Política

É o bem de uso comum do povo, estúpido!

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Lúcio Gregori – Quando da eleição de Clinton em 1992, James Car­ville, es­tra­te­gista da cam­panha, cu­nhou o dito “é a eco­nomia, es­tú­pido!”, para evi­den­ciar qual era ou de­veria ser a questão cen­tral na dis­puta elei­toral.

Pa­ra­fra­se­ando, ainda que de modo far­sesco, eu diria que “é o bem de uso comum do povo, es­tú­pido!”, para dizer qual a questão cen­tral que se es­conde por trás da fúria pri­va­ti­zante do pre­feito Dória em São Paulo.

Ex­plico. O Có­digo Civil de 2002 di­vide os bens pú­blicos, se­gundo a sua des­ti­nação, em três ca­te­go­rias: bens de uso comum do povo ou de Do­mínio Pú­blico, bens de uso es­pe­cial ou do Pa­trimônio Ad­mi­nis­tra­tivo In­dis­po­nível e bens do­mi­ni­cais ou do Pa­trimônio Dis­po­nível.

Os bens de uso comum do povo ou de Do­mínio Pú­blico são os bens que se des­tinam à uti­li­zação geral pela co­le­ti­vi­dade (como por exemplo, ruas e es­tradas, par­ques, jar­dins). Ou seja, como diz o pró­prio nome, o bem de uso comum do povo não é ob­jeto de pa­ga­mento di­reto para acessá-lo. Exemplo das ruas e ave­nidas pú­blicas, que nin­guém pre­cisa pagar nada para nelas tran­sitar. Seu uso está ga­ran­tido e os im­postos pagos pelo con­tri­buinte são a fonte de re­cursos para exe­cutá-las, operá-las, con­servá-las, ainda que no ato de sua fruição se­quer seja exi­gida a com­pro­vação de se estar em dia com tais im­postos.

Visto por outro ân­gulo, ao se co­brar algo para usar um bem de uso comum do povo, ele pas­sará a ser uma mer­ca­doria, com um preço a pagar para acessá-lo ou usu­fruí-lo e, por­tanto, com di­fe­rente acesso em função da renda do seu, agora, con­su­midor.

Um exemplo que a nosso ver é muito comum do equí­voco sobre o que é um bem comum de uso do povo, é a in­sis­tência com que muitos “es­pe­ci­a­listas” falam do pe­dágio ur­bano como forma de res­tringir o uso do au­to­móvel nas ci­dades que estão con­ges­ti­o­nadas, ou de fazer, através dele, com que usuá­rios de au­to­mó­veis ajudem a fi­nan­ciar os trans­portes co­le­tivos, por exemplo.

Ao se co­brar o pe­dágio, no en­tanto, a rua deixa de ser de uso comum e passa a ser uma mer­ca­doria para cujo acesso se paga. Assim, quem puder pagar mais vezes po­derá também mais usá-las. E vice-versa para quem tiver menos re­cursos.

A dis­cussão da pri­va­ti­zação de es­paços pú­blicos de bem de uso comum da po­pu­lação traz à tona esses con­ceitos, já que por conta de uma falta de re­cursos da pre­fei­tura ou do Es­tado em geral, ganha corpo a ideia das pri­va­ti­za­ções em geral.

“É a mer­can­ti­li­zação de tudo, es­tú­pido!”, a pa­lavra de ordem trans­for­mada do dito de James Car­ville ci­tado an­te­ri­or­mente.

Mas se o pre­feito se au­to­de­no­mina “gestor” ficam aqui al­gumas ques­tões. Se você é gestor de uma em­presa que tem múl­ti­plas pro­pri­e­dades que podem gerar re­cursos, tra­tará de fazê-las render. Mais ainda se essas pro­pri­e­dades são o re­sul­tado de inú­meros in­ves­ti­mentos feitos pela em­presa.

Assim a pre­fei­tura faz um parque como o do Ibi­ra­puera, e com isso produz uma enorme va­lo­ri­zação do seu en­torno. Quem se be­ne­ficia dessa va­lo­ri­zação? A pre­fei­tura? Não! Os pro­pri­e­tá­rios de ter­renos e edi­fí­cios ao seu redor, que po­derão até mesmo “vender” a vista para o parque. Isso serve para inú­meros em­pre­en­di­mentos mu­ni­ci­pais.

Até tempos atrás, se cri­avam em­presas mu­ni­ci­pais para trazer de volta tais in­ves­ti­mentos como também para am­pliar os ser­viços de ha­bi­tação, lazer, cul­tu­rais e ou­tros ofer­tados à po­pu­lação. Caso da EMURB em sua origem (ver o Centro Cul­tural Ver­gueiro, o Ter­minal Ja­ba­quara, por exemplo) e da São Paulo Tu­rismo. Ou criava-se a con­tri­buição de me­lhoria e a ou­torga one­rosa.

Afinal, a pre­fei­tura e o Es­tado em geral são fun­da­men­tais para fazer da ci­dade de São Paulo um enorme centro de atração e de ne­gó­cios, por suas ave­nidas, vi­a­dutos, tapa-bu­racos e si­na­li­zação se­ma­fó­rica (alô, alô pre­feito Dória as coisas vão mal por aí), Metrô etc. etc.

No en­tanto, leio a no­tícia: “Dória vai pri­va­tizar ter­mi­nais de ônibus que custam 200 mi­lhões para a pre­fei­tura e os em­pre­sá­rios vão poder ga­nhar di­nheiro alu­gando es­paços para co­mércio, ser­viços”.

Ué, fica a per­gunta óbvia: que gestor é esse? Crie a Ter­mi­nais Mu­ni­ci­pais, em­presa da pre­fei­tura que fará o mesmo e terá os lu­cros re­ver­tidos em mais ati­vi­dades e obras pú­blicas. Até porque quem trans­formou um de­ter­mi­nado trecho da ci­dade em ter­minal de ônibus, atraindo para lá mi­lhares de pes­soas for­ço­sa­mente, foi… A pre­fei­tura! Ou seja, ela “cria o ponto” e gasta 200 mi­lhões sem au­ferir ne­nhuma van­tagem? Que má gestão de mau gestor, não é?

E a pri­va­ti­zação do bi­lhete único? Qual seu atra­tivo?

1) o ganho fi­nan­ceiro pela di­fe­rença de tempo entre pa­ga­mento e uso do cré­dito? Mas isso a SP­trans pode fazer igual­mente. Não tem como co­brar a mais por isso na pri­va­ti­zação;

2) o ren­di­mento da ope­ração do sis­tema, como emissão de cartão etc.? Muito pouco e de certo modo esse ser­viço já é ter­cei­ri­zado;

3) os dados dos usuá­rios? Ah, isso sim pode ser bas­tante ren­tável. De novo a per­gunta: a pre­fei­tura e SP­trans obrigam os usuá­rios a for­necer dados e in­for­ma­ções para obter o bi­lhete único e os “pri­va­tiza”? Por que, no­va­mente, ela mesma não tira os ren­di­mentos dessa obri­ga­to­ri­e­dade que cria? Quer dizer, pa­rece a SP­trans fa­zendo para o setor pri­vado aquilo que ele não pode fazer.

O gestor (ou no caso, um po­lí­tico es­per­ta­lhão?) con­gela as ta­rifas de trans­portes dos ônibus mu­ni­ci­pais, cer­ta­mente porque sabe do des­gaste que qual­quer re­a­juste ta­ri­fário pro­voca no go­verno mu­ni­cipal. E logo nos pri­meiros dias de­pois da posse, bus­cando evitar as ma­ni­fes­ta­ções dos jo­vens e mo­vi­mentos so­ciais, pois os re­a­justes ocorrem ha­bi­tu­al­mente no início do ano apro­vei­tando as fé­rias es­co­lares etc.

O gestor fez isso a partir de uma po­lí­tica ro­busta de re­ceitas para o trans­porte pú­blico? Não!

Então tome sub­sídio cru­zado, coisa mais ul­tra­pas­sada em ma­téria de “gestão” de trans­portes pú­blicos, através de co­brança de trans­bordo em certos ter­mi­nais, li­mites no uso do passe livre es­tu­dantil (como se es­tudar fosse, ex­clu­si­va­mente, ir e voltar da es­cola), can­ce­la­mento ou one­ração de al­gumas mo­da­li­dades de bi­lhetes e uma es­pécie do que per­mito chamar de “per­se­guição aos ve­lhi­nhos”. No caso, por conta de querer co­brar de ve­lhinho não apo­sen­tado (sabe, aquele cara que ganha uma for­tuna e anda de ônibus ao invés do carrão com mo­to­rista, são mi­lhões, não são? Vai so­brar pro ve­lhinho do sa­lário mí­nimo).

Tudo isso va­lerá para tantas ou­tras pro­postas de pri­va­ti­zação, o que me leva a crer que se trata mais de ide­o­logia pura, por meio da qual se be­ne­ficia o setor pri­vado com os in­ves­ti­mentos feitos com o di­nheiro de todos.

Uma es­pécie de “te­o­logia da pri­va­ti­zação”, uma de­for­mação hor­ri­pi­lante da “te­o­logia da li­ber­tação”.

Fa­zendo troça, logo mais se pri­va­tiza a ca­deira de pre­feito, go­ver­nador etc. Deve render um di­nheirão!

O chato de ser “um ve­lhinho” é que a gente já viu o varre-varre vas­sou­rinha de Jânio Qua­dros, o ca­çador de ma­rajás Collor e sabe no que essas coisas vão dar.

Sinal dos te­me­rosos tempos que vi­vemos?

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12715-e-o-bem-de-uso-comum-do-povo-estupido

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