Sociedade

Diário de um motoboy paulistano

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SUZANA PETROPOULEAS – Pesquisadora usa ferramentas da sociolinguística para investigar o cotidiano da categoria.

Com graduação em Ciências Sociais, Letras e Linguística e com mestrado nesta última, a pesquisadora Julia Frascarelli Lucca usou seu conhecimento diversificado para analisar a figura do motoboy paulistano sob a ótica dos estudos identitários e da teoria sociolinguística, em tese de doutorado defendida no final de agosto no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Na pesquisa “O Diário Moderno de um Motoboy de São Paulo: Construção Identitária e Recursos Estilísticos”, Julia busca entender as relações entre sociedade, linguagem, identidade e estilo. Mas por que o motoboy como objeto de estudo? “A categoria trabalho, acredito, é estruturante da sociedade”, explica. “Morei em São Paulo e notei que a questão do trânsito é muito constitutiva da cidade. Nesse contexto, o motoboy era um ator urbano recente, em crescimento e com condições totalmente precárias de trabalho. Por isso, desde 2009 o escolhi como objeto de pesquisa”.

A formalização do trabalho da categoria ocorreu também em 2009 – até então, era uma atividade totalmente informal e ainda é majoritariamente exercida por homens das classes mais populares e com baixo nível de escolaridade. A escolha pela cidade de São Paulo para a pesquisa, explica Julia, deu-se pelo protagonismo da cidade como centro financeiro do país, epicentro da circulação de pessoas, serviços e bens de consumo. “É ali o ápice do capitalismo e o motoboy é um produto dessa necessidade de rapidez, de urgência nas entregas, do imediato, do tudo tem que ser pra já. Para mim, não bastava estudar só a fala do motoboy em si – eu queria entende-lo enquanto sujeito permeado por todas essas questões do capitalismo, analisar o uso linguístico e seu contexto social”.

Foto: Scarpa

A pesquisadora Julia Frascarelli Lucca, autora da tese: “São poucos os estudos que trazem análise da fala das camadas mais populares, da classe trabalhadora”

 

Além disso, o motoboy paulistano como objeto de estudo permitiu à pesquisadora a análise linguística de uma figura bastante característica da capital paulista: “O motoboy de São Paulo tem toda uma associação com a fala do mano, essa fala popular urbana paulistana. A construção do estilo linguístico é associada a questões bem locais, com gírias muito características, entre as quais mano, tá ligado?, o meu”.

Observação invisível, análise que visibiliza

Durante o mestrado, Julia fez trabalho de campo visitando agências de motoboys e bolsões de moto em regiões como a Avenida Paulista. Fez entrevistas, ferramenta tradicional de estudo da sociolinguística, com profissionais da categoria. Embora reconheça a importância do trabalho de campo para o estudo, a pesquisadora afirma que em dado momento notou que a estratégia de conversar com os motoboys era insuficiente para seu objetivo de pensar a questão identitária por meio da fala destes. Julia é mulher, não é motociclista e é pesquisadora.

Ainda que muito receptivos, os motoboys sabem que ela não pertence ao seu grupo. Nas entrevistas, percebia que estavam o tempo todo monitorando seu discurso e buscando se distanciar do estereótipo negativo do motoboy “mano”, como aquele representado pelo personagem “Jackson Five”, criação mais famosa do comediante Marco Luque. “É claro que eles vão monitorar a fala deles – eles sabem todas as imagens negativas que existem contra eles e sabem que eu venho dessa sociedade que os julga”.

O monitoramento da fala pelos pesquisados tornou-se seu maior desafio, e, para vencê-lo, a pesquisadora buscou, em sua pesquisa de doutorado, meios de analisar a fala do grupo em contextos nos quais eles se sentissem mais à vontade para verbalizar. Com esse objetivo, adotou uma metodologia inovadora e ainda pouco utilizada na pesquisa sociolinguística: a análise de Vlogs do Youtube.

O canal Motoka Cachorro, com mais de 135 mil inscritos na plataforma de reprodução de vídeos, quase mil vídeos e 17 milhões de visualizações, foi o escolhido para a análise. A proposta do canal é fazer um reality show sobre o cotidiano do motoboy, com ênfase na atuação profissional de seu protagonista, um motoboy bastante representativo da categoria. No próprio canal, define-se como “o seu motoboy do youtube”. Seus vídeos, muitos gravados em cima da moto em alta velocidade cruzando São Paulo enquanto o vlogger fala com seus espectadores, permitiram que Julia analisasse a fala de um típico motoboy paulistano enquanto este dirige-se, principalmente, a seus pares – o público-alvo dos vídeos e comentários é quase totalmente formado por outros motoboys –  tendo, portanto, menos monitoramento  de sua fala do que nas tradicionais entrevistas sociolinguísticas.

Julia analisou nove vídeos postados na plataforma desde sua criação, em 2014, para entender como se dá a construção identitária do motoboy paulistano através da linguagem. “A identidade está sempre se construindo e ali é um espaço onde ele elabora essa identidade”, defende.

“Nos trabalhos de campo que fiz, na Avenida Paulista, os motoboys comentavam que gostavam muito desses canais sobre motos”, conta, ressaltando também que o trabalho de campo realizado no mestrado e no doutorado – indo até os motoboys e conversando com eles – foi fundamental para descobrir o canal do Youtube e utilizá-lo como instrumento para realizar uma espécie de etnografia digital do grupo, observando a fala de um representante típico do mesmo, manifestada de maneira espontânea.

Além disso, esse espaço virtual expande e reforça a sociabilidade dos motoboys, fortalece a troca entre eles, ajuda a se organizarem e até mesmo articularem demandas. Julia cita o fórum de comentários dos vídeos como um importante espaço de troca de opiniões e debates sobre projetos e leis de trânsito. “O motoboy não é como o professor ou operário, que na escola ou na fábrica pode se reunir e almoçar com seus colegas. Ele não tem um ponto de encontro da categoria, um espaço físico e concreto de sociabilidade como as outras profissões possuem”. A interação entre os usuários permite também um espaço de afirmação, construção e reconstrução contínua da identidade do grupo.

Na Antropologia, o uso de etnografia digital tem se tornado cada vez mais comum, mas na sociolinguística ainda é um recurso pouco utilizado. A formação plural da pesquisadora permitiu que combinasse os recursos destas diferentes áreas para aplicar com sucesso em sua pesquisa essa metodologia inovadora e construir um corpus de análise inédito. Mais do que permitir observar o objeto de estudo sem gerar interferência direta ou sequer ser notado, o uso da ferramenta, defende Julia, permite também expandir os objetos de pesquisa para além dos limites socioculturais do pesquisador. “Na sociolinguística é muito comum o objeto de estudo ser, por exemplo, a análise da fala de universitários e da classe média – são poucos os estudos que trazem análise da fala das camadas mais populares, da classe trabalhadora”.

A pesquisa de Julia e o canal do Motoka Cachorro permitem ver de perto e analisar a realidade dessa categoria profissional, objeto de estudo ainda pouco comum na universidade. Para a autora do estudo, essa foi a melhor parte de fazer a pesquisa. “Discute-se muito sobre a precarização do trabalho, na universidade, mas essas vozes ainda estão pouco presentes aqui. Para mim, a melhor parte foi poder trazer essa outra voz que, normalmente, é silenciada, marginalizada e tem pouco espaço na academia”, explica.

http://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/12/18/diario-de-um-motoboy-paulistano

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