Jean-Claude Monod – Se o neoliberalismo nasceu de uma “crise do Estado de bem-estar social”, ele poderá muito bem morrer de uma “crise do Estado neoliberal”, já que este leva ao abandono dos trabalhadores pobres e da classe média.
Faz bastante tempo que diversas vozes vêm fazendo soar o alarme sobre o seguinte fato: o capitalismo em sua versão neoliberal produz um crescimento vertiginoso das desigualdades, atingindo hoje um ponto de ruptura social que, ao destruir a confiança nas instituições representativas, leva à sensação de espoliação democrática. Os gilets jaunes (ou coletes amarelos) expõem este duplo ponto de ruptura: muitas pessoas, talvez a maioria hoje, simplesmente não consegue viver neste sistema econômico. Sejam assalariados e funcionários públicos da classe média, sejam empregados e trabalhadores pobres, de famílias monoparentais ou “recompostas”, simplesmente muitos não ganham o suficiente para pagar o aluguel, os empréstimos, seus gastos diários e os de seus filhos, além dos impostos diretos e indiretos.
De acordo com uma análise clássica do sociólogo alemão Claus Offe (Herausforderungen der Demokratie: zur Integrações – und Leistungsfähigket politischer Institutionen, Campus Verlag, 2003), o estado tem (tinha) uma dupla função em um contexto de capitalismo avançado: se, por um lado, serve aos interesses dominantes ao garantir a ordem e a disponibilidade de uma força de trabalho, por outro lado, compensa as desigualdades e redistribui a riqueza produzida a fim de criar condições de vida viáveis para trabalhadores, empregados etc. Esse equilíbrio do compromisso keynesiano, ou das “décadas socialdemocratas” do pós-Segunda Guerra, foi abalado por décadas de neoliberalismo. A “governamentalização do Estado”, analisada por Foucault em seus cursos sobre o neoliberalismo, colocou o Estado a serviço de interesses privados, dos grandes grupos industriais e financeiros e dos indivíduos mais ricos, em detrimento dos serviços públicos e sociais, dos mais pobres e da classe média, de tal forma que uma parte crescente da população encontra-se empobrecida, vê diminuir seu acesso aos benefícios sociais e seu poder de compra enquanto aumentam suas contribuições fiscais.
Reapropriação do poder pelo povo
Antes mesmo dos coletes amarelos foi Macron quem exibiu esta “contradição” que retornou para ele como um bumerangue: supressão (parcial) do imposto sobre a fortuna, diminuição da taxação sobre lucros e dividendos, subvenções a empresas sem contrapartidas, ao mesmo tempo em que reduzia os programas de ajuda pública para moradia e que os gastos sociais eram chamados pelo presidente de uma “grana de maluco”. Sua campanha sugeria um desejo de equilibrar a inspiração liberal de seu programa com inflexões à esquerda, mas, na prática, entregou as chaves econômicas e sociais do governo à direita mais cegamente liberal, abandonando as perspectivas de luta contra as desigualdades, exceto pelo aumento do montante da ajuda às pessoas idosas e a diminuição do número de alunos por alas de aula nas zonas de educação prioritária (ZEPs). O que sobra é a aprovação à força da agenda de reformas neoliberais, como a trabalhista, levando o governo Macron a ser definido, com certa razão, como um “liberalismo autoritário”.
Bom, isso não funciona mais – já basta. Como Claus Offe observa, à medida que os governos perderam o controle da política econômica ao obedecer a uma agenda pré-estabelecida (pagamento da dívida, proibição de um déficit superior a 3%, redução dos direitos trabalhistas em nome da competitividade, cortes nos gastos do estado, austeridade…), os cidadãos perderam a confiança na ideia de que havia um controle democrático sobre as políticas do governo. Se o neoliberalismo nasceu de uma “crise do Estado de bem-estar social” diagnosticada por ele mesmo, poderá muito bem morrer de uma “crise do Estado neoliberal”, uma vez que este terminou por produzir o que os seus primeiros teóricos, na década de 1930 (os “ordoliberals» alemães) queriam evitar: o abandono dos trabalhadores pobres, da classe média e dos desempregados que, ao não se ‘encontrarem mais’, se afastarão da democracia liberal e serão tentados por alternativas diversas, sempre abertas – um movimento social de contornos insurgentes, uma forma de anarquismo “antipolítico”, o fascismo (hoje repaginado), o “populismo de direita” ou variações (hoje mais para libertárias) do comunismo.
Atravessado por correntes contrárias, esse movimento sem líder tem inconvenientes que também são suas vantagens: uma dispersão das demandas, a incerteza sobre o horizonte político, e por vezes um ódio preocupante da representação e dos representantes. Mas os coletes amarelos também traçam outros caminhos, estes promissores: uma demanda por democracia social, a reapropriação do poder pelo povo na forma de democracia mais direta – assembleia cidadã (no lugar do Senado), referendo de iniciativa popular –, uma inversão da política econômica e social em favor dos pobres e da classe média. A tímida resposta ensaiada pelo chefe de Estado às exigências mais pontuais deixa totalmente em aberto o projeto de refundação democrática e de instauração de um sistema econômico mais justo.
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Coletes-amarelos-ou-o-esgotamento-do-estado-neoliberal/6/42821
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