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Esse é o início do século asiático?

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Noah Barkin – Pesquisas de opinião com alemães e italianos mostram que reputação dos EUA está em queda, enquanto confiança na China cresce. Reação à pandemia é motivo principal, mas figura de Trump incomoda. Como isso impacta na política externa.

Nas últimas semanas a mídia norte-americana vem bombardeando insistentemente que a pandemia de covid-19 teria aberto os olhos do mundo para a verdadeira natureza do regime chinês. Pode até ser verdade, mas na Europa é a resposta dos Estados Unidos à pandemia, e não a da China, que tem deixado profundamente aturdidos tanto os políticos quanto o público em geral.

Uma pesquisa recente da [semigovernamental] Fundação Körber, de Hamburgo, Alemanha, divulgada no dia 18 de maio, é a evidência mais recente. Os resultados são surpreendentes, e deveriam fazer parar para pensar aqueles que em Washington supõem que uma frente robusta e unida de países, liderada pelos EUA e contra a China, emergirá na esteira desta crise.

A pesquisa mostra que os alemães estão agora divididos praticamente por igual sobre ser Washington ou Pequim o parceiro mais importante para o país: 37% escolheram os Estados Unidos e 36% a China. Isso representa uma mudança significativa, em comparação com a última pesquisa da Körber, de setembro de 2019, quando os alemães deram aos Estados Unidos uma vantagem de 26 pontos percentuais sobre a China.

Isso não significa que os alemães estão dando um passe livre para a China. Cerca de 71% concordam que uma transparência maior do governo chinês teria reduzido o impacto ou até mesmo impedido a propagação da pandemia. No entanto, apenas 36% dizem que sua opinião sobre a China piorou, em comparação com 73% que manifestaram que sua apreciação a respeito dos Estados Unidos se deteriorou durante a crise.

O que isso significa? Primeiro, algumas advertências. Poucas pessoas esperam transparência do Partido Comunista Chinês (PCC). Elas têm nos Estados Unidos uma referência mais elevada e, assim, são mais sensíveis às decepções produzidas por Washington. Além do mais, a apreciação dos alemães sobre os Estados Unidos é das mais negativas na Europa desde que Donald Trump assumiu a Casa Branca. Assim também foi com George W. Bush. Só quando ele foi substituído por Barack Obama é que a opinião dos alemães retornou rapidamente para um patamar positivo. A opinião pública alemã sobre os Estados Unidos é volúvel e, com ou sem razão, é severamente influenciada por quem está sentado no Salão Oval [N. do T.: Note-se: essa é a visão de um jornalista norte-americano que circulou pelo mainstream da mídia comercial do seu país antes de ser bolsista, na Alemanha, em um think tank que faz parte da rede de fundações (semi)acadêmicas conservadoras alemãs encabeçada pela Konrad-Adenauer-Stiftung. O presente artigo, portanto, presta-se a ser um texto de alerta aos seus interlocutores americanos, e não necessariamente uma análise crítica de conjuntura].

“A atitude dos alemães em relação aos Estados Unidos já estava em queda livre antes da crise do coronavírus” ― comentou Nora Müller, diretora executiva de assuntos internacionais da Körber-Stiftung. “Dúvidas sobre a gestão da pandemia pelo governo Trump e uma perceptível ausência de liderança global por parte dos Estados Unidos obviamente agravaram esse distanciamento”.

De outra parte, os políticos alemães precisam considerar elementos mais amplos para balancear o relacionamento seja com Washington seja com Pequim. Os Estados Unidos são uma democracia que compartilharia valores essenciais com a Europa. A China, não. Os Estados Unidos [teoricamente] garantem a segurança da Alemanha e de outros países europeus há 75 anos. A China passou grande parte desse período preocupada consigo mesma.

Mas o mundo está mudando. Podemos estar no início de um século asiático. Políticos tanto na Alemanha quanto em outros lugares da Europa percebem o giro do arco geopolítico. E isso afeta seus cálculos. Eles veem um PCC que encobriu o vírus nas primeiras semanas e que, depois que se espalhou pelo mundo, empregou uma campanha agressiva de propaganda e desinformação, para tentar mudar a narrativa a seu favor [N. do T.: o autor parece desconhecer que a versão chinesa para “o vírus não é de Wuhan” foi desencadeada a partir do reducionismo de Trump e da mídia ocidental sobre “o vírus chinês” cultivado pelos “anti-higiênicos comedores de morcego”]. Mas eles também veem como o PCC teve sucesso na contenção doméstica do vírus, a partir do momento em que decidiu enfrentá-lo ― ainda que com táticas que não seriam aceitáveis nas democracias liberais [N. do T.: enfatize-se aqui mais o “liberais” do que o “democracias”]. Por isso, é provável que a economia chinesa se recupere mais rapidamente.

Por outro lado, quando olham para os Estados Unidos, veem o caos: um país onde, mesmo diante de uma doença que já matou quase cem mil americanos, os políticos são incapazes de superar o mero tiroteio partidário para chegar a um consenso. Eles veem um governo que rechaça a ciência e a cooperação global exatamente quando são mais necessários. E eles veem um presidente que dá mostras de estar pronto para aplicar uma tática de terra arrasada no relacionamento do seu país com a China, desde que isso pareça necessário para recuperar os fracos sinais de suas esperanças de reeleição.

Importante notar que Trump não é visto na Europa como a causa da disfunção dos Estados Unidos, mas como um sintoma ou acelerador dela. Se Joe Biden estiver sentado na Casa Branca em janeiro, a paralisante divisão partidária ainda estará lá, como também a devastação econômica deixada por uma crise para a qual os americanos ― depois de décadas de um governo cada vez menor ― parecem totalmente despreparados para lidar. Trabalhar com os Estados Unidos pode ser mais fácil depois que Trump se for. Mas por quanto tempo? Na Alemanha e em outros países europeus, a resposta dos Estados Unidos ao coronavírus aprofundou dúvidas como essa.

De acordo com uma pesquisa deste mês do [think tank nacionalista e expansionista] British Foreign Policy Group [“Grupo Britânico para a Política Exterior”], apenas 28% dos britânicos disseram confiar nos Estados Unidos como modelo de ação responsável no mundo; uma queda de 13 pontos percentuais desde janeiro. Os eleitores conservadores, que anteriormente expressavam níveis bastante altos de confiança nos Estados Unidos, são os responsáveis pela maior perda de confiança.

Um levantamento do Ifop [Instituto Francês de Opinião Pública; instituto empresarial de pesquisas semelhante ao brasileiro Ipsos-Marplan] perguntou aos franceses este mês quais os países melhor posicionados para enfrentar os desafios das próximas décadas. Apenas 3% escolheram os Estados Unidos. Em abril, uma sondagem realizada pelo instituto de pesquisas SWG [análogo ao anterior, da Itália] mostrou que 36% dos italianos perguntados acreditavam que seu país deveria concentrar esforços no desenvolvimento de laços estreitos com a China, em comparação com 30% que escolheram os Estados Unidos.

Na pesquisa da Körber, que se vinha antes mencionando, uma geração mais jovem ― que cresceu acompanhando o cenário da Guerra do Iraque, ouvindo histórias de espionagem da NSA, e vendo agora Trump ― foi a que mostrou o maior ceticismo com relação aos Estados Unidos. Entre os alemães da faixa etária dos 18 aos 34 anos, 46% disseram que era importante manter laços estreitos com a China, contra 35% que escolheram os Estados Unidos.

Isso não significa que a Europa esteja caminhando para uma política de equidistância entre Estados Unidos e China. Já há anos vem se consolidando a preocupação com o rumo que o presidente Xi Jinping está tomando na China: mais controle estatal, mais vigilância e mais intimidação no exterior.

Isso tudo significa apenas que a Europa continuará a ser cautelosa em tomar o partido de Washington contra Pequim.

Você concordaria em enfrentar o valentão da escola junto com seu velho amigo se esse amigo não é confiável? [N. do T.: Há que se perdoar a lógica provincianamente norte-americana do autor; o mundo pode ser mais complexo que isso]. E se o amigo começar a intimidar você mesmo ― como os Estados Unidos fizeram com a União Europeia na telefonia 5G e parecem estar fazendo agora com o Reino Unido ―, insistindo numa escolha excludente: ou um acordo comercial com Washington ou com Pequim? Você provavelmente não vai querer enfrentar o valentão com esse amigo.

De fato, ao invés disso, a Europa está se resguardando. Atualmente ela está em negociações com Pequim em torno de um amplo acordo de investimento e medidas conjuntas para o combate às mudanças climáticas. Costurar um acordo desse tipo é quase um tiro no escuro. Mas se ele se concretiza, exatamente quando os Estados Unidos estão realizando suas eleições, isso será outro sinal de que os Estados Unidos estão perdendo a Europa diante da sua maior prioridade na política externa: a China.

Esse é o início do século asiático?

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