Sociedade

Fascismo, teu novo nome é Consumismo

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Fran Alavina – Mesmo após sua morte atroz, em no­vembro de 1975, Pa­so­lini não deixou de in­co­modar. Uma de suas úl­timas po­lê­micas, ex­pressa nos seus textos (Scritti Cor­sari e Let­terre Lu­te­rane), bem como no seu úl­timo filme Salò, era a afir­mação do nas­ci­mento de um novo tipo de fas­cismo. Desta nova forma de to­ta­li­ta­rismo dis­far­çado, o pen­sador ita­liano es­tava bem certo. Exa­ta­mente por isso, ocu­pava uma po­sição de des­lo­ca­mento entre os in­te­lec­tuais de seu tempo. Os con­tem­po­râ­neos viam seu di­ag­nós­tico do pre­sente como algo exa­ge­rado. Uma visão que, se­gundo eles, diria muito mais sobre a per­so­na­li­dade de Pa­so­lini do que sobre seu pró­prio tempo.

En­quanto todos se con­ten­tavam com os avanços do es­tado de bem-estar so­cial e es­tavam ine­bri­ados com o maio de 68, di­fi­cil­mente po­de­riam com­pre­ender que Pa­so­lini não se re­por­tava aos riscos da volta do fas­cismo his­tó­rico, como aquele de Mus­so­lini. Tra­tava-se, na ver­dade, de uma mu­tação do fas­cismo his­tó­rico, cuja gê­nese es­tava jus­ta­mente na­quilo que o es­tado de bem-estar so­cial com­por­tava em seu in­te­rior e era um dos mo­tivos de sua ex­pansão: o con­su­mismo. Ao mesmo tempo em que surgia uma nova ci­da­dania, das be­nesses da so­ci­al­de­mo­cracia, esta também en­se­java um novo mo­delo de homem e mu­lher: o con­su­midor.

Hoje, com a volta da ex­trema di­reita e sua che­gada ao poder em al­guns países, os am­bi­entes in­te­lec­tuais ora se veem imó­veis, in­ca­pazes de di­ag­nos­ticar com pre­cisão um fenô­meno que apa­rece dra­ma­ti­ca­mente como algo ines­pe­rado, ora se mo­vi­mentam para atestar sua exis­tência — mas buscam com­pre­endê-lo se­gundo o pa­râ­metro do fas­cismo his­tó­rico. Logo, deixam es­capar os novos ele­mentos e as novas de­ter­mi­na­ções.

É claro que o fas­cismo his­tó­rico não pode ser es­que­cido, pois é o mo­delo mais aca­bado do que foi um Es­tado fas­cista, ins­ti­tu­ci­o­nal­mente fa­lando.
Ocorre que, como apon­tava Pa­so­lini, o novo fas­cismo não é, em pri­meiro lugar, ins­ti­tu­ci­onal — mas sim uma nova forma de vida ja­mais vista, e por isso mais di­fícil de ser com­ba­tida.

Ele es­conde dentro de si uma nova ló­gica de poder, está mais ar­rai­gado nos in­di­ví­duos que em ins­ti­tui­ções ou ofi­ci­a­li­dades de­cla­radas. Por isso, Pa­so­lini re­feria-se a uma nova forma de poder: “anár­quico”, sem centro es­pe­cí­fico e sem uma es­té­tica que pre­ten­sa­mente ex­presse iden­ti­dade ho­mo­gênea — ao con­trário do que foi o fas­cismo his­tó­rico.

A ne­gação da di­fe­rença não seria, ad­vertiu o pen­sador ita­liano, feita pela força bruta. De­cor­reria da não acei­tação de qual­quer forma de vida in­di­vi­dual ou so­cial que não pu­desse ser trans­for­mada em mer­ca­doria — isto é, que não se adap­tasse ao con­sumo. Como era ne­ces­sário que o con­sumo acom­pa­nhasse o au­mento da pro­dução, o novo ci­dadão do es­tado de bem-estar so­cial de­veria ser le­vado cada vez mais à mer­can­ti­li­zação da vida.

Daí que du­rante as ocor­rên­cias do maio de 68 pela Eu­ropa, Pa­so­lini já de­nun­ciava seus li­mites e a aco­mo­dação do es­pí­rito de re­beldia pelo mer­cado.
A pró­pria re­beldia perdia sua va­lência po­lí­tica e tor­nava-se uma marca, um slogan. As novas formas de com­por­ta­mento, quanto mais possam pa­recer novas, mais se aco­modam ao con­sumo que já faz de si mesmo a imagem da única no­vi­dade pos­sível.

Este novo fas­cismo, que ao que pa­rece só Pa­so­lini con­se­guia ver, se­guia os passos do fas­cismo his­tó­rico, pois ins­tau­rava uma nova lin­guagem: po­bre­mente de­no­ta­tiva, como fora aquela que se ma­te­ri­a­li­zava nos dis­cursos de Mus­so­lini.

Assim, o novo fas­cismo trazia con­sigo um novo ges­tual que, se­gundo as pa­la­vras de Pa­so­lini, im­pedia que se pu­desse di­fe­ren­ciar, na Eu­ropa, um jovem das classes po­pu­lares de um jovem bur­guês. Os dois já fa­lavam do mesmo jeito, já ges­ti­cu­lavam do mesmo modo: enfim, todo o campo da ex­pres­si­vi­dade havia se tor­nado único. Des­fa­zendo, desse modo, qual­quer re­fe­rência às di­fe­renças entre classes so­ciais. Ora, não era o sonho do fas­cismo his­tó­rico pro­duzir um tipo de so­ci­e­dade ra­di­cal­mente ho­mo­gênea?

Não pa­rece, pois, ser mera coin­ci­dência que hoje os gestos e a lin­guagem da ex­trema di­reita te­nham se tor­nando tão ade­rentes nas redes so­ciais. Também sendo po­bre­mente de­no­ta­tiva, a lin­guagem das redes so­ciais levou o con­sumo ao seu ponto má­ximo: já não se con­somem coisas, pode-se con­sumir pes­soas.

A trans­for­mação das sub­je­ti­vi­dades em al­go­ritmos impõe um novo pa­drão de ho­mo­ge­nei­dade. Aqueles que já não falam a língua das redes, mesmo fora delas, tendem a de­sa­pa­recer, pois só aqueles que falam a língua do con­sumo ime­diato per­ma­necem. Não é pura oca­si­o­na­li­dade que os po­lí­ticos de ex­trema di­reita falem como se you­tu­bers fossem. Trump não dis­cursa como se es­ti­vesse no twitter? Mas essa nova lin­guagem pres­supõe ade­rência entre os fa­lantes: por­tanto, supõe que os fa­lantes já se iden­ti­fi­quem apenas como con­su­mi­dores.

Também não é mera coin­ci­dência que o atual es­tado de coisas a que che­gamos no Brasil tenha sido pre­ce­dido por uma as­censão e crise das classes po­pu­lares ao con­sumo. A classe tra­ba­lha­dora, fal­sa­mente iden­ti­fi­cada como nova classe média, passou a ver a si mesma como con­su­mi­dora, mais do que com qual­quer outra iden­ti­dade. O mesmo mo­vi­mento se deu na­queles países eu­ro­peus mais afe­tados com a crise econô­mica de 2008.

Os an­tigos con­su­mi­dores jo­gados para fora dos pa­drões de con­sumo não se voltam mais, como ou­trora, aos par­tidos tra­ba­lhistas ou de centro-es­querda (pois foram estes os prin­ci­pais fi­a­dores da so­ci­al­de­mo­cracia e seu es­tado de bem-estar). Não se veem mais como tra­ba­lha­dores ex­pro­pri­ados, mas como con­su­mi­dores in­ca­pazes de con­sumir.

A afir­mação da iden­ti­dade de classe foi per­dida. Por isso, no caso bra­si­leiro, por exemplo, não apa­rece como con­tra­dição se­guir um dis­curso que pro­mete a volta dos em­pregos por meio de uma agenda ne­o­li­beral ex­tre­mada e que ao mesmo tempo re­tira di­reitos dos tra­ba­lha­dores.

Se o fas­cismo his­tó­rico se guiava pela noção de um apa­relho es­tatal grande e forte, o novo fas­cismo pode aderir ao es­tado mí­nimo jus­ta­mente por não se tratar mais de ins­ti­tui­ções, mas de formas de vida que con­somem a si mesmas. Logo, a ade­rência do dis­curso da me­ri­to­cracia, que cria a imagem da so­ci­e­dade como um grande aglo­me­rado de in­di­ví­duos em eterna con­cor­rência.

In­capaz de en­gen­drar qual­quer forma de so­li­da­ri­e­dade so­cial, esta noção con­su­mista e in­di­vi­du­a­lista de si mesmo é um prato cheio para dis­cursos do culto da força, pois a vi­o­lência já in­ter­na­li­zada pelos in­di­ví­duos con­cor­rentes torna-se com­ple­ta­mente na­tu­ra­li­zada.

Não por outro mo­tivo, Pa­so­lini apon­tava que o novo fas­cismo era muito mais per­verso que o fas­cismo his­tó­rico. “Es­tamos todos em pe­rigo!”, dis­sera ele, nem tanto aos seus con­tem­po­râ­neos, mas a nós, 40 anos de­pois de seu as­sas­si­nato. É porque es­tamos todos em pe­rigo que pre­ci­samos vencê-lo. Não apenas pela re­sis­tência e uma nova su­pe­ração elei­toral das forças po­lí­ticas que en­carnam o novo fas­cismo, pois trata-se mesmo da cri­ação de uma nova forma de vida.

Afinal, nunca se pode es­quecer que a de­mo­cracia não é sim­ples­mente uma forma de go­verno, porém, uma forma de vida: talvez a única que se possa dizer ple­na­mente vida.

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