BBC Brasil – Em 1809, o naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck publicou a obra “Philosophie Zoologique” (“Filosofia Zoológica”). Nela, propunha que os animais se adaptam rapidamente ao ambiente e, além disso, transmitem essas adaptações aos seus descendentes.
O exemplo clássico para explicar essa hipótese, que depois ficou conhecida como “lamarquismo”, é o das girafas: os animais teriam herdado o pescoço longo de seus antepassados, e essa característica foi se aprofundando para permitir alcançar os ramos mais altos das árvores, de cujas folhas elas se alimentam.
O exemplo das girafas ilustra a hipótese de Lamarck, mas foi apresentado décadas depois da morte do estudioso francês. O naturalista estava interessado em outras questões, como o formato dos pés de aves ou a anatomia das baleias.
Em 1859, a hipótese de Lamarck foi ofuscada quando Charles Darwin lançou o livro A Origem das Espécies. Na obra, o britânico descreve como os traços de cada espécie viva surgem ao longo de várias gerações, conforme mutações genéticas benéficas são selecionadas pelo ambiente.
A teoria da evolução é hoje considerada um fato científico.
Afinal, como surgiu o pescoço da girafa?
Para entender a diferença, veja como teria surgido o pescoço alongado das girafas, de acordo com as teorias de Lamarck e Darwin:
Lamarck:
1 – uma girafa qualquer precisa estender o pescoço para alcançar a comida no alto da árvore;
2 – por causa do uso constante, o pescoço dessa girafa cresce;
3 – os filhos daquela girafa herdam a característica do pescoço longo.
Darwin:
1 – entre várias mutações possíveis, acontece de uma girafa qualquer nascer com o pescoço mais longo;
2 – a girafa com esta mutação tem mais chances de alcançar a comida no alto das árvores e, por isso, mais chances de sobreviver e se reproduzir;
3 – com o tempo, os descendentes da girafa com a mutação do pescoço longo se tornam maioria, até a característica se incorporar na espécie como um todo.
Apesar disso, no começo do século 21 alguns cientistas de renome resgataram a ideia de que os genes têm “memória”: a vida dos seus avós, o ar que eles respiraram, a comida que comeram e as coisas que viram poderiam ter um efeito sobre você décadas depois, mesmo que você mesmo nunca tenha vivido essas experiências.
O que aconteceu?
Como todas as teorias científicas, a da evolução tal qual formulada por Darwin também é provisória e sujeita a mudanças e refinamentos.
Hoje, a evolução é considerada um paradigma científico: é a melhor teoria disponível para explicar a origem e a diferenciação dos seres vivos. Além disso, a teoria evolutiva é praticamente um consenso na comunidade científica, e é por isso que os biólogos costumam dizer que a evolução é um “fato”.
A Överkalix medieval era uma coleção de pequenas aldeias em um bosque verde
Mas um desdobramento muito interessante surgiu na pequena aldeia sueca de Överkalix, no Círculo Polar Ártico. As evidências guardadas ali deram início a uma pequena revolução no entendimento da hereditariedade.
Inacessível e remota, a aldeia ficou resguardada do resto do mundo durante a maior parte de sua história. E mais do que isso, o lugarejo possui registros únicos da vida de seus habitantes.
Diferentemente do que acontece em outros locais, os registros de Överkalix são bastante detalhados. Não mencionam apenas nascimentos e mortes, mas também informações sobre outros aspectos da vida da comunidade, como as colheitas que foram perdidas e as fomes que se seguiram – a vila era especialmente vulnerável a esse tipo acontecimento por causa de sua localização.
O mapa de Överkalix esta representado nesta placa – a linha amarela marca o Círculo Polar Ártico
Lars Olov Bygren, especialista em saúde e nutrição preventiva do Instituto Karolinska (na Suécia), é uma das pessoas que consegue rastrear a vida de seus ancestrais em Överkalix até o ano de 1475.
Quando ele examinou os arquivos da aldeia em busca de uma conexão entre desnutrição e problemas de saúde, encontrou algo curioso.
Parecia, segundo Bygren, que o efeito das crises de falta de alimentos se estendia por quase um século, afetando pessoas que nunca as tinham experimentado na própria pele.
Se isso era verdade, as gerações passadas e as futuras poderiam estar ligadas de formas que ninguém tinha imaginado. Em busca de alguma explicação para o fenômeno, Bygren enviou os achados de sua pesquisa ao geneticista Marcus Pembrey, da University College London (UCL, na sigla em inglês), no Reino Unido.
O trabalho desenvolvido pelos dois os convenceu de que a história enterrada no cemitério de Överkalix mostrava uma dimensão nova na transmissão de características entre as gerações.
Os arquivos da aldeia não registravam só nascimentos e mortes, mas também o estado das colheitas ao longo dos anos
Até então, a herança estava restrita aos genes, nas sequências de DNA formadas por moléculas de adenina, timina, citosina e timina.
Bygren e Pembrey suspeitaram de que poderia haver mais que isso. Os dois fizeram, então, parte de uma corrente de cientistas que se atreveu a desafiar o paradigma vigente. Para esse grupo, as vidas de nossos pais, avós e até bisavós poderiam afetar o nosso bem-estar.
Ortodoxia
O momento (importantíssimo) da concepção
A genética tradicional sempre acreditou que nossa herança estava “escrita em pedra” no momento da concepção.
Nesse instante, cada um de nós recebe um conjunto de cromossomos do pai e da mãe. Nos cromossomos estão os genes, sequências codificadas de DNA, que é a unidade básica da herança genética.
Presumia-se que depois da concepção (isto é, do encontro entre o espermatozoide e o óvulo), nossos genes ficavam guardados “a sete chaves” dentro de cada célula do corpo, protegidos e imutáveis, independente do nosso estilo de vida e das nossas experiências.
Assim, o que acontecia durante a sua vida afetava o seu corpo, mas não a sua informação genética. Pais e avós passariam genes, e não experiências.
Na década de 1980, Pembrey era diretor do Departamento de Genética Clínica do hospital infantil Great Ormond Street, em Londres. Na prática clínica, ele via com frequências casos que contrariavam essa ideia.
“Checávamos os cromossomos em busca de razões para os problemas genéticos, mas não encontrávamos. Geneticamente, os pacientes eram normais. Diante disso, tínhamos que usar a imaginação para descobrir qual poderia ser a causa. E eu queria encontrar, porque as famílias precisavam de ajuda”, disse ele à BBC em 2013.
A sequência de DNA – onde estão as ‘instruções’ para a construção das células
Duas doenças genéticas chamavam mais a atenção de Pembrey.
Uma era a síndrome de Angelman, caracterizada por movimentos bruscos, pouco desenvolvimento intelectual e da fala, e um sorriso constante, embora essa expressão não esteja relacionada com a “felicidade” do portador.
A outra é a “síndrome irmã” da Angelman, conhecida como síndrome de Prader-Willi (PWS, na sigla em inglês). Os portadores tinham músculos fracos na infância e deficiência intelectual leve, além de tendência à obesidade.
Descobriu-se que essas duas doenças eram causadas pela mesma alteração genética, no cromossomo 15.
O mais impressionante é o seguinte: se o cromossomo defeituoso viesse da mãe, a criança desenvolveria a síndrome de Angelman. Se viesse do pai, o filho teria Prader-Willi.
Isso significava que o cromossomo, de alguma maneira, “conhecia” sua origem. Mas essa hipótese não estava pronta para ser apresentada sem que tivesse suporte de provas.
A evidência de Överkalix
Vista aérea da hoje localidade de Överkalix, que tem menos de mil habitantes
A primeira coisa que Bygren e Pembrey descobriram nos arquivos do município sueco foi que a expectativa de vida dos netos era diretamente afetada pela dieta dos avós.
Mortes por diabetes na infância estavam frequentemente associadas com o fato do avô paterno ter vivido em uma época de escassez de alimentos.
Em um avanço posterior, os registros mostraram que a ocorrência desse efeito nas gerações posteriores estava relacionada com o momento na vida dos avós em que o alimento se tornou escasso.
O neto, por exemplo, tinha a saúde afetada negativamente se a fome ocorresse pouco antes da puberdade do avô. No caso da avó, havia efeitos se a fome tivesse ocorrido perto da época da concepção. Em ambos os casos, se tratavam de momentos cruciais para o desenvolvimento do esperma e do óvulo.
Epigenétic?
As observações indicavam que as circunstâncias do ambiente (neste caso, a ingestão de alimentos) estavam alterando o DNA de espermatozoides e óvulos. Trata-se de uma forte evidência de que a chamada herança epigenética ocorria em humanos.
A epigenética foi aceita pela comunidade científica
Você lembra que as investigações indicavam que o cromossoma, de alguma forma, “conhecia” sua origem?
Então. Realmente, durante a produção de espermatozoides e óvulos, há uma troca química que faz com que a mesma sequência de DNA em cada cromossomo com diferentes propriedade funcionais.
Esse fenômeno ficou conhecido como “impressão genômica”.
Certos eventos podem levar à ativação (ou não) de um gene particular, e esta é a ideia central da epigenética.
Lamarck está de volta?
O descobrimento da epigenética – isto é, de influências até então ocultas sobre o comportamento dos genes – tinha o potencial para afetar vários aspectos das nossas vidas.
Trata-se de uma ideia simples, mas polêmica: para muitos cientistas, a epigenética equivalia a uma heresia, por questionar a visão aceita sobre a sequência de DNA, uma das “pedras fundamentais” da biologia moderna.
A epigenética propõe que um sistema de “interruptores” ativam ou desativam os genes, e sugeriu que experiências pessoais, como a nutrição e o estresse, podiam determinar mudanças e causar efeitos hereditários nos humanos.
Genes e experiências, de geração em geração
E foi na população deste lugarejo remoto da Suécia que surgiu a primeira evidência radical a favor da ideia.
Com o tempo, mais evidências foram se acumulando, e eventualmente a epigenética se tornou majoritária na comunidade científica.
Uma busca no Google pelo termo “epigenética” retorna cerca de 530 mil resultados (“epigenetics”, em inglês, traz 5,5 milhões de retornos).
Entre eles estarão, por exemplo, artigos da Nature, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo. A publicação tem hoje uma seção dedicada ao tema, apesar de ser uma área relativamente nova.
Para a maioria dos biólogos e estudiosos da evolução, porém, o advento da epigenética não representa o retorno de Jean-Baptiste Lamarck.
Até porque a principal divergência entre Darwin e o naturalista francês era a questão da direção da evolução: Lamarck achava que o processo evolutivo tinha como finalidade a “perfeição” dos seres vivos. Esta ideia foi chamada de “disparate de Lamarck” por Darwin.
As descobertas possibilitadas pelos arquivos Överkalix ampliam – e não contradizem – o entendimento sobre a evolução.
Com efeitos amplos e potentes em muitos aspectos da biologia e um enorme potencial na medicina humana, a epigenética tem hoje um papel relevante nas pesquisas contra enfermidades que atormentam a humanidade, como o câncer.
http://www.bbc.com/portuguese/geral-42420424
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