Saúde

“Temeridade” para o SUS, para a seguridade social e para os direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal

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Francisco R. Funcia – O governo interino do Presidente Temer está propondo mudanças constitucionais no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2017: é o que se depreende da leitura de algumas partes do substitutivo encaminhado à Câmara dos Deputados, alterando a redação originalmente proposta pelo governo da Presidente eleita Dilma Rousseff.

Vejamos porque:

  • Para que serve uma Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)?

Resumidamente, define anualmente “as prioridades a partir da programação estabelecida no PPA” (Plano Plurianual cuja vigência é de quatro anos), estabelecendo assim as diretrizes para a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA) que “detalha as despesas anuais oriundas dessas prioridades e as receitas que financiarão a implantação do que foi programado”. Seus atributos são disciplinados pela Constituição Federal de 1988, que a instituiu, e “complementados pela Lei Complementar nº 101/2000” (mais detalhes em Vignoli, F.H. e Funcia F.R.. Planejamento e Orçamento Público. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. Página 27 e 32).

  • Uma LDO pode alterar matéria prevista na Constituição Federal por se tratar de lei específica de natureza orçamentária?

Não, não pode. O PPA, a LDO e a LOA são leis de natureza orçamentária que devem evidenciar o processo de planejamento e da execução orçamentária e financeira da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de acordo com os dispositivos da Constituição Federal, bem como de outras leis que estão associadas a esse processo, como por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00), a Lei nº 9394/96 que trata das diretrizes e bases da educação, da Lei 8080/90 e da Lei 8142/90 (conhecidas como Lei Orgânica da Saúde) e da Lei Complementar nº 141/2012.

  • Em que parte do substitutivo do Projeto de LDO 2017 da União encaminhado para a Câmara dos Deputados em julho evidencia um desrespeito à regra constitucional da aplicação mínima em saúde e educação, bem como pode reduzir os direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal?

Quando o governo anuncia explicitamente no ofício de 07 de julho de 2016 que encaminha esse substitutivo do PLDO 2017 (Disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/ldo/ldo2017/ldo-2017-tramitacao-no-congresso-nacional-ciclos/Proposta_alteracoes_mp.html e http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/ldo/ldo2017/proposta/of26-2016_MPDG.pdf Acesso em 28/07/2016, às 11h06) o que se transformou em artigo 3º, a saber, o limite (teto) para as despesas primárias em 2017 correspondente aos valores pagos em 2016 (incluindo os Restos a Pagar) corrigidos pela variação da taxa de inflação de 2016 medida pelo IPCA/IBGE.

Este dispositivo faz parte da Proposta de Emenda Constitucional nº 241/2016, encaminhada anteriormente ao PLDO 2017 para o Congresso Nacional, definida nesse ofício (na nova redação proposta para o Anexo IV.1 – Anexo de Metas Fiscais Anuais) como “Novo Regime Fiscal”, que inicia “o processo de ajuste estrutural das contas públicas”. Nesse artigo 3º, o parágrafo 3º informa alguns casos para os quais esta regra do “teto” de despesas não se aplica: citam vários dispositivos da Constituição Federal, mas o artigo 198 (que trata da aplicação mínima em saúde) e o caput do artigo 212 (que trata da aplicação mínima no ensino) não estão dentre os citados.

Por isto, estamos deduzindo que o objetivo deste substitutivo do PLDO 2017 é transformar, por meio de uma lei, em “teto” (limite máximo) aquilo que a Constituição Federal disciplina como “piso” (ou aplicação mínima) para as áreas de saúde e educação. Em outras palavras: a Constituição Federal não definiu “tetos” de despesas para a saúde e educação, mas sim “pisos”. Tanto esta questão é matéria constitucional, que o governo interino do Presidente Temer encaminhou previamente a PEC 241/2016 e depois, por meio de um ofício, fez a proposta de substitutivo com este conteúdo para o PLDO 2017. Trata-se, portanto, de uma inconstitucionalidade que não pode ser aprovada pelos parlamentares (que votarão os destaques do PLDO 2017 em 02 de agosto).

  • Mas, por que esta questão do “teto” de despesas primárias pode ser entendida como redução dos direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal? Não é preciso controlar as despesas públicas? As despesas com juros e amortização da dívida pública também terão um “teto” ou serão “congeladas”?

Primeiramente, sim, é preciso controlar as despesas públicas, mas a forma adotada está equivocada: o governo interino pretende “congelar” as despesas no valor de 2016 (corrigidas apenas pela inflação). Qual é o problema disso? Nenhum, supondo que a população não crescerá, que o processo de envelhecimento da população não continuará, que os custos crescentes das inovações técnicas e tecnológicas na área de saúde não ocorrerão, que as necessidades da população em termos de seguridade social e demais direitos sociais não serão mais atendidos. Porém, a realidade é outra muito diferente dessa!

Em segundo lugar, não, não haverá um “teto” para as despesas com juros e amortização da dívida pública; pelo contrário, os objetivos expressos tanto no PLDO 2017, como na PEC 241/2016, estão combinados: reduzir as despesas primárias (que refletem as ações e serviços prestados diretamente à população, decorrentes das diferentes políticas públicas), o que garantirá recursos para a retomada do superávit primário necessário para o pagamento dos juros e da amortização da dívida pública, de modo a reduzir o nível de endividamento.

Em outras palavras, a solução encontrada foi reduzir os recursos que garantiriam os direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal a todos os brasileiros para transferir a alguns poucos rentistas que recebem juros e amortização dos títulos da dívida pública emitidos pelo governo. Em outros termos, foi abandonado o objetivo de distribuição de renda e substituído por mecanismo explícito de concentração de renda como política de governo!

Mas, as evidências da redução dos direitos de cidadania podem ser encontradas também na nova redação do substitutivo do PLDO 2017 para o Anexo IV-1 Anexo de Metas Fiscais Anuais (nos parágrafos iniciais): entre os objetivos da Política Fiscal, foram excluídos: “distribuição de renda” e “fortalecimento dos programas sociais (disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-mistas/cmo/noticias/LDO_2017_-_Adendo_01; sendo que tais exclusões estão explícitas no seguinte arquivo: http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/ldo/LDO2017/Adendos-Erratas/01-Adendo1-Substitutivo.pdf  Acesso em 28/07/2016, às 12h10).

Essas exclusões de direitos sociais e o estabelecimento do “teto” (limite máximo) de despesas primárias são compatíveis com um trecho da mensagem do Poder Executivo que encaminha a PEC 241/2016 ao Congresso Nacional: trata as vinculações das despesas para saúde e educação como um dos principais problemas fiscais a serem corrigidos por meio do congelamento das despesas primárias nos valores de 2016 (corrigidos apenas pela variação do IPCA/IBGE de 2016) por um prazo de 20 anos; se essa PEC não for aprovada em 2017, o governo pretende iniciar esse “novo regime fiscal” em 2017 por meio da LDO!

  • Então, a PEC 241/2016 e o PLDO 2017 agravam o subfinanciamento do SUS?

Sem dúvida, agravam e muito o subfinanciamento do SUS. Por exemplo: neste ano de 2016, a regra da Emenda Constitucional (EC) nº 86/2015 para apurar a aplicação mínima entrou em vigor: considerando o escalonamento proposto, a aplicação mínima federal em saúde corresponde a 13,2% da receita corrente líquida (RCL) da União. Contudo, estimativas preliminares projetam que a aplicação efetiva em termos de valor empenhado corresponderá a 15,5% da RCL, ou seja, acima do mínimo.

O que ocorrerá em 2017 se o PLDO for aprovado com a regra do “teto” das despesas primárias e a PEC 241/2016 ainda não tiver sido aprovada? Pela regra do escalonamento da EC 86/2015, o “piso” (aplicação mínima em saúde) corresponderá a 13,7% da RCL e será o “teto”, considerando que esse dispositivo constitucional não foi excluído no PLDO 2017, diferentemente de outros dispositivos da CF que foram explicitamente não alcançados por essa regra do “teto”. Algumas estimativas preliminares apontam que esta situação representaria aproximadamente de R$ 13,0 bilhões em recursos que deixariam de ser alocados para o SUS em 2017 em comparação aos 15,5% da RCL da aplicação projetada para 2016.

Mas, se a PEC 241/2016 for aprovada, com a vigência do congelamento de despesas nos parâmetros de 2016, a redução de recursos para o SUS poderá ser ainda maior, e chegar a centenas de bilhões de reais.

Parece que o atual governo interino do Presidente Temer desconhece que os gastos federais com saúde já estão “congelados” em cerca de 1,65% do PIB (e isto faz muito tempo), bem como desconhece que os gastos públicos consolidados em saúde (soma da União, Estados, Distrito Federal e Municípios) corresponderam a cerca de R$ 3,00 (três reais) por pessoa por dia em 2015! É este valor exorbitante que precisa ser cortado para resolver o problema fiscal do Brasil?

O que dizer então somente do gasto federal em ações e serviços públicos de saúde – de aproximadamente R$ 1,35/habitante/dia – é este o valor responsável pelo “estouro” das contas públicas federais e que precisa ser reduzido? Antes de mais nada, as autoridades econômicas, e todos aqueles que entendem que os gastos em saúde são elevados, precisam ter bom senso antes de repetir mecanicamente que não faltam recursos para o SUS, mas falta somente gestão. Mais recursos ou mais gestão para o SUS? Eis a (falsa) questão – o SUS precisa de mais recursos até mesmo para aprimorar a gestão!

  • Quais seriam outros exemplos de prejuízos para o financiamento do SUS com a aprovação da PEC 241/2016?    

Um dos grandes prejuízos seria impedir a tramitação da PEC 01/2015, que já foi votada em primeiro turno na Câmara dos Deputados, fruto de um acordo entre os parlamentares de todos os partidos. Esta PEC aumenta os percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL) para a aplicação do governo federal no SUS, em comparação à regra da Emenda Constitucional (EC) nº 86/2015 atualmente em vigor.

Portanto, é muito importante manter a mobilização a favor da aprovação desta PEC 01/2015 por parte dos conselhos de saúde, dos gestores de saúde, das entidades e movimentos que defendem o SUS, bem como dos que estão preocupados em garantir os direitos de cidadania e a seguridade social nos termos da Constituição Federal.

Mas, é muito importante manter também a mobilização contrária:

  1. à aprovação da PEC 143/2015 (que aumenta a DRU – Desvinculação das Receitas da União – de 20% para 25% e cria a DRE – Desvinculação das Receitas dos Estados e Distrito Federal – e a DRM – Desvinculação das Receitas dos Municípios – também com alíquota de 25%): a DRE e a DRM reduzirão a base de cálculo da aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde, além da seguridade social.
  2. à aprovação da PEC 04/2015 (agora PEC 31/2016), que é similar a PEC 143/2015, e que já foi votada em segundo turno na Câmara dos Deputados, tramitando neste momento no Senado Federal: aumenta a Desvinculação da Receita da União (DRU) de 20% para 30% e cria a Desvinculação da Receita dos Estados e Distrito Federal (DRE) e a Desvinculação da Receita dos Municípios (DRM) com a alíquota de 30%. Enquanto as receitas base de cálculo da aplicação mínima federal, estadual e municipal em educação e saúde não serão atingidas por essas desvinculações, esta PEC não garantiu essa mesma proteção para o conjunto da seguridade social.

Por fim, neste momento, e de forma mais imediata, diante da quase certeza de que a votação ocorrerá logo no dia 02 de agosto de 2016 (na retomada dos trabalhos no Congresso Nacional), é urgente a mobilização contrária à aprovação da PEC 241/2016 e à aprovação do PLDO 2017, pelos motivos aqui apresentados e, no caso da PEC 241/2016, também já detalhados anteriormente (Domingueira 19/2016, de 03/07/2016, e Domingueira 20/2016, de 10/07/2016, disponíveis em www.idisa.org.br).

É muito importante essa mobilização por parte dos conselhos de saúde, dos gestores de saúde, das entidades e movimentos que defendem o SUS, bem como dos que estão preocupados em garantir os direitos de cidadania e a seguridade social nos termos da Constituição Federal.

Não haverá SUS se houver o desmonte da Seguridade Social e se houver redução de recursos para a garantia dos direitos sociais. Será um grave erro histórico e uma “temeridade” a adoção de uma estratégia setorial de defesa do SUS diante do conjunto de iniciativas para reduzir direitos constitucionais de cidadania que está em curso sob promoção do atual governo federal interino.

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