Liana Melo – O professor de política na Universidade de Cambridge David Runciman, autor de Como a democracia chega ao fim (Todavia), afirma que a realização de eleições não é mais suficiente para garantir a democracia.
1. Por que o senhor afirma, no livro, que a democracia está sob risco?
A grande ameaça é que estamos presos a instituições ultrapassadas e não sabemos como alterá-las. Tratar a democracia como algo intocável é uma das causas de seu enfraquecimento. Usamos métodos antigos para encontrar novas opções. Isso significa que escolhemos políticos que usam os mesmos métodos, mas se apresentam como novos. Vimos isso ocorrer na Grã-Bretanha com o Brexit e nos Estados Unidos com Trump. Digo em meu livro que os eleitores estão procurando novas alternativas respaldando-se em fundamentos antigos, o que leva a uma enorme frustração e pode se tornar um círculo vicioso. Definitivamente não estou dizendo que devemos abandonar a democracia, mas, se quisermos salvá-la, é preciso parar de pensar que não há alternativa a esse modelo. Temos de ser mais criativos, mais imaginativos, e não acreditar simplesmente que a próxima eleição resolverá nossos problemas.
2. E quais são as opções à democracia?
É preciso ir além da ideia de que as opções devem ser ideológicas. O mais provável é que sejam pragmáticas, com diferentes combinações de instituições políticas — algumas democráticas, outras não. O capitalismo autoritário chinês é uma alternativa óbvia no momento, embora eu não ache que tenha muito apelo para democracias estabelecidas por enfrentar as próprias dificuldades. Também existe a possibilidade de explorar opções tecnológicas radicais à democracia, com mais participação direta e mais experimentação no nível local. O que não existe é uma alternativa única. Mesmo uma democracia local radical provavelmente terá de conviver com alguma governança tecnocrática ou de elite em nível nacional e internacional. O fim da democracia é quando abrimos mão da ideia de que ou é isso ou nada. Podemos salvar partes, mas teremos de estar dispostos a experimentar opções que ainda não tentamos e que não encaixam necessariamente no que chamamos de democracia. O que acabou foi o pacote democrático completo de eleições livres, partidos políticos profissionais, imprensa livre, sindicatos, programas de políticas nacionais e a escolha entre esquerda e direita. Esse foi um breve período.
Em Londres, protestam contra o Brexit, um tema que dividiu a população britânica
3. Se, mesmo mantidas as regras do jogo, o senhor acha que as democracias estão ameaçadas, como saber se estamos ou não avançando o sinal contra elas?
Sim, sou contra a ideia de que as democracias falharão como falharam no passado, com golpes, invasão militar ou convulsão social. Usamos excessivamente esse tipo de linguagem, o que é perigoso. É o que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, com os defensores e os opositores de Trump. Ambos os lados alegam que o país está passando por algum tipo de golpe. Essa visão equivocada ignora que eleições podem continuar sendo realizadas em democracias que funcionam como tal. Isso vem ocorrendo em muitos lugares, como Rússia, Turquia e Hungria. Há sinais de perigo quando as eleições se realizam e, ainda assim, as divisões se aprofundam. As democracias podem ficar presas a argumentos que não levam a lugar nenhum. Outro perigo é quando a democracia não funciona e buscam-se opções à política. No lugar de uma alternativa militar, por exemplo, mais pessoas acham que a tecnologia vai alcançar o que a política não pôde — visão generalizada no Vale do Silício. Especialistas em tecnologia frequentemente consideram a política democrática muito lenta para resolver problemas no século XXI. Quando os cidadãos começam a pensar assim, a democracia enfrenta graves problemas, maiores até do que os representados por generais e ditadores.
4. Como conciliar num governo democrático a necessidade de tomar decisões técnicas, muitas vezes contrárias à vontade popular, com o atendimento das expectativas da opinião pública?
As democracias sempre enfrentaram o desafio de conciliar a avaliação técnica com o desejo da opinião pública. Recentemente, dois fatores tornaram esse desafio mais difícil. Primeiro: os problemas se tornaram mais complexos, o que significa que a distância entre os especialistas e o público aumentou. Segundo: à medida que as pessoas ficaram frustradas com o modelo, a demanda por mais participação popular aumentou, o que deu lugar a uma maior pressão por referendos e por democracia direta. O problema é que, quando a distância entre especialistas e cidadãos se amplia, a democracia direta não resolve o problema. O Brexit é um bom exemplo. O referendo na Grã-Bretanha que perguntou a posição das pessoas em relação à União Europeia apenas expôs a dificuldade de conciliar o que os britânicos querem com o que é tecnicamente possível. O Brexit não resolveu nada. Só serviu para aprofundar o racha na política britânica e aumentar a intolerância no país. A situação vai piorar. Para que a democracia sobreviva, os britânicos talvez tenham de conviver com decisões técnicas que não necessariamente coincidam com a vontade popular. Não vai ser fácil.
5. Em seu livro, o senhor afirma que eleições livres e constantes não são mais suficientes para definir se um regime é ou não democrático. Qual é a saída para esse impasse?
A principal característica de uma democracia é sua capacidade de mudar de rumo ante a insatisfação popular ou quando as coisas estão dando errado. As eleições não são garantia disso. É preciso que haja políticos responsáveis, canais eficientes de comunicação e programas alternativos consistentes. Há muita gente tentando tudo isso. O problema é que, muitas vezes, cada um puxa para um lado, e não temos instituições capazes de conciliar esses esforços. A forma como nos comunicamos hoje em dia, por meio das mídias sociais, torna mais difícil para os políticos saberem como reagir. Há muito barulho. A democracia funciona quando podemos ouvir o sinal de mudança em meio ao ruído da raiva. No momento, não estou certo de que isso esteja ocorrendo.
6. Como conciliar aspectos econômicos gerais, que têm relação com a economia global, e necessidades locais que impõem sacrifícios aos cidadãos, tendo como pano de fundo a necessidade de mantermos o regime sobre bases democráticas?
Para sobreviver, a democracia precisa ser capaz de garantir o bem-estar econômico. Em meu livro, digo que existem dois aspectos em toda democracia bem-sucedida: resultado e respeito. A democracia precisa resolver os problemas das pessoas e dar-lhes voz. A dificuldade é que esses aspectos estão indo em direções opostas. Ações globais, ou pelo menos internacionais, são cada vez mais necessárias para resolver nossos problemas, e, ao mesmo tempo, as reivindicações estão se tornando mais locais ou pelo menos nacionais, frequentemente nacionalistas. Acho que esses dois lados da democracia simplesmente não encaixam mais. O maior perigo é dizer que qualquer coisa que fique aquém do ideal —resultados máximos mais o respeito máximo — é um fracasso. Líderes populistas se alimentam de expectativas irrealistas porque sempre são capazes de dizer que o sistema não está atingindo seus objetivos. Precisamos de mais realismo. A democracia não pode fazer tudo. Às vezes, temos de escolher entre respeito e resultado quando não é possível ter os dois.
7. Como o senhor avalia a turbulência política no Brasil, com a possibilidade de vitória do candidato Jair Bolsonaro?
No final de meu livro, afirmo que o Brasil pode ser um dos países onde a democracia corre o risco de um fracasso mais convencional: a quebra da confiança popular e a intervenção de forças não democráticas. Espero que isso não aconteça! Mas é importante dizer que a história da democracia não será a mesma em toda parte. A sobrevivência da democracia depende de as instituições democráticas estarem bem estabelecidas. Na Europa, há um risco maior de paralisia, enquanto no Brasil talvez haja um risco de colapso da democracia. Existem semelhanças entre as crises democráticas por todo o mundo. Mas situações distintas, como as de Estados Unidos, Hungria, Brasil, Japão, Índia e Turquia — diferentes em termos de economia, demografia, história, cultura etc. —, significam que essas crises apontam para direções diferentes. A crença de que a próxima eleição é a mais importante e que resolverá todas as dificuldades é uma ilusão. A democracia já está em apuros quando nutrimos a esperança de que a próxima eleição vai resolver nossos problemas.
8. Num artigo recentemente publicado no jornal britânico The Guardian, o senhor fez uma defesa da política como instância de decisão democrática. Como convencer os eleitores desse argumento num cenário de forte descrédito nas instituições políticas?
9. O professor nipo-americano Francis Fukuyama, de Stanford, escreveu sobre o “fim da história” e foi muito criticado. O senhor escreveu sobre o “fim da história do Estado moderno”. Não teme ser alvo das mesmas críticas?
O fim do Estado moderno não é o fim da história, porque o Estado moderno é um fenômeno histórico. É uma loucura acreditar que ele nunca poderá ser substituído. Precisamos pensar sobre o que vem depois. Passamos muito tempo insistindo que certas coisas são atemporais, mas nada na política dura para sempre. Pensar no fim da democracia é estar aberto a pensar imaginativamente. Afinal, o futuro é, por definição, mais aberto que o passado. Um erro que cometemos é perder tempo definindo a democracia com parâmetros do passado — especialmente os que se referem aos dias de glória do final do século XX. Então, não, eu não tenho medo do mesmo tipo de crítica. Estou tentando encorajar as pessoas a pensar sobre o futuro e acreditar que a maneira como vivemos hoje não é algo definitivo. Nós não somos especiais, e a democracia não é especial — é apenas o melhor que temos atualmente.
Ativistas fogem da polícia durante a parada LGBT realizada em Istambul em julho. O evento foi proibido pelo governo turco pelo quarto ano seguido
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