FELIPE BETIM – Presidente eleito e filhos têm discursos ambíguos sobre tema. Estudiosos avaliam que estímulo à violência de PMs e ao armamento da população tem potencial para provocar descontrole nas corporações policiais.
Violência no Rio de Janeiro é quase sempre sinônimo de traficantes de drogas armados com fuzis, mas são as milícias que, mais do que medo, impõem silêncio. Para quem convive com elas, falar sobre esse fenômeno requer uma série de cuidados e, principalmente, sigilo. Sentada em um bar do centro da capital, P. F. está afastada de qualquer perigo iminente, mas ainda assim fala baixo. “Não confio nem no tráfico nem na milícia, mas enquanto no primeiro estão meninos da comunidade, as milícias são algo institucionalizado… São o próprio Estado”, afirma ela, que tem casa e parentes em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio sob influência de milicianos —grupos armados formados principalmente por agentes públicos, como policiais e bombeiros, da ativa ou reformados, que extorquem, aterrorizam e assassinam sob a justificativa de que estão fazendo a segurança do local.
Poucos dias depois da conversa, Jair Bolsonaro (PSL) se elegia presidente com um plano de segurança que tem potencial de multiplicar essas milícias e seus ‘primos’, os grupos de extermínio, paramilitares e justiceiros que há décadas espalham o terror —e não só contra bandidos— no país. A avaliação é de quatro especialistas em segurança pública consultados pelo EL PAÍS, que coincidem em dizer que programa do ultradireitista tem potencial para fazer a violência explodir em um país que contabilizou 63.880 homicídios em 2017, um recorde. Bolsonaro se apoia em três ideias básicas, que na prática podem ter efeitos colaterais e aumentar a violência: permitir que a polícia mate mais e fique impune, flexibilizar o porte de armas para cidadãos e endurecer o código penal para acabar com as progressões de regime, o que resultaria em cadeias ainda mais lotadas —e nesse caso, há uma chance de haver mais mão de obra para facções criminosas, que hoje se constituem e crescem dentro das prisões.
“Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, disse Bolsonaro em fevereiro deste ano, quando já era pré-candidato, durante entrevista ao programa Pânico, da Jovem Pan, quando questionado como combateria as milícias. A frase forma parte de um conjunto de posicionamentos considerados ambíguos sobre o tema. Seu filho, o senador eleito Flavio Bolsonaro, votou contra a instalação de uma CPI das milícias da Assembleia do Rio, em 2007, e o próprio presidente eleito taxou milicianos como “defensores da ordem” no plenário da Câmara, em 2008. Questionado pelo jornal O Globo em julho deste ano, disse: “Hoje em dia ninguém apoia milícia mais não. Mas não me interessa mais discutir isso.”
Mudanças profundas são incertas porque dependem do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos Governos Estaduais. Contudo, o discurso linha dura e permissivo —em entrevista no Jornal Nacional, Bolsonaro chegou a defender a condecoração dos agentes que mais matem— pode por si só estimular a ação desses grupos de extermínio, avaliam os especialistas. Até agora, serviu para mobilizar o eleitorado. “Agora chegou a hora de vocês! Tem que matar esses bandidos! Quem rouba merece morrer!”, bradou uma mulher que passava por um grupo de policiais militares fortemente armados na noite de 28 de outubro, quando Bolsonaro confirmou sua vitória nas urnas. Eles acompanhavam o ato de algumas centenas de pessoas que celebravam a vitória do ultradireitista em frente ao seu condomínio, na praia da Barra da Tijuca. O que mais fizeram naquele dia foi tirar fotos com manifestantes, que chegavam a fazer filas. “Eu acho que a violência vai aumentar, sim, mas para os bandidos. Para o cidadão de bem vai melhorar”, explicou um homem.
“Se existe uma área em que sinalização é fundamental é a de segurança. Um aperto de mão ou uma palavra podem significar várias mortes e tragédias”, explica Daniel Cerqueira, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e conselheiro do Fórum de Segurança Pública. Um menor controle social do uso da violência deixaria os policiais livres para subornar ou se unir a grupos de extermínio ou milicianos, argumenta. “Quando falam que a polícia vai matar sem controle, estão pregando uma ação criminosa, que não sigam o Estado Democrático de Direito. Vamos sentir saudades de quando só traficantes eram o problema”, acrescenta.
Nessa mesma linha opina Ignacio Cano, sociólogo da Universidade do Estado de Rio de Janeiro (UERJ). “Se incentivamos a polícia a matar ainda mais e as pessoas a ter armas, apelando para a violência e o ódio, estamos criando um terreno fértil para que esses grupos se expandam”, argumenta. “Os policiais brasileiros reconhecem que matam mais de 5.000 pessoas por ano, sem contar as execuções sumárias. Quando Bolsonaro diz que não serão processados, isso tende a aumentar. Policiais já quase nunca são processados”, destaca. Ele lembra que o ultradireitista visitou o BOPE ((Batalhão de Operações Especiais) antes do segundo turno e disse era hora de os capitães mandarem no país. E que o governador eleito do Rio, Wilson Witzel, pretende dissolver a Secretaria de Segurança e “devolver o poder aos policiais”. Para Cano, tudo isso “manda mensagem de descontrole e autonomia totalmente contrária a lógica militar tradicional”. Ele afirma: “Talvez nem precise de grupo de extermínio. No Rio, a polícia já faz esse trabalho”.
Para Jaqueline Muniz, antropóloga e cientista política da Universidade Federal Fluminense (UFF), o fenômeno das milícias “tem a ver com um processo de autonomização predatória da polícia”, tornando-a ingovernável. “Não podemos falar em estado policial, mas sim em governo policial, algo que já temos. É a espada chantageando o político e multiplicando ameaças e medos na população. Aconteceu também em Nova York, em Chicago…”, explica a especialista, para quem esse processo significa desprofissionalizar as corporações policiais, empurrando-as para a clandestinidade e informalidade. Os efeitos disso, argumenta, são perversos. “Toda espada autonomizada corta a língua do verbo da política e rasga a letra da lei. Porque não é a espada que define o seu alcance e a profundidade de seu corte, quem decide é a sociedade. Quem segura a espada é a mão civil”.
Expansão do modelo milícia
No Rio, as milícias dominam bairros inteiros da zona oeste da capital e, nos últimos anos, se expandiram para São Gonçalo e municípios da Baixada Fluminense. Um levantamento do portal G1 indica que 2 milhões pessoas da região metropolitana vivem em áreas sob influência dessas facções. Quando surgiram, há pouco mais de 20 anos, prometiam levar segurança para áreas dominadas pelo tráfico. “Nem sempre ostentam armas como o tráfico”, conta P. F., “mas o morador tem que fazer o que mandam”. O poder econômico não vem com a venda de drogas, mas sim com o controle de serviços como o de gás, água e Internet, além de comércios. “Se uma pessoa compra determinado produto, precisa mostrar que comprou no lugar certo, controlado por eles, se não é punido”. Tortura e homicídios fazem parte do cardápio de terror. No campo político, as milícias também financiam candidaturas e até elegem seus membros para o parlamento local.
Violência policial “sempre vem acompanhada de corrupção”, o que significa que se o agente “tem autorização para matar, também tem para extorquir, porque ele troca segurança por dinheiro”, explica a socióloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. Assim surgiu esse modelo tão aperfeiçoado de controle de território e extorsão. Contudo, a atuação de grupos extermínio é antiga e conhecida em todo o Brasil. Nos anos 60 e 70, ganharam poder nas ruas do Rio e de São Paulo os chamados esquadrões da morte, grupos de policiais formados dentro das delegacias e secretarias de segurança com um viés moralista —intensificado durante o regime militar— e carta branca para matar. Um dos mais conhecidos foi chefiado por Sergio Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo e conhecido torturador da ditadura.
Execuções extrajudiciais e ações de vingança estão disseminadas em todo o país ainda hoje, independentemente da existência formal de grupos paramilitares. Os alvos podem ser quaisquer pessoas: em 2015, nove policiais militares foram acusados em Salvador de assassinar 12 jovens, um episódio que ficou conhecido como Chacina de Cabula; naquele mesmo ano ocorreu também a chacina de Osasco, na qual ao menos 19 pessoas foram assassinadas por policiais militares e guardas civis metropolitanos, que agiram por vingança em razão da morte de dois agentes, segundo o Ministério Público; em março deste ano, a favela da Rocinha, no Rio, viu pelo menos seis de seus moradores morrerem, um deles o dançarino Matheus da Silva Duarte Oliveira, como reação à morte de um policial três dias antes.
“No Norte e no Nordeste o que predomina são os acertos de conta. Os grupos matam mais à noite, no carro preto e sem farda. No Rio eles têm também interesses comerciais. Esse é o modelo milícia, que pode se generalizar no Brasil”, opina Ramos. Cerqueira, do IPEA, também acredita na disseminação desse modelo consolidado no Rio, um Estado que é “vitrine” para o resto do Brasil. “Historicamente, o que acontece aqui vai varrendo o resto do país. Na década de 70 começou o Comando Vermelho e hoje temos 81 facções que nascem dentro dos presídios. Se você não tem controle sobre as polícias, a tendência é uma capilarização das milícias”, argumenta.
“Zumbis de policiamento” e tensão com Sérgio Moro
Se por um lado a licença para matar desqualifica o trabalho policial e fortalece as milícias, por outro também resultará em mais agentes mortos, avalia Muniz. “Se todo encontro com a polícia vai ser violento, sem a possibilidade de rendição, então vou levar o outro comigo. Pode ser a polícia ou a vítima”, argumenta. “Isso já acontece, mas veremos isso de uma maneira ainda mais perversa. Policiais vão virar zumbis de policiamento, mortos-vivos”. Os planos de Bolsonaro também não têm o endosso completo de seu futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro. “Não pode construir uma política criminal, mesmo de enfrentamento ao crime organizado, baseado em confronto e tiroteio. O risco de danos colaterais é muito grande. Não só de danos colaterais, mas risco para o policial”, disse Moro em entrevista ao programa Fantástico, no domingo. O juiz da Operação Lava Jato já havia feito ressalvas em entrevista na semana passada e uma das questões é como essas divergências vão se acomodar no exercício do poder.
Soma-se a isso a intenção do presidente eleito de flexibilizar o porte de armas, com potencial de transformar pequenos conflitos entre vizinhos, parentes e conhecidos em tragédias. “É o Estado dando uma banana para o cidadão. Vamos viver num regime da esculachocracia, onde todo mundo esculacha todo mundo. Os indivíduos já se veem empoderados em suas próprias razões, porque as autoridades em cima estão deseducando. Já estamos vendo patrulhas morais, pessoas sendo agredidas, perseguidas…”, lamenta Muniz, que ainda adverte: “O fraco armado vai seguir sendo fraco diante do forte armado. Por isso que existe polícia e Estado. Além disso, o dedo nervoso, a cabeça quente e o coração aflito impedem que o cidadão tenha vantagem em qualquer situação em que esteja exposto”.
COMPLACÊNCIA DAS AUTORIDADES
Apesar de atuarem ilegalmente, grupos de extermínio e milícias já contaram, em diferentes períodos, com a complacência e até apoio explícito de políticos e autoridades — até uma CPI mostrar, em 2008, as barbaridades da milícias do Rio, elas chegaram a ser vistas como solução para o tráfico de drogas. Em agosto de 2003, em discurso na Câmara, o próprio Bolsonaro expressou sue apoio a um grupo da Bahia que cobrava 50 reais para matar jovens da periferia: “Quero dizer aos companheiros da Bahia que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro”, discursou.
Na época da CPI das milícias no Rio, voltou a falar a na tribuna da Casa sobre o tema: “Nenhum deputado estadual faz campanha para buscar, realmente, diminuir o poder de fogo dos traficantes, diminuir a venda de drogas no nosso Estado. Não. Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes”, discursou. “Existe miliciano que não tem nada a ver com gatonet [serviço irregular de TV por assinatura] e com venda de gás. Como ele ganha 850 reais por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de gatonet, venda de gás ou transporte alternativo. Então, senhor presidente, não podemos generalizar”.]
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/07/politica/1541621514_210694.html
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