Internacional

A hegemonia líquida

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Nicolás Trotta – A construção hegemônica do macrismo, embora adequada para estes tempos, foi fugaz e superficial, sustentada com alfinetes, com uma comunicação incapaz de ocultar suas falhas estruturais.

O macrismo edificou um ajuste assimétrico que afeta os setores populares e médios – a queda do consumo, a perda do valor do salário e o endividamento familiar confirmam essa realidade –, enfraquece a capacidade de arrecadação do Estado e acelera os prazos de uma crise terminal. Como o governo não mudará suas políticas, a sociedade terminará mudando de governo.

Com o veloz desgaste da direita, a oposição se vê diante do desafio de consolidar uma construção ampla e plural. Sua vitória é necessária, não só porque os que estão governando são piores. É preciso seduzir a sociedade com ideias que permitam romper as limitações do desenvolvimento o país experimentou no passado. Mas não devemos nos confundir: na sociedade líquida a hegemonia também o é. A hegemonia macrista é fugaz. Um grão de areia na história. Entretanto, se a oposição se equivoca em seu rumo pode dar à direita uma possibilidade de sobreviver em 2019. Se isso acontecer, o custo social seria imperdoável e a recuperação do país se transformará depois em uma tarefa titânica.

Em meio à reação social contra o aumento das tarifas de serviços básicos (água, luz e gás) e o descontrole financeiro e inflacionário, a hegemonia da nova direita que governa a Argentina parece ter data de vencimento. Supostamente, é “democrática e renovada”, mas comete deslizes com uma frequência cada vez maior. Sua hegemonia é líquida, o que está de acordo com uma “sociedade líquida”, como conceituou o sociólogo Zygmunt Bauman para descrever uma sociedade instável, precária e que muda suas prioridades constantemente. Bauman narrava os eixos de um tempo em que as coisas fugazes reinam e a contingência nos surpreende com frequentes mudanças repentinas.

O macrismo é uma expressão perfeita destes tempos de modernidade líquida: promove a flexibilização do trabalho, idolatra o caminho do individualismo e abraça tardiamente uma globalização que a asfixia o seu próprio país. Não escuta a sociedade. Antes, quando era oposição, o macrismo acusava o governo anterior por sua suposta incapacidade de reflexão diante das demandas sociais. Hoje, seu discurso é outro: “administrar os assuntos públicos é difícil”. Se consideramos também a visão empresarial daqueles que tomam as decisões, que parecem mais interessados em beneficiar os seus “antigos” sócios ou patrões, e a liberalização de um mercado imperfeito incentivando a maquinária financeira, o coquetel se transforma em explosivo. A coluna de passivos cresce mais e mais, dia após dia: endividamento, inflação, precarização do trabalho, perda da capacidade de compra dos salários e das aposentadorias, os programas sociais fragilizados. As incertezas sociais já se transformaram em um oceano.

Não há surpresa no fato de que as políticas neoliberais falharam. O único mistério é sobre quando chegará o limite para as pessoas. O governo tenta ganhar uma sobrevida apelando ao discurso de sempre: a “herança maldita” recebida do governo anterior, mas a verdade é que mantém de pé justamente porque recebeu um país muito diferente do que Menem, De la Rúa e a crise do corralito deixaram a Néstor Kirchner.

A construção hegemônica do macrismo, embora adequada para estes tempos, foi fugaz e superficial, sustentada com alfinetes, com uma comunicação incapaz de ocultar suas falhas estruturais. Como sentenciou o presidente estadunidense Abraham Lincoln: “você pode enganar todo mundo durante algum tempo, pode enganar alguns o tempo todo, mas não pode enganar todo mundo o tempo todo”. Sábia reflexão em tempos de pós-verdade.

O governo transformou suas políticas econômicas em dogma. Desse modo, comprometeu sua própria subsistência, porque a corrida cambiária o descolocou. Os lucros dolarizados e os capitais especulativos fugiram do país, e continuam fugindo. O governo tenta sair desse labirinto com uma viagem sem escalas ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e suplicando clemência ao protecionista Donald Trump. Um último tubo de oxigênio para um respirador artificial ao que já injetaram mais de 100 bilhões de dólares.

O caminho do endividamento se esgota. O ajuste se acelera. O tempo passa, jogando contra o governo que corre contra ele. A sociedade sofre. As políticas de ajuste, maquiadas por trás de um suposto gradualismo, trazem a semente de sua própria morte. As expectativas que Macri gerou quando ganhou as eleições, assumindo compromissos que abandonou no dia seguinte ao da posse, drenaram sua própria base eleitoral. O presidente é míope, usa erros do passado justificar os direitos que ele está cortando hoje. Pensa que aqueles que marcham e se manifestam são só setores politizados ou militantes kirchneristas, e não as pessoas que são afetadas pelas suas políticas – muitas das quais votaram por ele. Esse é um erro que custará caro.

A Argentina precisa de um programa de desenvolvimento estratégico multipartidário, cujo desenho deve contar com a participação dos coletivos sociais, trabalhadores, empresários e universidades. Encerrado em si mesmo, o governo se equivoca quando pretende socializar as medidas de ajuste e procura transformar os opositores em cúmplices de um fracasso previsível e inevitável. Não há exemplo no mundo no qual o neoliberalismo tenha trazido prosperidade. Não se vê porque a Argentina seria a exceção essa regra sem exceções.

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