Maristella Svampa – É necessário abandonar o discurso da “guerra contra o vírus” e assumir as causas ambientais da pandemia, juntamente com as sanitárias, e colocá-las na agenda política. Isso nos ajudaria na preparação para o grande desafio à humanidade representado pela crise climática. Precisamos de um grande pacto ecossocial e econômico.
Houve muitas pandemias na história, começando com a peste negra na Idade Média e passando pelas doenças que vieram da Europa e devastaram a população indígena na América durante a conquista. Estima-se que entre trinta e noventa milhões de pessoas tenham morrido nos surtos de gripe, sarampo e tifo. Mais recentemente, evoca-se a gripe espanhola (1918-1019), a gripe asiática (1957), a gripe de Hong Kong (1968), a aids (a partir da década de 1980), a gripe suína AH1N1 (2009), SARS (2002), Ebola (2014), MERS (coronavírus 2015) e, agora, a Covid-19.
No entanto, nunca vivemos em um estado de quarentena global, nunca pensamos que a instalação de um Estado de exceção transitório, um Leviatã sanitário, pelos Estados nacionais, seria tão rápida. Atualmente, quase um terço da humanidade está em confinamento obrigatório. Por um lado, as fronteiras externas são fechadas, os controles internos são instalados, o paradigma de segurança e controle é expandido, são necessários isolamento e distanciamento social. Por outro lado, aqueles que até ontem defendiam as políticas de redução do Estado mudam o discurso devido à necessária intervenção estatal: os programas de austeridade que atingem a saúde pública, mesmo em países do Norte global, passam a ser amaldiçoados.
É difícil pensar que o mundo antes da grande pandemia era um mundo “sólido”, em termos de sistema econômico e social. O coronavírus nos lança na arena em que os grandes debates da sociedade são importantes acima de tudo: como pensar sobre a sociedade a partir de agora?, como sair da crise?, que Estado precisamos para isso? Em resumo, trata-se de pensar o futuro da civilização à beira do colapso sistêmico.
Neste artigo, gostaria de contribuir para esses grandes debates, com uma reflexão que propõe avançar precariamente em algumas lições que a grande pandemia nos oferece e esboçar algumas hipóteses sobre o possível cenário futuro.
O retorno do Estado e suas ambivalências:
o Leviatã sanitário e suas duas faces
Reformulando a ideia do Leviatã climático de Geoff Mann e Joel Wainwright, podemos dizer que estamos enfrentando o surgimento de um Leviatã sanitário transitório que tem duas faces. Por um lado, parece haver um retorno do Estado social. Assim, as medidas que estão sendo aplicadas no mundo implicam uma intervenção decidida do Estado, que inclui desde governos com Estados fortes — Alemanha e França — até governos com uma vocação liberal marcante, como os Estados Unidos.
Por exemplo, Angela Merkel anunciou um pacote de medidas sanitárias e econômicas no valor de 156 bilhões de euros, parte do qual serve como fundo de resgate para trabalhadores autônomos e empresas com até dez funcionários; na Espanha, as medidas mobilizarão até duzentos bilhões de euros, 20% do PIB; na França, Emmanuel Macron anunciou uma ajuda no valor de 45 bilhões de euros e garantias de empréstimos de trezentos bilhões de euros.
A situação é tão séria, dada a perda de emprego e os milhões de desempregados que essa crise gerará, que até os economistas mais liberais estão pensando em um segundo New Deal no contexto dessa grande crise sistêmica. A médio e longo prazo, a questão é sempre quais setores serão beneficiados por essas políticas. Por exemplo, Donald Trump já deu um sinal muito claro: a chamada Lei de Ajuda Econômica, Alívio e Segurança de Coronavírus (CARES) é um pacote de estímulo de dois trilhões para, entre outros objetivos, resgatar setores sensíveis da economia, incluindo a indústria de fracking, uma das atividades mais poluentes e subsidiadas pelo Estado.
Por outro lado, o Leviatã sanitário é acompanhado pelo estado de emergência. Muito já foi escrito sobre isso, não serei repetitiva. Basta dizer que maiores controles sociais são visíveis em diferentes países na forma de violação de direitos, militarização de territórios e repressão dos setores mais vulneráveis. De fato, nos países do Sul, e não em uma sociedade de vigilância digital ao estilo asiático, o que encontramos é a expansão de um modelo de vigilância menos sofisticado, realizado pelas diferentes forças de segurança, que podem atingir ainda mais os setores mais vulneráveis, em nome da guerra contra o coronavírus.
Uma pergunta ressoa o tempo todo: até que ponto os Estados têm apoio para continuar com essa recuperação social? Isso é algo que veremos nos próximos meses. Nesse futuro próximo, as lutas sociais não serão incomuns: haverá movimentos populares, mas também pressões de setores econômicos mais concentrados. Por outro lado, devemos lembrar que os Estados periféricos possuem muito menos recursos. Nenhum país se salvará, independentemente das medidas progressivas que implementar.
Tudo parece indicar que a solução é global e requer uma reformulação radical das relações Norte-Sul, no quadro do multilateralismo democrático, que visa a criação de Estados nacionais nos quais os âmbitos social, ambiental e econômico aparecem interconectados — e no centro da agenda.
As crises como aprendizado para não cair em falsas soluções
A pandemia destaca a extensão das desigualdades sociais e a enorme tendência de concentração de riqueza existente no planeta. Isso não é novidade, mas nos leva a refletir sobre as soluções que outras crises globais tiveram. Nesse sentido, a crise global que aparece como o antecedente mais recente, ainda que com características diferentes, é a de 2008.
Causada pela bolha imobiliária nos Estados Unidos, a crise teve uma natureza financeira e foi transferida para outras partes do mundo, convertendo-se em um levante econômico de proporções globais. Também persiste como a pior lembrança em relação à resolução de uma crise, cujas consequências ainda estamos enfrentando. Com poucas exceções, os governos organizaram resgates de grandes corporações financeiras, incluindo seus executivos, que ficaram mais ricos do que nunca no final da crise.
Assim, em termos sociais e em escala mundial, a reconfiguração foi regressiva. Dizem que a economia se recuperou novamente, mas 1% dos mais ricos ficou ainda mais rico e a desigualdade aumentou. Lembre-se da ascensão do movimento Occupy Wall Street, em 2011, cujo lema era “Somos os 99%”. Milhões de pessoas perderam suas casas em todo o mundo e ficaram superendividadas e desempregadas, os planos de ajuste e o desinvestimento em saúde e educação se espalharam por muitos países, algo ilustrado drasticamente pela Grécia, mas que se estende a Itália, Espanha e França.
Na véspera do Fórum de Davos, em janeiro de 2020, um relatório da Oxfam afirmou que apenas “2.153 bilionários no mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas (60% da população mundial)”. Em termos políticos globais, a crise de 2008 produziu enormes movimentos tectônicos, ilustrados pelo surgimento de novos partidos e lideranças autoritárias em todo o mundo: uma direita reacionária, que inclui desde o Tea Party a Donald Trump, de Jair Bolsonaro a Scott Morrison, de Matteo Salvini a Boris Johnson, entre outros.
Por outro lado, se até alguns anos atrás se considerava que a América Latina estava contrariando o processo de radicalização direitista pela qual hoje partes da Europa e dos Estados Unidos estavam passando, com suas consequências em termos de crescentes desigualdades, xenofobia e antiglobalismo, novos ventos ideológicos passaram a varrer a região nos últimos tempos, especialmente após a ascensão de Bolsonaro no Brasil e do golpe na Bolívia.
A isso devemos acrescentar que a América Latina, embora tenha sobrevivido, na vigência plena do “Consenso das Commodities“, à crise econômica e financeira de 2008, graças ao alto preço das matérias-primas e às exportações em larga escala, conseguiu preservar pouco desse período de vacas gordas do neoextrativismo.
Continua sendo a região mais desigual do mundo (20% da população concentra 83% da riqueza), é onde há o maior processo de concentração e apropriação de terras (graças à expansão da fronteira agrícola), além de ser o lugar mais perigoso do mundo para ativistas ambientais e defensores de direitos humanos (60% dos assassinatos de defensores ambientais, cometidos em 2016 e 2017, ocorreram na América Latina). Como se não bastasse, é a região mais insegura para as mulheres vítimas de feminicídio e violência de gênero.
Assim, a resolução da crise de 2008 e seus efeitos negativos são claramente sentidos hoje. Essas saídas, que acentuaram a concentração da riqueza e o neoliberalismo predatório, devem funcionar como um contraexemplo eficaz e convincente para que optemos por propostas inovadoras e democráticas que visem a igualdade e a solidariedade. Ao mesmo tempo, deveriam nos fazer refletir que as soluções adotadas pelos países do Sul que durante o “Consenso das Commodities” evitaram a crise e aproveitaram a extraordinária lucratividade através da exportação de matérias-primas, usando as receitas do neo-extrativismo, não funcionaram nem podem se apresentar como a personificação de um modelo positivo.
Ocultação de causas ambientais e hiperpresença do discurso de guerra
Gostaria agora de me debruçar um pouco sobre as causas ambientais da pandemia. Hoje lemos em numerosos artigos, corroborados por diferentes estudos científicos, que os vírus que atormentaram a humanidade nos últimos tempos estão diretamente associados à destruição de ecossistemas, desmatamento e tráfico de animais silvestres promovidos pelas monoculturas. No entanto, parece que a atenção à própria pandemia e as estratégias de controle que estão sendo desenvolvidas não incorporaram esse núcleo central em seus discursos. Isso é muito preocupante.
Alguém ouviu no discurso de Merkel ou Macron alguma alusão ao problema ambiental por trás da Covid-19? Você ouviu o presidente da Argentina, Alberto Fernández — que ganhou legitimidade nas últimas semanas graças à forte política preventiva e seu contato permanente e tomada de decisões com um comitê de especialistas —, falar sobre as causas socioambientais da pandemia?
As causas socioambientais da pandemia mostram que o inimigo não é o próprio vírus, mas o que o causou. Se existe um inimigo, é esse tipo de globalização predatória e a relação estabelecida entre capitalismo e natureza. Embora o tema circule pelas redes sociais e pela mídia, ele não entra na agenda política. Essa “cegueira epistêmica” — seguindo o termo de Horacio Machado Aráoz — tem como oposto a instalação de um discurso bélico sem precedentes.
A proliferação de metáforas bélicas e a memória da Segunda Guerra Mundial percorrem os discursos, de Macron e Merkel a Trump e Xi Jinping. Algo que se repete em Alberto Fernández, que constantemente fala sobre o “inimigo invisível”. Na realidade, esse número pode promover a coesão de uma sociedade contra o medo do contágio e da morte, “engrossando a resistência contra o inimigo comum”, mas não ajuda a entender a raiz do problema — pelo contrário, ajuda a escondê-la, além de naturalizar e promover o controle social sobre os setores considerados mais problemáticos (os pobres, os presos, os que desobedecem o controle social).
O discurso bélico, portanto, ataca o sintoma, não as causas, que têm a ver com o modelo de sociedade estabelecido pelo capitalismo neoliberal, através da expansão das fronteiras da exploração e, nesse sentido, pela intensificação dos circuitos de intercâmbio entre humanos e animais silvestres provenientes de ecossistemas devastados.
Por fim, a fórmula da guerra está mais associada ao medo do que à solidariedade, e levou a uma multiplicação da vigilância diante do descumprimento das medidas ditadas pelos governos para impedir o contágio. Não são poucas as histórias, na Argentina e em outros países, que mostram a associação entre o discurso bélico e a figura do ” cidadão policial”, erguido em vigília, pronto para denunciar seu vizinho ao menor deslize durante a quarentena.
É necessário abandonar o discurso bélico e assumir as causas ambientais da pandemia, juntamente com as sanitárias, e colocá-las na agenda pública, o que nos ajudaria a nos preparar positivamente para responder ao grande desafio da humanidade: a crise climática.
Possíveis horizontes: do paradigma do cuidado ao grande pacto ecossocial e econômico
O ano da grande pandemia nos coloca em uma encruzilhada civilizadora. Diante de novos dilemas políticos e éticos, permite repensar a crise econômica e climática sob um novo ângulo, tanto em termos de escala múltipla (global/nacional/local) quanto geopolítico (relação Norte/Sul sob um novo multilateralismo). Poderíamos formular o dilema da seguinte maneira.
Ou estamos caminhando para uma globalização neoliberal mais autoritária, mais um passo em direção ao triunfo do paradigma de segurança e vigilância digital instalado pelo modelo asiático, tão bem descrito pelo filósofo Byung-Chul Han, embora menos sofisticado no caso de nossa sociedades periféricas do Sul global, no quadro de um “capitalismo do caos”, como afirma o analista boliviano Pablo Solón.
Ou, sem cair em uma visão ingênua, a crise pode abrir o caminho para a possibilidade de construir uma globalização mais democrática, ligada ao paradigma do cuidado, por meio da implementação e reconhecimento da solidariedade e interdependência como vínculos sociais e internacionais; de políticas públicas orientadas para um “novo pacto ecossocial e econômico”, que aborda conjuntamente a justiça social e ambiental.
As crises, não se deve esquecer, também geram processos de “libertação cognitiva”, como diz a literatura sobre ação coletiva — e, em particular, Doug McAdam —, o que possibilita a transformação da consciência dos potenciais afetados; isto é, torna possível superar o fatalismo ou a inação e viabiliza e possibilita o que até recentemente era inimaginável. Isso significa entender que o dado ainda não foi lançado, que existem oportunidades de ação transformadora no meio do desastre.
O pior que poderia acontecer é ficarmos em casa convencidos de que as cartas estão marcadas e que isso leva à inação ou paralisia, pensando que não há sentido em tentar influenciar os processos sociais e políticos que estão se abrindo, bem como as agendas públicas que estão sendo instaladas. O pior que poderia acontecer é que, como uma saída da crise sistêmica produzida pela emergência da saúde, “o desastre dentro do desastre” se aprofunda, como afirma a feminista afro-americana Keeanga-Yamahtta Taylor, recuperando o conceito de “capitalismo do desastre” de Naomi Klein. Devemos começar com a ideia de que estamos em uma situação extraordinária, de crise sistêmica, e que o horizonte civilizatório não está fechado e ainda está em disputa.
Nesse sentido, certas portas devem ser fechadas (por exemplo, não podemos aceitar uma solução como a de 2008, que beneficia os setores mais concentrados e poluentes, nem podemos mais tolerar o neoextrativismo), e outras devem ser mais abertas e capacitadas (um Estado que valorize o paradigma do cuidado e da vida), tanto para pensar saídas da crise quanto para imaginar outros mundos possíveis.
Trata-se de propor soluções para a globalização, que questiona a destruição da natureza e dos ecossistemas, que questiona uma ideia de sociedade e laços sociais marcados pelo interesse individual, que questiona a mercantilização e a falsa noção de “autonomia”. Na minha opinião, as bases dessa nova linguagem devem ser tanto a instalação do paradigma do cuidado como uma estrutura sociocognitiva quanto a implementação de um grande pacto ecossocial e econômico, em escala nacional e global.
Antes de tudo, e mais do que nunca, trata-se de valorizar o paradigma do cuidado, como têm insistido o ecofeminismo e os feminismos populares na América Latina, bem como na economia feminista; um paradigma relacional que implica o reconhecimento e o respeito do outro, a consciência de que a sobrevivência é um problema que nos preocupa como humanidade e nos envolve como seres sociais. Essas contribuições podem nos ajudar a repensar os vínculos entre o humano e o não humano, a questionar a noção de “autonomia” que gerou nossa concepção moderna do mundo e da ciência, além de colocar no centro noções como interdependência, reciprocidade e complementaridade.
Isso significa afirmar que as tarefas diárias ligadas à manutenção da vida e à sua reprodução, historicamente negligenciadas no âmbito do capitalismo patriarcal, são tarefas centrais e, mais ainda, configuram a questão ecológica por excelência. Longe da ideia da falsa autonomia à qual o individualismo liberal conduz, devemos entender que somos seres interdependentes e abandonar as visões antropocêntricas e instrumentais para retornar à ideia de que somos parte de um todo, com outros, com a natureza. Na perspectiva de uma crise civilizatória, a interdependência é cada vez mais compreendida em termos de ecodependência, pois amplia a noção de cuidado e reciprocidade para com outros seres vivos, para com a natureza.
Nesse contexto de tragédia humanitária em escala global, não apenas os cuidados domésticos, mas também os sanitários, como base da sustentabilidade da vida, adquirem maior significado. Por um lado, isso implica uma reavaliação do trabalho do pessoal de saúde, mulheres e homens, médicos infectologistas, epidemiologistas, intensivistas e clínicos gerais, enfermeiros, enfim, todos os profissionais que enfrentam o dia a dia da pandemia, com as restrições e déficits de cada país, ao mesmo tempo que exige um abandono da lógica mercantilista e um redirecionamento dos investimentos estatais nas tarefas de cuidado e assistência.
Por outro lado, as vozes e a experiência dos profissionais de saúde serão cada vez mais necessárias para colocar na agenda pública a relação inextricável que existe entre saúde e meio ambiente, diante do colapso climático. Não apenas outras pandemias nos esperam, mas a multiplicação de doenças ligadas à poluição e ao agravamento da crise climática. Devemos pensar que a medicina, apesar da profunda mercantilização da saúde que testemunhamos nas últimas décadas, não perdeu sua dimensão social e sanitária, como podemos ver hoje, e que a partir de agora será diretamente envolvida nos grandes debates da sociedade e, portanto, nas grandes mudanças que nos aguardam e nas ações de controle das mudanças climáticas, junto aos setores ambiental, feminista, jovens e indígena.
Em segundo lugar, essa crise poderia muito bem ser a oportunidade de discutir soluções mais globais, em termos de políticas públicas. Alguns dias atrás, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) propôs um novo Plano Marshall que libera 2,5 trilhões de dólares em ajuda a países emergentes, envolvendo perdão de dívidas e um plano de emergência nos serviços de saúde, além de programas sociais. A necessidade de reconstruir a ordem econômica mundial que impulsione o perdão da dívida parece hoje possível. Também parece possível promover a renda básica de cidadania, um debate que foi reativado no calor de uma pandemia que destrói milhões de empregos, além de aprofundar a insegurança no trabalho, por meio de esquemas de trabalho remoto que prolongam a jornada.
No entanto, é necessário pensar sobre esse novo New Deal, não apenas do ponto de vista econômico e social, mas também ecológico. O pior seria legislar contra o meio ambiente para reativar a economia, acentuando a crise ambiental e climática e as desigualdades Norte/Sul. Existem várias vozes que destacam a necessidade de um novo acordo verde, como o lançado pela deputada democrata estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez em 2019. De Naomi Klein a Jeremy Rifkin, várias vozes abordaram a questão na perspectiva da articulação entre justiça social, justiça justiça ambiental e justiça racial.
No contexto da atual pandemia, houve alguns sinais. Por exemplo, Chris Stark, executivo-chefe do comitê britânico de mudanças climáticas, argumentou que a injeção de recursos que os governos devem infundir na economia para superar a crise de Covid-19 deve levar em conta os compromissos sobre o mudança climática, isto é, o desenho de políticas e estratégias que não são apenas econômicas, mas também um “estímulo verde”. Nos Estados Unidos, um grupo de economistas, acadêmicos e financiadores reunidos sob o lema do “estímulo verde” (green stimulus) enviou uma carta pedindo ao Congresso que pressionasse ainda mais para garantir que os trabalhadores estivessem protegidos e que as empresas pudessem funcionar maneira sustentável e evitar as catástrofes das mudanças climáticas, especialmente em uma economia marcada pelo coronavírus.
Com Enrique Viale, em nosso último livro Una brújula en tiempos de crisis climática (no prelo), apontamos nessa direção e, portanto, propomos pensar em termos de um grande pacto ecossocial e econômico. Sabemos que, em nossas latitudes, o debate sobre o Green New Deal é pouco compreendido, por várias razões, desde as urgências econômicas até a falta de uma relação histórica com o conceito, já que na América Latina nunca tivemos um New Deal, nem é um Plano Marshall. Na Argentina, o mais próximo disso foi o Plano Quinquenal do primeiro governo peronista, que tinha um objetivo nacionalista e redistributivo.
Portanto, não há imaginário de reconstrução vinculado a essas medidas — tomadas na Europa e nos Estados Unidos. O que existe é um imaginário de acordo social, no qual a demanda por reparação (justiça social) continua associada a uma ideia hegemônica de crescimento econômico, que hoje pode apelar para um ideal industrializante, mas sempre de mãos dadas com o modelo exportador extrativista, pela via eldoradista do agronegócio e, em menor grau, da mineração a céu aberto.
A presença desse imaginário extrativista/desenvolvimentista pouco ajuda a pensar nos caminhos de uma “transição justa” ou a empreender um debate nacional de maneira global do grande pacto ecossocial e econômico. Pelo contrário, distorce-o e torna-o decididamente perigoso, no contexto de uma crise climática.
Isso não significa que não haja narrativas emancipatórias disponíveis ou utopias concretas na América Latina. Não se deve esquecer que na região existem novas gramáticas políticas, emergidas no calor da resistência local e dos movimentos ecoterritoriais (rurais e urbanos, indígenas, camponeses e multiculturais, as recentes mobilizações dos mais jovens pela justiça climática), que propõem um novo relacionamento entre os seres humanos, bem como entre a sociedade e a natureza, entre humanos e não humanos.
As experiências prefigurativas e antissistêmicas se multiplicam no nível local, como a agroecologia, que teve uma grande expansão, por exemplo, mesmo em um país tão transgênico como a Argentina. Esses processos de reterritorialização são acompanhados por uma narrativa político-ambiental, associada ao Bem Viver, ao pós-desenvolvimento, ao pós-extrativismo, aos direitos da natureza, aos comuns, à ética do cuidado e à justa transição socioecológica, cujos pontos-chave são a defesa do comum e a recriação de outro vínculo com a natureza.
Trata-se de construir uma verdadeira agenda nacional e global, com uma série de políticas públicas orientadas a uma transição justa. Isso sem dúvida requer não apenas um aprofundamento no debate sobre essas questões, mas também a construção de um diálogo Norte/Sul com aqueles que pensam em um Green New Deal baseado em uma nova redefinição do multilateralismo em termos de solidariedade e igualdade.
Ninguém está dizendo que será fácil, mas também não é impossível. Precisamos nos reconciliar com a natureza, reconstruir com ela e conosco um vínculo de vida e não destruição. O debate e a instalação de uma agenda de transição justa podem se tornar uma bandeira para combater não apenas o pensamento liberal dominante, mas também a narrativa de colapso e distopia que prevalece em certos partidos de esquerda e a persistente cegueira epistêmica de tantos progressismos desenvolvimentistas.
A pandemia de coronavírus e a iminência do colapso abrem um processo de liberação cognitiva, através do qual não apenas a imaginação política pode ser ativada após a necessidade de sobrevivência e de cuidado com a vida, mas também pelo despertar à interseccionalidade entre lutas novas e antigas (sociais, étnicas, feministas e ecologistas). Isso pode nos levar às portas de um pensamento holístico, abrangente e transformador, até agora negado.
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