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Molenbeek: a cidade de todas as bombas do deus do dinheiro

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GREGORIO CARBONI MAESTRI – Na Bélgica sou filho da imigração. Os meus avós maternos vieram em 1946 para trabalhar com minério. E, no ano de 1990, pós-muro de Berlim e do neoliberalismo vitorioso, estudei em uma daquelas escolas da nova imigração, aquelas que os belgas chamam “escola lixeira”.

Naquela escola, L’Athénée Royal André Vesale, era quase o único não magrebino e, já então, pude observar gerações perdidas, cheias de raiva, sem esperança. Agora, em Bruxelas, moro na comunidade dos imigrantes por excelência, Molenbeek, na famosa rua Quatre Vents. A rua de Abdeslam, a poucas casas de onde estava escondido. Se novembro, depois dos atentados de Paris, foi muito complicado para nós de Molenbeek, a semana da captura de Abdeslam foi um inferno: tiroteios, explosões, jovens atirando pedras na polícia, tensão. Antes, durante, depois. Um bairro que já não é fácil, por décadas abandonado pela elite belga: a pobreza, a degradação, tristeza. Os “bobos” que não colocam os pés aqui. Os “bobos”, como são chamados aqui, são a pequena burguesia jovem e fresca, branca, que frequenta cafés e bares hipsters, tão tocada pelas atrocidades em Paris, mas pouco tocada pela segregação da qual são vítimas milhares de jovens, seus compatriotas, de origem magrebina.

Contradições étnico-sociais

Uma geração cuja ideologia mistura um genérico progressismo com um egocentrismo muito profundo, que vê a possibilidade de mudança apenas através do consumo de produtos orgânicos, uma esquerda caviar, que se insere em uma dinâmica capitalista, a partir de músicas indie, em que ser multicultural se limita a consumir cuscuz à noite com os amigos, nos restaurantes decorados com lâmpadas marroquinas e fotos de crianças africanas nas paredes, mas que evita qualquer militância ou crítica anticapitalista.

Esta pequena burguesia vê Molenbeek no melhor dos casos ao atravessar com seus barcos os canais que separam – a partir do final do século 19 – o centro do poder (Bruxelas), burguês, nobre, opulento, de bairros como “pequena Birmingham” ou “pequena Manchester”, ocupados primeiramente por uma classe trabalhadora oprimida e agora por uma imigração silenciosa.

Uma contradição amplamente vista a partir da arquitetura que ainda mostra edifícios por um lado luxuosos, decorados de forma eclética, e de outro as arquiteturas essenciais, simples, técnicas e as fábricas. As fábricas que fecharam pouco a pouco, atingindo um pico no ano de 1970, deixando um rastro de imigrantes “trazidos” pelo capitalismo belga, sobretudo do Marrocos, para rebaixar o preço do trabalho da vingadora classe operária belga (já composta em uma substancial parte por uma precedente imigração, especialmente italiana).

Muitas dessas fábricas ainda estão em Molenbeek, abandonadas, em ruínas, ocupadas ocasionalmente por jovens desocupados residentes de bairros bons, para raves e festas noturnas underground. Um canal, aquele que separa Bruxelas de Molenbeek, cada vez mais assediado por uma especulação imobiliária violenta e uma gentrificação que expulsa, dia após dia, os ocupantes mais pobres.

Não menos importante para entender este fenômeno é a inauguração, há alguns dias (16 de abril), de um novo museu, o Mima, com as chamadas artes menores e de rua – grafite, artistas não convencionais, parte do que foi até agora reprimido pela cultura oficial, recuperada e absorvida pelo grande mercado de arte global. Um centro cultural que, de modo cool, participa, involuntariamente ou talvez não, deste fenômeno de “limpeza étnica”, e sem que nada seja dito sobre a situação de Molenbeek.

Explorados e esquecidos

Pelas ruas de Molenbeek é possível ver sobretudo a segunda e a terceira geração dos imigrantes. Jovens que se sentem belgas, não porque queiram ser, mas porque ninguém os quer, ninguém fez com que se sintam parte do país, da comunidade. Gerações perdidas, para sempre, confinadas entre “escolas-lixeira”, ausência de esperança e desemprego em massa.

E uma esquerda e os sindicatos inexistentes sobre estas questões e territórios, nenhuma real coesão social, uma das muitas consequências de um mundo de trabalho destrutivo e humilhante pautado durante mais de 30 anos pela política da grande capital belga. Uma desocupação de massa controlada, por assim dizer, por almofadas de proteção social, almofadas que são cortadas sem misericórdia para todas as famílias de Molenbeek, cujos filhos são apenas suspeitos de participarem no Estado Islâmico.

Depois da captura de Abdeslam, a tensão não parou de crescer, mesclando-se progressivamente ao cotidiano e por mais de um dia não pudemos voltar para nossas casas. Depois, a felicidade histérica da população por uma captura simbólica do “procurado número 1” e, como era de se esperar, a resposta com o atentado ao aeroporto. Sobre bomba em Zaventem eu soube ao acordar. A minha alienação agora avançada, no entanto, me empurrou a andar para o trabalho, apesar do que aconteceu. Na verdade, com todo mundo.

Um pouco atrasado, peguei o metrô, com destino a Maelbeek, a parada que mais gosto em Bruxelas, porque é toda branca, com pinturas feitas com azulejos portugueses e Maelbeek escrita, sempre à mão. De lá, todos os dias, pego o ônibus para a praça Flagey, onde trabalho. De repente, param o metrô. Eles pararam o metrô e iniciaram uma evacuação, a poucas paradas de Maelbeek, agora em destroços. Falavam de explosões em várias estações (informações desmentidas depois). Havia pânico, mas em silêncio. Cada um por si, o deus do dinheiro por todos. Ninguém fala. Ninguém ajuda. Estamos todos nas ruas, perdidos.

Individualismo até no desespero

Os carros não param para dar passagem, sem saber o que acontece, assim como os táxis. Como um perfeito produto alienado da sociedade atual, continuo pensando que devo chegar à universidade. Posso encontrar um Uber por milagre. Pergunto se entre as pessoas tem alguém que vai para Flagey, para dividir o valor, mas mesmo só observando me deparo com vários “não, obrigado”. Cada um por si e o deus do dinheiro por todos. Gasto 30 euros e, junto à Universidade, sigo a vida normalmente. Está acontecendo uma conferência que estou organizando sobre a “desconstrução das prisões”. As notícias das mortes chegaram. Neste meio tempo chega um companheiro de Paris, Léopold Lambert, que, apesar das primeira notícias sobre os atentados, decide vir mesmo assim a Bruxelas para dar uma ajuda no workshop.

A universidade é evacuada. Os 50 estudantes, professores e conferencistas decidem continuar a trabalhar. Os temas são prisões, crimes, impunidade, punição, lugares de justiça e de injustiça. Vamos trabalhar em um bar; Léopold não sabe se poderá retornar a Paris, todos os trens foram suspensos. O dia é triste, mas intenso. Fazemos o que dá mais esperança: juntos, com os jovens envolvidos, queremos raciocinar sobre o futuro. No fim do dia a linha ferroviária para Paris foi reativada, para a grande satisfação dos eurocratas.

Acompanho Léopold a Gare du Midi (estação de trem), entre a polícia, os militares e as armas. Controles feitos somente nos jovens negros e arábicos, enquanto os brancos, sobretudo bem vestidos, passam sem problemas. Na realidade, é mais que uma questão étnica, trata-se de uma questão de classe. Assim que Leo partiu, me encontro sozinho, em uma cidade blindada, sem transporte público, sem coletividade, sem solidariedade, sem diálogo entre as pessoas. Cada um por si e o deus do dinheiro por todos. E tantos, tantos militares, mais do que aqueles em novembro, como em um país fascista sob assédio.

O workshop prosseguiu no dia seguinte, a cidade continuou a viver aquela normalização do anormal: controle para entrar no metrô (nas poucas estações reabertas, sem que qualquer informação tenha sido dada), suspensão de carros, ônibus com 30 minutos de atraso. Nenhuma solução para os trabalhadores que de novo têm que ir para o trabalho, apesar do caos. Sim, porque, o fio condutor é: “a normalidade, para vencer o terrorismo” (continuar a trabalhar porque não querem perder dinheiro, mas, enquanto isso, continuamos a infligir a propaganda do terror). Mas quem paga as consequências dessa normalização forçada? A pobre gente, aquela que mora em Molenbeek apenas, como eu, que se encontra sem meios, que deve caminhar uma hora ou mais para chegar em casa, aqueles sem carros, que não moram na boa vizinhança (vizinhos a tudo) e que não têm a bicicleta (sim, porque uma bicicleta, em um quarteirão pobre, depois de um mês você não tem mais).

Enquanto isso, eles, os mestres da cidade, eurocratas, burocratas, lobistas, políticos, grandes capitalistas, membros da OTAN, a pequena e média burguesia, todos, entupiram a cidade com seus grandes carros da Baviera. E agora Bruxelas também se encontra sob o cerco, obstruída: tantos e tantos carros por todos os lados, cada um na sua pequena mesquinharia, sozinho, cada um por si, o deus do dinheiro por todos. E nós caminhando, como coitados, esperamos durante horas os ônibus já escassos mesmo antes dos ataques. Nenhuma restrição pra eles. Restrições para nós. Meios gratuitos? Não. Meios especiais durante a noite? Não, toque de recolher. Somos nós, sempre nós, a permanecer sem nada. Nós, “das periferias do centro”, sempre nós, a pagar pelo inoperante metrô, a passar por controles nas estradas, a pagar pela guerra de Senhores, eles que estão bem em suas BMW. Para nós, as dificuldades e as mortes de suas guerras e de seus ganhos.

Banalização do mal

E, nesse meio tempo, uma profusão de banalidade, um tiroteio incessante de clichês, propagandas mais ou menos veladas. E, no que se diz respeito à mídia italiana, a situação é ainda mais dramática. É que naqueles dias vimos em primeira mão o abismo intransponível que foi criado entre a Itália e o resto da Europa em termos de informação. Nos jornais “La Republica” e “Corriere della Sera” vi notícias obtidas a partir do facebook, imagens românticas com jingle de Hollywood, puro sensacionalismo, artigos, banalização de problemas complexos, confusão, vazios informativos. Eu inclusive li um artigo que mostra o aeroporto de Bruxelas como símbolo do “secularismo ocidental”, um aeroporto onde os árabes e negros são produtos de limpeza. Não vi coisa mais dolorosa, o que vimos foi uma morte física da inteligência coletiva.

Naqueles dias seguintes, a universidade ficou novamente fechada. Mas não completamente. Não. Segundo o modelo dominante do capitalismo atual, trata-se de um fechamento para a manutenção da produtividade normal. Cada pessoa deve mostrar a carteira de estudante, passar por controles. Nenhuma pessoa não estudante entrava, a não ser mediante nova ordem. O controle era feito por membros da Cruz Vermelha. Tudo, como sempre nestes dias na Bélgica, é bastante normal. Para os estudantes, apáticos e alienados, completamente normal. Os professores, todos normais. Uma professora ilustre de um ilustre centro de pesquisa com ilustres títulos, me disse: “… mas é normal! caso contrário, alguém poderia entrar! Pense, Gregory, que às vezes vêm aqui pessoas desabrigadas para usar nossos banheiros, você percebe? É um escândalo!”. A partir de uma grande pesquisadora, eu teria esperado que o escândalo fosse a própria existência dos sem-teto.

Um dia tentei fazer uma foto da quantidade de caminhões militares que ocupavam a cidade. Um soldado pegou meu celular e apagou a fotografia, sem sequer pedir minha permissão. Este é o ar que soprou naqueles dias. Nas semanas seguintes o metrô continuou fechado, com algumas estações abertas, e assim mesmo só até as 22h. A presença dos militares e da polícia se intensificou, mas o país não reagiu, como aconteceu em Paris, com uma manifestação, se não aquela de domingo 17 de abril, “Contra o medo e o terror”, que contou com a participação de uma migalha de gente. Dois ministros se demitiram depois da revelação do seu mau funcionamento em termos de segurança. O ministro do Interior, em um governo federal liderado pela direita – da direita conservadora e da extrema direita – declarou que “muitos mulçumanos dançaram quando descobriram o ataque a Bruxelas”. Quem sabe, talvez algum muçulmano tenha dançado. Mas o que é certo, aqui, é a oscilação da democracia.

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