultar ninguém, o Sistema de Bretton Woods, suspendendo toda a venda adicional de ouro dos EUA a bancos centrais estrangeiros. A partir de então, os US$ 61 bilhões em dívidas líquidas devidas aos estrangeiros seriam pagos apenas na forma de “uma nota de dólar verde, um pedacinho de papel coberto de clorofila”. Com os pagamentos em ouro suspensos, a dívida externa dos Estados Unidos foi, de fato, repudiada. Embora nunca lembrada por economistas e historiadores dessa forma, a ação de Nixon, conhecida como “o choque Nixon”, levou, na época, ao calote de dívida da história

A partir de então, as moedas estrangeiras não seriam mais conversíveis em um ativo seguro de valor fixo, mas em dólares americanos de papel. E, em vez de ouro, a dívida de curto prazo dos EUA (letras do Tesouro), no futuro, seria mantida entre as reservas monetárias dos bancos centrais estrangeiros. Ou seja, as obrigações da dívida de curto prazo do governo dos Estados Unidos assumiram o lugar do ouro, e se tornanaram a reserva monetária oficial mundial.

Mas Nixon ainda tinha mais coisas a fazer para consolidar os EUA como o poder hegemônico global.

A desacoplagem do dólar em relação ao ouro em 1971 levou, como se esperava, a uma queda no valor do dólar. Agora, as receitas obtidas pelos países produtores de petróleo compravam menos nos mercados internacionais. Para aumentar o desespero dos produtores de petróleo do Oriente Médio, os EUA apoiaram Israel na guerra árabe-israelense de 1973. Em resposta, o cartel de petróleo (OPEP) aumentou drasticamente o preço do petróleo. Os enormes ganhos das vendas de petróleo do Oriente Médio inundaram bancos e instituições financeiras ocidentais, que relataram taxas médias líquidas de crescimento anual de depósitos entre 25 e 30%. A alta dos preços do petróleo, combinadoa com a desregulamentação financeira pós-Bretton Woods, desencadeou a inflação em todo o mundo.

E assim, William Simon, recém-nomeado secretário do Tesouro dos EUA, e seu vice, Gerry Parsky, foram encarregados pelo presidente Nixon e por Henry Kissinger de negociar um acordo com os sauditas. O objetivo era claro: persuadir o rei Saudita a investir os retornos de seus campos de petróleo na dívida americana. O rei saudita, Faisal bin Abdulaziz Al Saud, exigiu apenas uma condição em troca: seu financiamento do déficit americano, deveria permanecer “em estrito segredo”, de acordo com um cabo diplomático obtido pela Bloomberg no banco de dados do National Archives

O segredo saudita foi mantido por mais de quatro décadas, e o arranjo fez do Reino Saudita um dos maiores credores estrangeiros dos EUA. Foi, ficou provado, uma arma diplomática útil — e explica a relutância do governo dos EUA em investigar o assassinato brutal de um jornalista do Washington Post, dissidente da Arábia Saudita, Jamal Khashoggi em 2018. Em abril de 2016, a Arábia Saudita ameaçou vender até $ 750 bilhões de dólares em títulos do Tesouro dos EUA e outros ativos, se o Congresso norte-americano aprovasse uma lei que permitisse ao reino ser responsabilizado nos tribunais dos EUA pelos ataques terroristas de 11 de setembro, segundo o New York Times

A dolarização dos combustíveis fósseis transformou o sistema internacional e levou à criação do petrodólar — a “chave para o funcionamento do dinheiro neocolonial”, como argumentou Andres Arauz, ex-ministro equatoriano e conselheiro da Progressive International.

O “Choque Nixon” e o petrodólar foram cruciais para a criação e manutenção da hegemonia global. Ambos contribuíram para a desregulamentação, conectividade e integração que financiaram e carbonizaram a economia global. Nesse sentido, as crises econômicas, ecológicas e de saúde de hoje são, em grande parte, uma consequência das decisões geopolíticas tomadas em 1971.

Que é o sistema monetário internacional atual?

Se o sistema monetário internacional de hoje é resultado das decisões do governo dos EUA, ele trabalha com efetividade na proteção dos interesses da classe rentista globalizada — assim como o padrão-ouro do século XIX e início do século XX protegia os interesses globais desde o centro financeiro de Londres

No cume do sistema, está o Federal Reserve: emissor da moeda de reserva mundial. O dólar é o eixo central que suporta o peso da arquitetura monetária internacional.

Como tal, o Fed é agora a única fonte de liquidez global, fornecendo dólares (por meio de ‘linhas de swap’) não apenas para todos os bancos e credores do mundo, mas também para alguns poucos Bancos Centrais do mundo. Os excluídos desta generosidade imperial incluem a maioria dos países de baixa renda, mas também a China

Apesar de seu mandato oficial, a missão do Fed, atualmente, não é a segurança e a prosperidade da economia doméstica da qual seus governadores dependem para governar e da qual derivam seu mandato. Em vez disso, o Fed é, na verdade, uma instituição com apoio público cujas operações são conduzidas por autoridades privadas, quase completamente isoladas da supervisão democrática ou da prestação de contas.

Cada vez mais, as variadas e numerosas intervenções do Fed e de outros bancos centrais são realizadas para proteger apenas uma classe que opera no sistema internacional: credores, investidores e especuladores. Por exemplo, as injeções de liquidez do Federal Reserve — destinadas a apoiar os mercados de capitais privados — são realizadas no setor bancário paralelo, por meio de operações de mercado de recompra (onde, tal como nas casas de penhores, as garantias são temporariamente trocadas por dinheiro), e não através da prática consagrada de compras de ativos de mercado aberto em troca de liquidez.

Em outras palavras, o Federal Reserve e outras operações do banco central fornecem agora segurança e proteção a uma classe global de rentistas, incluindo fundos de private equity (PE) que “aproveitam o sigilo para fleece investors (investidores que pagam muito acima do valor esperado ou justo em algo) e contribuintes“. Em vez de tomar empréstimos em seu próprio nome, as empresas de private equity aversas ao risco faziam certas companhias-alvo carregar suas dívidas, e então, como “bancos do sistema financeiro das sombras”, começavam a emprestar dinheiro para cidadãos e empresas. Quando a pandemia de coronavírus obrigou “os mercados de crédito a uma queda em março”, o fundo de PE Apollo, depois de evitar impostos, fez um forte lobby e conseguiu ser socorrido pelos contribuintes. As fantásticas e inéditas intervenções do Fed em março de 2020, como Trevor Jackson argumenta, consistiram em “inundar os mercados financeiros com dinheiro o mais rápido possível, para que os bancos pudessem continuar emprestando, os compradores de ações pudessem continuar comprando e as instituições pudessem continuar pagando suas dívidas”. Longe de esvaziar a bolha da dívida global, o Federal Reserve mantém a dívida e seus proprietários flutuando.

É por isso que, também, apesar de todo o seu poder, o Fed não consegue administrar uma economia global profundamente instável. Na realidade, ele pode até ter contribuído para o fracasso econômico. Como o FMI explica no Relatório Global de Estabilidade Financeira de 2020, o Fed preferiu fechar os olhos quando os mercados de crédito privado se expandiram rapidamente após a crise financeira global de 2007-2009, atingindo $ 9 trilhões de dólares em todo o mundo. Simultaneamente, a baixa regulamentação dos bancos centrais reduziu a qualidade do crédito dos mutuários e enfraqueceu os padrões de subscrição e a proteção dos investidores. Esses mercados de crédito arriscados — em títulos “podres” de alto rendimento, empréstimos alavancados e dívida privada — continuaram a mostrar tensões até o início de abril, apesar da forte injeção de dinheiro do Fed.

Então, com a ajuda dos credores internacionais, o Federal Reserve está sustentando firmas altamente endividadas, quando a economia real dá todas as indicações de uma espiral descendente para a deflação. Quem se beneficia de uma espiral deflacionária? Você adivinhou: a classe rentista. À medida que os preços e os salários caem, o valor relativo da dívida aumenta, assim como o custo do serviço da dívida

Agora, a deflação assombra a economia global. Mesmo provocando queda de preços e lucros, e aumento do desemprego, enriquece os credores. Isso ocorre porque a deflação “envolve uma transferência de riqueza do resto da comunidade para a classe rentista”, como escreveu Keynes em seu Tratado sobre a Reforma Monetária, “assim como a inflação envolve o oposto…  [A deflação] supõe uma transferência de todos os tomadores de empréstimos, ou seja, dos comerciantes, fabricantes e agricultores, aos credores. Do ativo ao inativo.”

Quais as consequências para o Sul Global?

Como resultado das ações voláteis e instáveis dos investidores globais, os mercados emergentes tiveram o maior fluxo negativo de divisas já registrado, segundo o FMI. Fugiram 100 bilhões de dólares nas últimas semanas de março e início de abril de 2020. O movimento esmagou as moedas dos países de baixa renda, enquanto aumentava simultaneamente o valor do dólar. Como só o dólar americano é reconhecido pelos mercados internacionais para o pagamento de importações essenciais, sua força aumentou o custo das importações denominadas em dólares.

Isso, por sua vez, levou a desequilíbrios nas contas comerciais e de capital, que levaram os fantasmas da economia global — as agências de classificação ocidentais — a rebaixar os países que foram vítimas de fuga de capitais. Os rebaixamentos, portanto, aumentaram os custos de empréstimos e também a disponibilidade de crédito, num momento em que os mercados globais de exportações de commodities para países pobres já estavam debilitados, reduzindo sua renda. Ao mesmo tempo, moedas enfraquecidas aumentaram o custo da compra de equipamentos vitais e produtos farmacêuticos do exterior

Os países empobrecidos foram efetivamente sacrificados na cruz do dólar.

Essa recente debandada do capital e seu impacto na vida e nos meios de subsistência de milhões de pessoas no Sul Global passaram despercebidos em círculos progressistas. Mas a fuga de capitais por mero capricho dos investidores, juntamente com o subsequente fortalecimento do dólar, não são conseqüências acidentais ou inevitáveis da pandemia.

Afinal, o vírus anuncia um maior fracasso econômico nos Estados Unidos do que em muitos mercados emergentes. Tampouco pode ser explicado diretamente por mudanças repentinas nas circunstâncias econômicas dos países atropelados pela pressa dos investidores em sair. Na verdade, trata-se de uma conseqüência do design do sistema internacional — uma arquitetura financeira global destinada a atender aos caprichos dos investidores, não importa quão irracionais eles sejam, e a proteger os interesses dos credores.

O FMI pode fazer o resgate?

Em todo o universo de comentários sobre “o que deveria ser feito” em relação à crise financeira internacional induzida pelo Covid-19, existe um consenso sobre a necessidade de o Fundo Monetário Internacional (FMI) assumir um papel maior. Em particular, muitos defendem que o FMI emita bilhões de dólares em Direitos Especiais, de Saque, distribuindo-os aos bancos centrais de seus membros. Esses direitos de saque tornaram-se uma solução essencial para lidar com o problema da liquidez do dólar no contexto da atual pandemia

Mas, de uma perspectiva progressista, há desvantagens reais em legar esse grande poder ao FMI.

Primeiro, porque os países devedores não confiam na instituição, devido à sua conhecida e consntante defesa dos interesses dos credores internacionais — públicos e privados. O FMI atua como agente em nome dos credores e impõe condicionalidades de política a países cujo objetivo específico — embora muitas vezes disfarçado de ‘programas de estabilização’ — é gerar recursos para credores estrangeiros e garantir que estes últimos não tenham perdas em empréstimos feitos a governos soberanos

Em segundo lugar, a emissão dos Direitos Especiais de Saque do FMI é apenas outra maneira de os países de baixa renda adquirirem dólares da própria moeda hegemônica — através do FMI, e não do mercado aberto. Além disso, o poder de voto da hegemonia no FMI permite vetar qualquer proposta de alocação de direitos especiais considerados hostis aos interesses dos EUA — conforme definido pelo presidente americano

Daí a decisão do governo Trump de vetar, “por enquanto”, o comovido apelo por uma maior alocação de direitos de saque, declarando que “não deseja dar à China e ao Irã acesso a reservas extras incondicionais”

Que mudanças são necessárias no sistema financeiro internacional?

Se quisermos vencer a batalha das ideias — se quisermos reverter a hiperglobalização e sua cruel preferência pelo rentismo por sobre os interesses das pessoas e do planeta –, então a esquerda precisa desenvolver um plano para desmantelar o sistema atual e construir uma nova arquitetura monetária internacional democrática, mais justa, e, finalmente, sustentável

Isso começa desafiando a supremacia do dólar.

Um propósito que deve ser explorado é a possibilidade de criar um sistema no qual todas as moedas possam ser usadas nas transações internacionais e domésticas, independentemente do tamanho das economias em que são emitidas. Como argumentou Jane D’Arista em 2003, “o ativo de reserva internacional (a moeda mundial) deve responder à necessidade de inclusão: seu valor deve ser baseado em uma cesta de moedas ponderada pelo comércio de todos os países membros”

No ápice de uma arquitetura monetária internacional progressista, haverá um banco: uma instituição internacional que facilite as transações entre nações ou regiões de nações. Que poderia usar seus poderes para desencorajar países que acumulem ‘saques a descoberto’ — déficits em seu comércio — e disciplinar os países-membros que acumulem superávits maciços: porque o superávit de um país é o déficit de outro. Dessa forma, poderia ajudar a acabar com os atuais desequilíbrios globais, onde países como China e Alemanha têm grandes superávits comerciais, mas EUA, Espanha e Grã-Bretanha têm déficits insustentáveis. Tais desequilíbrios são política e economicamente desestabilizadores.

E ainda poderia fazer mais. Poderia armazenar os títulos (do governo) dos países-membros e usar esses ativos ou reservas para gerar liquidez adicional. Em outras palavras, ativos seguros de garantia soberana permitiriam ao banco fazer o que o Fed faz atualmente: gerar liquidez e desempenhar o papel de “credor de último recurso”

Sua supervisão e gestão democrática — não pela autoridade privada, mas pela autoridade pública — será fundamental para a saúde do sistema internacional. As finanças devem voltar a servir a economia global (europeia, ou de qualquer país), e não a dominá-la.

Essas ideias podem parecer utópicas, mas as figuras do establishment — prevendo a gravidade da conjuntura atual — estão se mobilizando rapidamente para adotar ideias mais radicais. “Múltiplas moedas de reserva aumentariam a oferta de ativos seguros, aliviando as pressões descendentes da taxa de juros de equilíbrio global que um sistema assimétrico pode exercer”, disse recentemente o ex-diretor do Banco da Inglaterra, Mark Carney. “E com muitos países emitindo ativos seguros globais em concorrência entre si, o prêmio de segurança que eles recebem deve cair.

Carney propõe uma alternativa: uma Moeda Hegemônica Sintética (“SHC”, na sigla em inglês) que seria fornecida pelo setor público, talvez por meio de uma rede de moedas digitais do Banco Central. “Uma moeda hegemônica no Sistema Financeiro e Monetário Internacional (SFMI) poderia fornecer melhores resultados globais, dada a escala dos desafios do atual SFMI e os riscos que envolvem a transição para uma nova moeda de reserva hegemônica, como o Renminbi. Uma SHC poderia diminuir a influência dominante do dólar americano no comércio global. Se a parte do comércio faturado na SHC aumentasse, os choques nos EUA teriam repercussões menos potentes por meio das taxas de câmbio, e o comércio se tornaria menos sincronizado entre os países. Da mesma forma, o comércio global se tornaria mais sensível às mudanças das condições nos países de outras moedas do grupo que integra ou apoia a SHC.

Seria difícil descrever Carney, que ganhou respeito na Goldman Sachs, como um progressista. Mas o fato de que ele está empurrando essas novas ideias só vai mostrar o quão longe os progressistas têm que caminhar para recuperar o sistema financeiro internacional como seu território de luta.

A esquerda tem muito pouco a dizer sobre uma economia global agora governada efetivamente por tecnocratas não eleitos e misteriosos. Pelo contrário, alguns daqueles localizados no lado progressista do espectro político aplaudem o resgate feito por banqueiros centrais de credores de risco e muitas vezes imprudentes. Adam Tooze recentemente se entusiasmou com a criação, pelo Fed, de uma “rede gigante de salvação pública… estendida por todo o sistema financeiro”.

Muitos outros comentaristas e economistas se uniram na adulação, o que lembra a este autor dos elogios nos anos 1990 e no começo dos 2000 recebidos pelo infalível “mestre” dos EUA e da economia global, Alan Greenspan.

Esse entusiasmo por soluções tecnocratas e essencialmente antidemocráticas pode ser explicado em parte pela falência da economia. “A financialização é a razão menos estudada e mais explorada por trás de nossa inabilidade de criar uma prosperidade compartilhada”, argumenta Rana Foroohar em seu livro Makers and Takers (2016). E isso ajuda a explicar por que progressistas falham em entender a estrutura e o objetivo do sistema financeiro internacional e seus ganhos à classe rentista.

Isso também explica a admiração com que os tecnocratas de bancos centrais são agora vistos por muitos, e o foco míope nas questões domésticas da maior parte dos debates econômicos de esquerda. Sem falar na ausência de preocupação séria com as crises enfrentadas pelos países mais pobres.

Já é tempo de nos organizarmos para entender melhor, e transformar o sistema.

Conclusão

Transformar o sistema financeiro internacional é urgente, se quisermos que o mundo reverta os danos feitos tanto às sociedades quanto ao ecossistema pelo desenfreado sistema de “crescimento” econômico exponencial e acumulação de capital via rentismo financeiro.

O atual colapso do sistema capitalista internacional faz com que uma transformação entre na faixa das “possibilidades radicais”. Mas não nos esqueçamos: a crise pode tanto ser resolvida pelo conflito — com o poder hegemônico usando seu todo-poderoso poder militar — ou pela transformação racional e progressista do sistema.

As grandes questões que enfrentamos são essas: primeiro, por que os progressistas não estão na vanguarda desse debate? Segundo, como expandir a educação pública e o entendimento do sistema e suas consequências? Terceiro, como mobilizar apoio público para uma solução progressista à crise atual

Talvez, essa Internacional Progressista, ao convocar ao diálogo global nessa conjuntura crítica, possa respondê-lo. Talvez, juntos possamos acabar com nossa dependência das “notas de dólar verde”, que, afinal de contas, são “um pedacinho de papel coberto de clorofila”.

Fonte da matéria:

Eis o sistema que é preciso destruir

Deixe uma resposta