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E os médicos tornaram-se conservadores?

Tempo de leitura: 22 min

Maíra Mathias – Um exame sobre as reviravoltas rápidas ocorridas entre a categoria, desde 2013, revela: elitismo foi exacerbado tanto por medo de perder antigo status quanto por erros e inabilidades da era lulista

Era véspera de uma sexta-feira 13, data de azar segundo a sabedoria popular. A crise política que se abateu sobre o país chegava a um de seus desdobramentos mais dramáticos. Em uma sequência rápida de eventos, naquele 12 de maio os brasileiros acompanharam o fim da sessão do Senado que decidiu pelo afastamento temporário da presidente Dilma Rousseff, à subsequente cerimônia de despedida da petista e a outro pronunciamento, feito desta vez por Michel Temer. Poucas horas depois de assumir o exercício interino da Presidência da República, ele dava posse a uma equipe de 24 ministros – todos homens, todos brancos – ao mesmo tempo em que anunciava a extinção de pastas como Desenvolvimento Agrário e Cultura (para citar duas que, por pressão da opinião pública ou de aliados, viria a recriar depois). Enquanto a sociedade se descobria novamente rachada entre quem via o desenrolar de mais um golpe contra a democracia e quem via um simples procedimento jurídico, uma categoria profissional deixou clara sua posição. Naquele mesmo dia, duas entidades médicas se colocaram “à disposição” para contribuir com os “desafios” do governo Temer.

A carta de boas-vindas assinada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Associação Médica Brasileira (AMB) não foi o único gesto das entidades da classe médica durante a crise política. A Federação Nacional dos Médicos (Fenam), por exemplo, divulgou nas redes sociais a campanha “Saída da Dilma: fim da perseguição da categoria médica e sabotagem do SUS”. Já o presidente da AMB, Florentino Cardoso, vai além de argumentos corporativos ou do campo da saúde para explicar por que a entidade apoiou o afastamento. “O Brasil estava à deriva por um governo e um partido mergulhado em corrupção, levando o país para um regime autoritário, caminhando para o bolivarianismo”, sustenta. Para o presidente do CFM, Carlos Vital, com Temer no Planalto “existe afirmação de governabilidade, feita de modo coerente com o Estado Democrático de Direito”.

A mais contundente atuação das entidades, contudo, se deu em março. A divulgação da conversa telefônica em que Dilma informa Lula sobre o envio do termo de posse – documento que oficializava a nomeação do ex-presidente para a Casa Civil – e recomenda que ele o use “em caso de necessidade” mereceu nota do CFM que entendeu que “as circunstâncias governamentais e políticas” do episódio abalavam “os pilares do Estado Democrático de Direito”. Embora juristas e o próprio ministro relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, tenham atentado para a ilegalidade constitucional cometida pelo juiz federal Sérgio Moro por ter autorizado – e divulgado – o grampo de um presidente da República, o Conselho afirmou na nota o apoio “às investigações”, “conclamando” médicos e população a lutarem pelo “restabelecimento da ordem jurídica” determinada pela Constituição.

A AMB foi além: entrou com uma ação popular na Justiça Federal de Brasília pedindo a suspensão liminar do decreto que nomeava Lula ministro da Casa Civil. No dia 18 de março, horas depois da cerimônia que empossou o ex-presidente, a liminar foi concedida pelo juiz federal Itagiba Catta Preta sob a justificativa de que Lula no cargo oferecia risco para as investigações. No dia 16 o magistrado havia divulgado nas redes sociais uma foto sua numa manifestação com a bem-humorada legenda: “Ajude a derrubar a Dilma e volte a viajar para Miami e Orlando. Se ela cair, o dólar cai junto”. A suspensão definitiva foi deferida pelo ministro do STF Gilmar Mendes. A Associação Médica Brasileira comemorou o desfecho com hashtags – #AMBcontraLulanaCasaCivil era uma – e declarações: “Estamos muito satisfeitos com essa vitória, que não é somente da AMB, mas do povo brasileiro”.

O episódio do grampo de Lula e Dilma também levou a Fenam a manifestar sua posição diante do que chamou de “crise política, econômica e moral”. Além do apoio “total e irrestrito” ao juiz Sergio Moro, a entidade se declarou “assombrada e estarrecida com o tamanho do roubo promovido contra os cofres públicos”, mas garantiu que a “decência vencerá o crime”. O tom apaixonado é o mesmo de 2015, quando a Federação inaugurou em seu site uma seção dedicada às manifestações contra o governo afastado. “O que está fazendo o Brasil acordar? Primeiro a grandeza de nossa sociedade, que apesar de ser massacrada diariamente como machista, homofóbica, racista, elitista, e até estupradora, se descobre vítima de uma tentativa de amordaçamento, para que derrotada em sua autoestima, possa ser dócil ao poder”, escreveu Geraldo Ferreira, que atualmente é diretor do sindicato, mas na época ocupava a presidência da entidade. E concluía: “o país se redescobriu admirando valores tradicionais como verdade, honestidade, ética, família, religião, justiça, democracia, meritocracia e liberdade. Atingido esse estágio, o reino da fantasia e da mentira necessariamente tinha que ruir”.

Outros grampos vazados pelos investigadores não ganharam a atenção das entidades. Nenhuma nota foi emitida quando vieram a público as conversas gravadas por  Sergio Machado, ex-presidente da Transpetro, com caciques do PMDB como José  Sarney, Renan Calheiros – presidente do Senado – e o senador Romero Jucá. Na mais comprometedora dessas gravações, Jucá diz que o impeachment seria a “saída” para que um futuro governo Michel Temer construísse um “grande acordo” a fim de “estancar a sangria” que a Operação Lava Jato vinha provocando na classe política. A divulgação da conversa resultou na queda de Jucá, que viria a ocupar o Ministério do Planejamento no governo interino. Desde então, esses grampos são considerados pela imprensa internacional e setores da sociedade como indícios que esclarecem as motivações por trás do impeachment. Mas o CFM, por outro lado, não tem dúvida. Em resposta à Poli sobre a posição da entidade sobre o afastamento, Carlos Vital disse que “as decisões legislativas” foram “tomadas de forma democrática e dentro de escorreitos padrões da legalidade”.

Ascensão conservadora

Uma fonte ligada ao movimento médico sindical que pediu para não se identificar localiza no início dos anos 2000 a ascensão conservadora dentro do movimento médico. Segundo ela, os marcos desse processo teriam sido as gestões de Edson de Oliveira Andrade no CFM e de Eleuses Paiva [hoje deputado federal pelo PSD-SP] na AMB. “Até então havia uma discussão progressista sendo feita pelos conselhos regionais e sindicatos, com lideranças que colocavam em primeiro plano a defesa do SUS e do direito do paciente. Mas a dobradinha CFM-AMB foi transfigurando essa discussão”. A virada teria se dado com um discurso de matiz corporativo apoiado em dois pilares: “Primeiro um chamariz moral de que quem faz medicina tem a índole boa, ao mesmo tempo em que trouxe um tom agressivo de que os médicos estavam sendo atacados no seu exercício profissional, que o governo brasileiro e as próprias entidades médicas vinham sendo invadidas pela esquerda. Isso no governo FHC [Fernando Henrique Cardoso]”, conta. Ironicamente, uma das preocupações das entidades na época era a chegada de médicos cubanos contratados por estados como Tocantins, Roraima, Acre e Pernambuco para atender no interior. “O [José] Serra, como ministro da Saúde não atacou a iniciativa”, destaca.

Contra os “ataques”, o CFM lançou uma campanha que tinha uma mão com uma luva e cada dedo era uma reivindicação. Entre elas, a criação da Lei do Ato Médico, que garantiria a primazia de diagnóstico e prescrição do tratamento à categoria. “No final dos anos 1990 já se sabia que o número de médicos no interior era insuficiente frente à expansão do SUS através do então Programa de Saúde da Família. Além da vinda de médicos estrangeiros, já existia uma discussão de que outras categorias assumissem maior protagonismo no PSF em regiões pobres onde era difícil fixar o médico, tomando como base protocolos da própria OMS [Organização Mundial da Saúde] segundo os quais outros profissionais da saúde tinham a possibilidade de fazer pequenos diagnósticos, prescrever medicação. Isso era visto como um ataque frontal aos médicos”, diz a fonte. Já no Sul-Sudeste, continua ela, a demanda era incluir outros profissionais – psicólogo, fisioterapeuta – em um trabalho cada vez mais feito em equipe. “E aí surgiram as primeiras residências multiprofissionais. Isso também foi visto como um ataque porque a residência era uma especialização em serviço que só a categoria médica tinha. Era um dos grandes ‘patrimônios’ na lógica de corporação de ofício da medicina”.

A chegada do Partido dos Trabalhadores ao Planalto reforçou o discurso das entidades de que a medicina estava sob ataque da esquerda. “Você vai ter ministros ligados ao movimento da Reforma Sanitária, vai ter dentro do Ministério a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde [SGTES] com o pessoal do Rio Grande do Sul, que era quem defendia residência multiprofissional. No Ministério da Saúde não teve tentativa de conciliação em relação aos interesses da categoria médica”, situa a fonte, em referência à tese compartilhada por muitos analistas de que os governos do PT tiveram como base de sustentação uma política de conciliação de interesses.

2013: o embate

Isso porque ao mesmo tempo em que empresários e o setor financeiro eram contemplados com isenções fiscais, desonerações, juros altos, a parcela mais numerosa da população ganhou benefícios sociais, aumento real no salário mínimo, crédito fácil para consumir. Ainda segundo essa linha de análise, as manifestações de junho de 2013 teriam demonstrado um esgotamento desse ciclo político. Mobilizações primeiro contra o aumento nas tarifas do transporte público, os atos cresceram em número e tamanho, chamando atenção para a falta de investimentos nos serviços públicos enquanto bilhões eram direcionados para Copa e Olimpíadas.

Com a popularidade abalada – uma queda de 27 pontos em três semanas segundo o Datafolha –, Dilma Rousseff entrou em cadeia nacional de rádio e TV para dar uma resposta à “mensagem direta das ruas”. “Esta mensagem exige serviços públicos de mais qualidade. Ela quer escolas de qualidade; ela quer atendimento de saúde de qualidade; ela quer um transporte público melhor e a preço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para dar mais, as instituições e os governos devem mudar”, disse a presidente. A solução do governo federal a esse “mais” foram três promessas: a elaboração de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana, a destinação de 100% dos recursos do petróleo para a educação e, por último, “trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde”. Era o início do Programa Mais Médicos.

Tânia Rêgo / Agência Brasil

Hoje com três anos, o Mais Médicos, por diversos motivos, entrou em rota de colisão direta com parte da categoria, ao mesmo tempo em que acendeu a paranoia de setores da sociedade que viram no acordo com Cuba o prólogo de uma “revolução comunista” no Brasil. “O programa é politiqueiro e eleitoreiro, 2013 foi um pano de fundo para justificar um projeto que já existia há muito tempo. Nós já sabíamos que tinha pessoas do governo indo a Cuba, nós já sabíamos que havia médicos em Cuba tendo aulas de português para virem para o Brasil. Esse projeto já estava desenhado, foi só uma justificativa para acelerá-lo sem nenhuma transparência, sem respeito adequado aos direitos do cidadão em relação às leis brasileiras”, critica Florentino Cardoso, da AMB, em referência à mudança instituída pelo programa de que os médicos formados em universidades estrangeiras não precisam passar pela avaliação (conhecida como Revalida) para atuar no país.

“Quando o programa foi anunciado o foco das entidades era, nessa ordem, a questão dos médicos cubanos e a vinda de médicos estrangeiros sem revalidação do diploma. Depois elas passaram a se preocupar com a expansão das escolas de medicina por uma questão de reserva de mercado. Esse ponto para nós sempre foi o principal problema. Não porque a gente seja contra o aumento do número de médicos no país, mas pela forma como foi proposto. Das 11 mil vagas de expansão anunciadas, oito mil se dariam por meio de instituições privadas. Isso causou um boom da mercantilização da educação médica, que já vinha acontecendo, com reforço do perfil elitizado do médico. Para se manter no curso, o estudante precisa ter condições de desembolsar valores extremamente altos: seis, oito, até 14 mil reais. O FIES [Financiamento Estudantil] praticamente não existe. Vemos aumentos abusivos de mensalidade, cursos de má qualidade, desestruturação dos projetos pedagógicos e uma formação médica distante das necessidades do SUS”, elenca Danilo Amorim, presidente da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem) – única entidade oficial da categoria que se posicionou contra o impeachment. “Durante os governos Lula e Dilma não houve um comprometimento claro com os interesses da classe trabalhadora e tampouco efetivação do direito universal à saúde. Foi um período em que se acirrou o subfinanciamento e o sucateamento do SUS. Dito isso, não fazemos a leitura de que tanto faz Dilma ou Temer. O atual governo – na nossa avaliação ilegítimo – promove um ataque ainda maior aos direitos conquistados pelo povo brasileiro”.

Além do Mais Médicos, que alcançaria 84,3% de aprovação popular em novembro de 2013 segundo pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes, o governo Dilma mexeu em outro vespeiro. Em julho, a presidente vetou artigos da lei 12.842, conhecida como ato médico, dentre os quais o que dizia que o diagnóstico e a prescrição terapêutica são atos privativos desses profissionais.

Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), estuda perfil e distribuição dos médicos no país. Para ele, embora o antagonismo com os médicos brasileiros tenha sido útil ao governo por certo período, acabou por radicalizar o corporativismo e endossar lideranças conservadoras. “O posicionamento a favor do impeachment foi o final de um tensionamento que, se por um lado revelou esse conservadorismo e até essa posição radical corporativa, do outro deixou claro um entre tantos erros, expressão dessa dificuldade que o governo tinha de se aproximar das entidades da sociedade civil, até mesmo dos movimentos sociais. É grave que o governo não tenha compreendido a diversidade da categoria médica e a essencialidade desses profissionais para sustentar o projeto de SUS que nós queremos. Preocupa a demonização da categoria médica como um todo. Se os médicos não estiverem como aliados vai ser muito difícil”, argumenta. Com quase 300 mil médicos em diferentes vínculos, o equivalente a 63% da categoria, o SUS é o maior empregador desses profissionais no Brasil.

Novas no pedaço

Os médicos são a única categoria profissional que tem três braços representativos: o sindical, o associativo e os conselhos. Fenam, AMB e CFM formaram até pouco tempo uma espécie de trindade que, entre alianças e cisões, desempenhou sem concorrência o papel de representantes dos mais de 410 mil médicos brasileiros. De uma forma ou de outra, o maremoto provocado por 2013 viria a mudar isso também. Os desgastes não se limitaram à relação com o governo, mas também das entidades com suas bases. No braço sindical, um racha provocou a criação da Federação Médica Brasileira que hoje representa cerca de 200 mil médicos. Mas é do universo virtual que vêm as críticas mais pesadas. As redes sociais abriram uma janela de oportunidade para o surgimento de entidades pouco ortodoxas que surfam na onda de descontentamento da classe médica com seus representantes oficiais e com os governos do PT.

À primeira vista pouco distinguível da comunidade de médicos mais famosa da internet brasileira – o grupo do Facebook Dignidade Médica, que se notabilizou por pregar “holocausto” e “castração química” para os eleitores de Dilma Rousseff no Nordeste do país –, a Ordem dos Médicos do Brasil (OMB) surgiu em 2013. A entidade tenta colar sua imagem a Junho (no vídeo institucional que explica os motivos da sua criação aparecem imagens da manifestação que tomou o teto do Congresso Nacional), mas está distante da contestação ao status quo do movimento. Com 105 mil curtidas no Facebook, a OMB exalta a memória do coronel Carlos Alberto Ustra e detona a figura de Carlos Mariguella. Faz campanha diuturna pelo impeachment de Dilma e pela prisão de Lula. Em abril deste ano, a entidade projetou no prédio do STF uma mensagem de “SOS” para as Forças Armadas. Em maio foi recebida pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros.

Na ocasião, divulgou que estava levando para a reunião os dez problemas da saúde brasileira “já com as dez soluções”. Entre elas, o “estímulo às parcerias público-privadas”. O objetivo da OMB é “ser a voz política” de médicos e estudantes “com representação em todas as esferas de poder e junto à sociedade”. Porque, segundo um texto da Ordem, as entidades tradicionais “foram incompetentes” na articulação política: “Porque se tivessem competência, o Mais Médicos não existiria”. Embora queira se firmar no cenário nacional, a OMB não tem endereço nem telefone. Para contatar seu presidente, Dhiogo Seronni, a Poli ligou para seu local de trabalho, uma clínica particular em Anápolis (GO). Ao fim de semanas, ele não atendeu o pedido de entrevista da reportagem. A entidade é heterodoxa também nos seus processos internos. Foi uma empresa que traçou a estratégia de atuação da OMB. “Foi esclarecido pelo Raphael Ribas, da Wiki9, qual o posicionamento da OMB em comparação às outras entidades já existentes que representam a classe médica. Logo após, o Ricardo Saboya, da Wiki9, apresentou o Estatuto Social da OMB esclarecendo as suas principais regras e estrutura”, informa uma ata divulgada em maio de 2014.

No movimento estudantil, outro grupo também se organiza para disputar espaço com a tradicional Denem. Mas, ao contrário da OMB, a Associação dos Estudantes de Medicina do Brasil (Aemed) não é uma outsider. Sua articulação começa em 2013 com o estímulo político e financeiro da Associação Médica Brasileira. A Aemed já foi recebida por dois ministros da saúde: Marcelo Castro e Ricardo Barros. Segundo seu presidente, Vinicius de Souza, nessas ocasiões apresenta “propostas e alternativas para a saúde”, principalmente a revisão do Mais Médicos. Desde abril, contudo, divulga um novo projeto chamado Liberdade na Saúde. “O projeto quer discutir saúde e medicina no Brasil de uma maneira livre, sem nenhuma amarra, sem preconceitos. É falar um pouco mais sobre o modelo de saúde que a gente tem no Brasil, as falhas dele e como melhorar se inspirando no que se vê lá fora”, diz Vinicius, citando como exemplo o sistema de saúde dos Estados Unidos, considerado pelo movimento sanitário um dos mais desiguais e caros do mundo.

A entidade tem afirmado que o SUS é inviável e insustentável economicamente. “O Sistema Único de Saúde se propõe a ofertar praticamente todas as necessidades de saúde para qualquer habitante do país ou até mesmo pessoas que vêm de fora. A nossa preocupação do insustentável financeiramente é que achamos que não vamos chegar ao equilíbrio entre demanda – porque a saúde é uma demanda infinita – e financiamento. Será mesmo que vai existir um ponto em que as demandas de saúde de um país gigantesco como o nosso vão atingir um financiamento adequado? Isso a gente fala para levantar a ideia de que não é apenas o financiamento o problema”, diz Vinicius. Segundo ele, no entanto, o objetivo não é colocar em xeque a universalidade do sistema. “A questão não é nem universalidade. Nós queremos colocar em discussão se nós conseguimos pensar em um modelo de financiamento que é capaz de levar a saúde de maneira adequada para todos os habitantes do país com os impostos que são pagos hoje”, avalia voltando para o tema do financiamento que, segundo ele mesmo, não era o foco principal.

Apesar de ser divulgado como um “documento” e de a assessoria de imprensa da entidade ter adiantado que se tratava de um modelo de projeto de lei a ser apresentado em casas legislativas do país, Vinícius esclareceu que o Liberdade na Saúde por enquanto é um evento que deve acontecer no final de setembro em Porto Alegre. A partir daí, a Aemed pretende disparar um “trabalho de base” em todo o país. Entre os palestrantes está o deputado estadual Marcel Van Hattem (PP-RS), celebrado pelos estudantes em um vídeo gravado no gabinete do parlamentar como “uma grande referência do liberalismo nacional”. “O momento é de crescimento exponencial desses ideais liberais e a sociedade clama por mais liberdade, por menos presença do Estado. E nós vamos envolver os estudantes de medicina, que é uma área tão propensa a isso, neste processo de crescimento do liberalismo”, disse Fernando Machado, diretor nacional da Aemed, no vídeo.

Vinicius, que estava presente na ocasião, recusa a caracterização. “Não temos necessidade de cair nessa definição: ‘somos uma entidade liberal’, ‘somos uma entidade de esquerda’. Nós somos uma entidade que preza por liberdade no sentido de você poder pensar qualquer coisa dentro dela”. Mas embora a Aemed afirme em vários textos que busca uma medicina “imune às posições ideológicas ou partidárias” e Vinicius afirme que a entidade é “com certeza” apartidária, ela fez campanha para Aécio Neves nas eleições presidenciais passadas. Ele explica: a entidade é “apartidária” e “suprapartidária” ao mesmo tempo. “Ter um posicionamento suprapartidário não é a mesma coisa que não ter posicionamento. O senador Aécio Neves, na época, foi o que se mostrou mais aberto para um debate e tinha as propostas no sentido de reavaliar a lei do Mais Médicos”, diz. Ao ser perguntado se a entidade havia apoiado o impeachment, Vinicius devolveu a pergunta: “Teve um posicionamento sobre o impeachment em alguma nota?”. Lembrado pela reportagem que sim, na nota “A Medicina está de alma lavada”, ele complementou: “Nós acreditamos que o impeachment era válido pelo crime das pedaladas fiscais”.

Em sua página no Facebook, a Aemed divulga posições. Apóia o projeto Escola Sem Partido e a CPI da União Nacional dos Estudantes (UNE). “Vários assuntos têm entrado em pauta, nós estamos sempre tentando emitir uma nota ou outra para mostrar que estamos preocupados com a discussão”, explica. Contudo, propostas concretas do Ministério da Saúde que ganharam visibilidade nacional, como a criação de um plano de saúde popular, seguem sem posição definida. Vinicius justifica: “Apesar de já termos discutido isso entre nós, acabamos nunca chegando a um posicionamento. Quem sabe em outra oportunidade, se levantar de novo esse debate. Nós queríamos abordar [isso] nessa discussão [do] Liberdade na Saúde [mesmo] antes de o ministro falar porque é um modelo que alguns países usam, os tais vouchers. Como eu digo, para fazer um debate sobre sistema de saúde nós temos que ter conhecimento de que existe esse plano de saúde com esses vouchers que o ministro quer tentar aplicar no país”.

Ao longo da crise política também se constituíram movimentos de médicos contra o impeachment. O Grupo Médicos Pela Democracia, criado no dia 24 de março no Facebook e hoje com três mil membros, tem atuado publicamente. A uma semana da consumação do afastamento de Dilma Rousseff, enviou aos senadores uma carta aberta em que defendia que “impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”. Na contramão dos argumentos que apontam que a crise econômica é razão para rever os direitos constitucionais que o Sistema garante, o grupo destacava o feito de que “mesmo cronicamente subfinanciado” o SUS “é capaz de ofertar desde ações de atenção básica até cirurgias cardíacas e transplantes”, atendendo 80% dos brasileiros que dependem exclusivamente dele. “Retornar ao passado com o discurso de que as limitações orçamentárias exigem uma ‘mudança constitucional’ retirando direitos sociais duramente conquistados é apostar na barbárie. Somos de fato um país rico, mas ainda profundamente desigual. Será que aprofundar as desigualdades faz parte do Brasil que queremos?”, questionava a carta aos senadores.

http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=353154

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