Política

A história do voto no Brasil e por que ele é importante

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Rogério Arantes – Da Colônia à Nova República, os pleitos eleitorais são inseparáveis da política brasileira.

Eleições acontecem por aqui desde quando éramos colônia de Portugal. Ou seja, a prática do voto antecede a formação do povo e da nação, e se deu por muito tempo antes que formássemos de fato uma democracia. Ainda sob o domínio português, alguns cargos administrativos locais eram preenchidos por meio de eleições. Proclamada a independência, passamos a praticá-las em maior escala, mesmo vivendo sob regime monárquico bastante centralizado e sem contar com meios de circulação que facilitassem o fluxo de pessoas e informações. Durante o Império, experimentamos mais de uma forma de eleger deputados, pois a cada crise parlamentar a elite política alterava as regras do jogo para reorganizar a competição e manufaturar a representação política.

Entre os estudiosos, predomina a visão de que não era o voto livre e autônomo que formava os governos parlamentares da época, mas antes o contrário, os eleitores é que eram chamados a homologar os resultados das disputas entre saquaremas e luzias (os partidos conservador e liberal, respectivamente), que se davam de cima para baixo. Seja como for, não se dispensou a eleição como mecanismo de constituição da autoridade política, provavelmente porque essa já era a melhor forma de pacificar conflitos que de outro modo poderiam levar à guerra e à desagregação territorial do país.

Juscelino Kubitschek assume a Presidência da República em cerimônia no Palácio do Catete, no dia 31 de janeiro de 1956 Foto: Arquivo / Agência O Globo

Juscelino Kubitschek assume a Presidência da República em cerimônia no Palácio do Catete, no dia 31 de janeiro de 1956

Desde que inauguramos a República em 1889, tivemos apenas um breve período sem eleições regulares, por conta do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945). Nem mesmo o regime militar pós-64 teve força para abrir mão totalmente das eleições, e muitos cargos nos três níveis da federação seguiram sendo preenchidos por meio do voto direto e popular, em pleitos regulados por calendário próprio e geridos por uma Justiça Eleitoral razoavelmente independente. É fato que os militares não permitiram uma competição política plena e manipularam as regras do jogo eleitoral durante todo o período. Extinguiram os partidos políticos existentes em 1964, mas promoveram a criação de outros dois – ARENA e MDB – que emprestaram alguma legitimidade política ao regime.

Na fase mais pesada da ditadura, quando faltou liberdade e sobrou repressão, as eleições foram duramente constrangidas, mas não desapareceram. E quando o MDB teve desempenho surpreendente nas eleições de 1974, o mecanismo eleitoral passou a funcionar como alavanca da transição política, e os militares se viram obrigados a realizar sucessivas manobras na legislação para retardar ao máximo seus efeitos a cada nova eleição. Regimes autoritários podem ser superados de diversas maneiras, por morte dos ditadores, por falência múltipla das instituições, por intervenções repentinas, inclusive as praticadas por forças estrangeiras.

Em muitos casos, recaídas autoritárias acontecem porque tais modos de transição são incapazes de levar os atores políticos relevantes a novo e consistente pacto democrático. Pois do Brasil se pode dizer que saiu da ditadura por meio das eleições. Do Brasil se pode dizer que as eleições trouxeram de volta a democracia porque, como mecanismo principal da transição, reintroduziram paulatinamente a competição política entre governo e oposições. Avanços comedidos foram sendo alcançados até que nenhum ator pôde mais reivindicar a posse exclusiva do poder político, e este passou a ser efetivamente submetido ao princípio da incerteza eleitoral e distribuído conforme as escolhas feitas pelo povo. Se hoje estamos às voltas com mais uma crise de regime e tememos pelo futuro de nossa democracia, é hora de relembrarmos a importância que as eleições sempre tiveram entre nós.

Se a prática do voto foi uma constante na história brasileira, a definição dos aptos a votar e as condições nas quais eleitores compareciam às urnas mudaram significativamente ao longo do tempo. Difícil não ver nessa história uma evolução positiva, desde os poucos cidadãos que podiam votar no Império e na Primeira República, em condições precárias e de pouca proteção à autonomia do voto, até chegarmos a um dos maiores eleitorados do mundo hoje, que vota em condições de liberdade e igualdade, por procedimentos seguros e bem resguardados de fraudes.

Nos primórdios, eleitores podiam ser alistados por terceiros e os partidos se empenhavam em forjar o eleitorado, para depois arrancar-lhe os votos. Além de providenciarem os títulos de eleitor, custeavam transporte e alimentação no dia da eleição, quando não aquartelavam grupos inteiros na véspera, para assegurar sua participação no pleito. Há relatos de que estes grupos eram escoltados até as urnas, sob proteção armada, a fim de impedir que adversários capturassem aquele bem precioso. E muitas eleições se transformavam em episódios de luta e violência, quando não havia um partido a hegemonizar o espaço político local.

Populares se reúnem em frente ao Palácio do Catete para acompanhar a posse de JK, em 1956 Foto: Arquivo / Agência O Globo

Populares se reúnem em frente ao Palácio do Catete para acompanhar a posse de JK, em 1956

Onde havia um partido dominante capaz de controlar a eleição, do alistamento à apuração dos votos, as fraudes eram praticadas com sucesso e sem muito alarido, dizem as pesquisas mais recentes. Se pelo cabresto não se obtinha o êxito esperado de lotar a urna com votos favoráveis, resultados eram manufaturados no bico da pena que preenchia as atas de apuração, com a inclusão de mortos e ausentes, se necessário. Mas onde havia facções rivais disputando o controle, tais práticas não tinham vida fácil e eram denunciadas de lado a lado, o que ajuda a entender porque foram sendo eliminadas ao longo do tempo. É interessante observar este ponto: mesmo num regime dominado por oligarquias pode haver competição política e as frequentes tentativas de fraudar as eleições, por parte de algumas, leva as demais a reivindicarem a adoção de procedimentos capazes de promover a certeza do voto e a não manipulação dos resultados. Assim, não é a democracia que cria competição política, mas a competição política que paulatinamente cria as condições para a democracia.

Ainda na Primeira República juízes de direito foram chamados a conduzir parte do processo eleitoral com vistas a reduzir as falcatruas e nos anos 1930 criamos uma Justiça Eleitoral específica para isso. Com o tempo, ela passou a monopolizar todas as fases, do alistamento à diplomação dos candidatos, diminuindo drasticamente a influência indevida dos partidos e eliminando as formas de intermediação fraudulenta entre o eleitor, o voto, os escolhidos e os finalmente empossados. Embora visões morais críticas, campanhas de combate à corrupção e apelos em nome da “verdade eleitoral” tenham sido importantes nesse processo, a crescente autonomia do eleitor e a progressiva segurança do voto são decorrências do acirramento da competição política e não exatamente da moralização ou da democratização das eleições.

O primeiro gráfico ilustra essa lenta evolução, tomando como exemplo as eleições presidenciais. Sete dos onze presidentes eleitos durante a Primeira República conseguiram a proeza de obter mais de 80% dos votos em um único turno, sendo que Rodrigues Alves alcançou a quase unanimidade ao garfar 99,1% dos votos em 1918. Em meio a um eleitorado que não ultrapassava um milhão de eleitores e representava apenas cerca de 3% da população, tais resultados expressavam o uso das eleições como forma de homologação dos candidatos previamente acertados pelo consórcio de elites estaduais, com São Paulo e Minas à frente da chamada política do “café com leite”. Mas houve eleições nas quais a elite se dividiu e a competição foi mais acirrada, como em 1910 (com Rui Barbosa liderando a campanha civilista contra o militar Hermes da Fonseca), em 1922 (com Nilo Peçanha liderando a oposição a partir de dissidências regionais), e em 1930, disputada por Getúlio Vargas e Júlio Prestes (que venceu, mas não levou), e que pôs fim à Primeira República.

Passado o interregno do Estado Novo (1937-1945), voltamos às eleições presidenciais diretas em 1945. Além do aumento do eleitorado, em termos absolutos e relativos, tivemos quatro pleitos extremamente competitivos. Em apenas um deles o candidato vitorioso recebeu acima de 50% dos votos (Dutra, em 1945). Uma vez que não havia dois turnos, os outros três foram eleitos com menos da metade dos votos válidos. Em 1955, JK (PSD/PTB) se elegeu com parcos 35% dos votos, apenas cinco pontos acima de seu adversário Juarez Távora (UDN). Quase não tomou posse. O gráfico mostra como a Constituição de 1988 corrigiu este problema, introduzindo a eleição em dois turnos, de modo a garantir que presidentes eleitos alcancem no mínimo 50% + 1 dos votos válidos.

Outro grave fator de instabilidade do período 1945-64 foi corrigido em 1988: a possibilidade de o eleitor votar separadamente para presidente e vice de chapas diferentes. Foi isto que levou ao planalto dois políticos de partidos rivais em 1960, Janio Quadros pela UDN e João Goulart pelo PTB, como presidente e vice, respectivamente. Mal comparando, é como se hoje o eleitor pudesse votar em Bolsonaro e Manuela D´Avila, ou Marina Silva e o General Mourão. A coabitação Janio-Jango terminou com a renúncia do primeiro em 1961 e a deposição do segundo em 1964.

Os militares suprimiram a eleição direta para presidente, mas mantiveram a ideia de mandato fixo e sem reeleição, o que impediu a perpetuação de um militar em particular no comando do governo (como ocorrera com Pinochet no Chile, por exemplo). Foi assim que as linhas “branda” e “dura” das forças armadas puderam se alternar na presidência, ao longo de 5 mandatos com presidentes diferentes. No lugar da votação pelo povo, candidatos eram levados à ratificação indireta pelo colégio eleitoral, formado basicamente pelo Congresso Nacional, onde o governo dispunha de maioria. Mas foi por essa via que voltamos a ter um político civil e de oposição na presidência, com a derrocada do regime e a eleição de Tancredo-Sarney em 1985.

Promulgada a constituição de 1988, retomamos a prática das eleições presidenciais diretas, coroando o ciclo da transição democrática. A essa altura, estávamos bem melhor, em termos de cidadania política, mas também de regras institucionais. Todas as antigas restrições ao direito de voto haviam sido removidas e alcançamos o sufrágio universal, rebaixando a idade mínima para 16 anos de idade. O novo Demos que elegeria o primeiro presidente em 1989 era composto por mais de 80 milhões de eleitores, ou mais de 50% da população, a maioria vivendo em cidades e com maior nível de escolaridade. De lá para cá, como mostra o gráfico 1, chegamos a 147,3 milhões de eleitores, nada menos do que 70,5% da população brasileira, aptos a votar em 2018.

Nesse período, a prática do voto se aperfeiçoou enormemente. A introdução da urna eletrônica, por exemplo, foi um marco divisório das eleições no Brasil. Estima-se que ela foi responsável por reduzir alguns milhões de votos em branco e nulos nas eleições para a Câmara dos Deputados, apenas por ter diminuído as dificuldades de compreensão e preenchimento das antigas cédulas de papel, minimizando assim as chances de erro por parte dos eleitores. Em 2018, 50% do eleitorado estará apto a comprovar sua presença na seção eleitoral por meio de impressões digitais e ainda poderá usar o e-Título, aplicativo para smartphone que substitui o título eleitoral de papel.

Muitos cientistas políticos se perguntam porque cidadãos participam de eleições se votar é algo matematicamente sem sentido. No Brasil de hoje, a probabilidade de se ganhar na Megasena (1/50 milhões) é praticamente três vezes maior do que a razão do voto de um eleitor numa eleição presidencial (1/147,3 milhões). A despeito disso, o comparecimento tem sido alto, com uma média de 82% nas eleições de 1989 a 2014, sem grandes desvios entre elas. Pode-se argumentar que a baixa abstenção se deve à obrigatoriedade do voto, mas sabemos que o custo do não comparecimento é relativamente baixo e aqueles que o praticam intencionalmente sabem disso.

Tudo indica que a razão matemática é superada por vários motivos que levam o eleitor a ultrapassar sua própria insignificância estatística: movidos por ideologias, por identidades, pela vontade de tomar parte, pelo desejo de não ver certos políticos eleitos, ou por temer que seu candidato preferido não vai alcançar os votos suficientes se ele se abstiver, tudo isso e provavelmente mais um pouco impulsionam os eleitores a participarem, e mais, a votarem validamente. Desde 2002, o percentual de votos em branco e nulos para presidente tem se mantido monotonamente na casa dos 9% no primeiro turno, caindo para 6% no segundo, quando a competição é ainda mais acirrada. Sobre as eleições de 2018, dada a campanha que pretendeu lavar o país a jato, se dizia que teríamos uma avalanche de brancos e nulos, mas de acordo com a última pesquisa Datafolha (14-9-18), os eleitores que pretendem anular ou deixar em branco somam apenas 13%, valor que deverá cair ao patamar histórico até o dia 7 de outubro, senão abaixo dele.

O fato é que o brasileiro gosta de votar, e procura aproveitar seu voto da melhor forma. Sobretudo quando está diante de eleições competitivas e de resultados incertos, como a que teremos em outubro próximo. Pois essa tem sido a marca das disputas eleitorais no Brasil, como mostra o gráfico 2. O nível de competição de uma eleição pode ser tomado pela diferença de votos que separa o candidato vitorioso dos demais. Quanto menor essa diferença, mais competitiva foi a eleição. Mas sob a regra de dois turnos, são três diferenças decisivas a serem observadas. As duas primeiras são intuitivas: 1) quantos votos o candidato vitorioso em primeiro turno recebeu acima dos 50% + 1 dos votos válidos e 2) quantos votos o candidato vitorioso recebeu a mais que seu adversário no segundo turno. Mas há também uma terceira diferença que indica quão competitiva foi uma eleição: aquela que impediu um candidato de vencer no primeiro turno, isto é, os votos que faltaram para alcançar 50% + 1, levando assim a disputa ao segundo turno. Considerando as eleições para governadores e presidentes de 2006, 2010 e 2014, 53% foram decididas no primeiro turno e 47% no segundo.

Conforme mostra o segundo gráfico, tais eleições foram marcadas por 120 diferenças decisivas. Dessas, apenas em 4 ocasiões a diferença ficou acima de 25%. Impressiona que 71% dos resultados tenham ficado abaixo de dez pontos percentuais. Na média geral, eleições no Brasil têm sido decididas com base numa pequena diferença de 7,43% dos votos. O fatídico segundo turno de 2014 separou os candidatos por apenas 3,28 pontos. Considerando toda a série, houve 24 resultados abaixo de dois pontos e 13 abaixo de 1 ponto percentual. Eleitores que participaram dessas eleições testemunharam um fenômeno raro em democracias de massas: seu voto individual teve importância matemática.

Eleições constituem o mecanismo central da democracia brasileira e são elas que animam a vida política do país desde os primórdios. Entramos e saímos de regimes políticos por meio delas. Da oligarquia à democracia, passando até por período autoritário, eleições foram o método escolhido para constituição e legitimação da autoridade política. Se no início representaram uma forma de competição elitista, com a ampliação e as transformações sociodemográficas do eleitorado, associadas ao aperfeiçoamento contínuo dos procedimentos eleitorais, temos hoje uma das maiores e mais bem-sucedidas democracias eleitorais do mundo.

Quando muitos temiam pela viabilidade das eleições de 2018, chegamos às vésperas do pleito com lideranças e partidos conhecidos, cobrindo um largo espectro da esquerda à direita e candidaturas para todos os gostos. Embora a violência esteja sombreando a campanha, o grande desafio é impedir que ela se torne novamente um instrumento da competição política e, sobretudo, que o resultado das urnas seja aceito por todos. Foi por questiona-lo em 2014 que abrimos a porta do inferno no qual nos metemos. Que dessa vez seja diferente e que as eleições de 2018 possam representar o primeiro passo rumo à saída desse estado de coisas.

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