F.B. – Jovens estudantes relatam o racismo e os obstáculos no cotidiano do campus universitário. Na PUC-Rio, coletivos como o Nuvem Negra e o Bastardos da PUC lutam por mudanças institucionais.
Os primeiros meses de aula na faculdade foram os mais difíceis para Juliana do Nascimento Costa. “Eu me sentia desconfortável. Chegava em casa chorando porque não queria estar aqui, não me identificava”, conta ela, que aos 21 anos estuda Cinema na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), um curso “muito elitista” no qual, segundo diz, os alunos geralmente possuem uma vivência muito diferente da sua: todos viajam para fora do país, falam inglês fluentemente, têm pais que trabalham em grandes empresas e conversam sobre grandes cineastas, músicos e escritores. No início ela nem sabia por que se sentia tão incomodada. Assim como não compreendia por que muitas pessoas pediam informações sobre como conseguir uma bolsa de estudos na universidade, já que no início pagava a mensalidade normalmente — só mais recentemente conquistou uma bolsa.
Costa, que é negra, diz que com o tempo foi percebendo como a cor de sua pele é determinante para que se sinta “um peixe fora d’água” na PUC-Rio, uma das melhores e mais caras universidades do país. “Foi aqui que eu me entendi como uma mulher negra e comecei a entender a importância de estar aqui e de persistir”, explica. Moradora do Recreio, um bairro de classe média da zona oeste do Rio de Janeiro, ela é a primeira mulher de sua família a completar o ensino médio e a segunda pessoa a ingressar no ensino superior — a primeira foi seu pai. Já a instituição em que estuda é a mesma dos futuros advogados, juízes, promotores e defensores públicos que, há poucos anos atrás, cantaram a seguinte música nos Jogos Jurídicos:
Agora a UFRJ se fudeu, se fudeu
O pobre deles não é mais pobre que o seu.
Quer ajuda pro trem? Eu inteiro
Um trocado pro lanche? Eu dou
Aproveita que hoje eu to bonzinho,
To sentindo por você, Congo
No fim do mês a grana vai faltar, vai faltar
Vai no lixão lá da central catar lata!
Canções do tipo eram até pouco tempo frequentes e consideradas como parte da diversão nessa competição esportiva, realizada entre várias universidades. Mais precisamente até junho deste ano, quando, segundo relatos, jovens da torcida da PUC-Rio imitaram macacos diante de torcedores negros do time rival e uma menina jogou uma casca de banana em direção a Maicon Nascimento, um atleta negro da Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Após a faculdade ter sido suspensa dos jogos deste ano, a vice-reitoria comunitária e o Departamento de Direito constituíram uma comissão disciplinar formada por três professores para apurar o ocorrido. Não apontaram culpados, mas reconheceram que falta representatividade na universidade e sugeriram a contratação de mais docentes negros.
Nascimento chegou a denunciar o ocorrido para a Polícia Civil, que identificou a garota responsável. Ela e outras 12 pessoas foram ouvidas e a corporação concluiu que não houve crime de injúria racial em seu ato, pedindo assim pelo arquivamento do inquérito. “Ela contou que tinha comido a fruta e estava com a casca na mão porque pretendia assim que acabasse o jogo sair do campo e achar um lixo. Mas durante a discussão contra a torcida da UCP, ela e as amigas se sentiram hostilizadas e em um ‘ato reflexo’ ela atirou o que tinha nas mãos para o alto”, argumentou o delegado Claudio Batista Teixeira no início deste mês ao portal G1. Ele também disse que a jovem estava na torcida da PUC-Rio porque é namorada de um estudante de lá. “Todos os depoimentos colhidos mostram que não houve a intenção da jovem que atirou a casca de banana de atingir o atleta. E há ainda relatos de que a casca teve a rota desviada por outro estudante”, acrescentou.
A PUC-Rio vem mantendo a discrição desde que estourou o escândalo. Além de ter constituído a comissão, lançou notas lembrando de seu pioneirismo na “implementação de políticas de inclusão educacional, racial e social, através de uma prática efetiva e consolidada de apoio a vestibulares populares, concessão de bolsas de estudo e apoio de material didático, além de outras iniciativas que propiciem a permanência do beneficiário na instituição”. Também garantiu repudiar “qualquer discriminação baseada em raça, sexo, língua, credo e opções existenciais, temas que são objeto de debates, discussões e pesquisas em inúmeros Departamentos”.
A diferença entre antes e agora é que o debate sobre o racismo —assim como sobre LGBTfobia, machismo, entre outros temas— vem ganhando uma amplitude sem precedentes na história do país. De tal modo que gritos de torcida, piadas ou comentários racistas e classistas são cada vez menos tolerados. Mas os obstáculos enfrentados por estudantes negros e das periferias —incluindo também os brancos que estão no segundo grupo— são inúmeros e vão muito além de comentários ou piadas, segundo conta Lucas Clementino. Oriundo de Mesquita, um município periférico vizinho ao Rio, conseguiu uma bolsa PROUNI, do Governo Federal, para cursar Arquitetura. Primeiro na Estácio de Sá e depois, após fazer transferência externa, na PUC-Rio. Trabalha desde os 15 anos e, ao ingressar no ensino superior, passou a conciliar o trabalho com a faculdade e os longos deslocamentos em transporte público. “Fazemos uma matéria que se chama Projeto em que temos uma demanda de produção muito grande. Toda hora tem que fazer alguma coisa nova. Quando entrei, ainda morava em Mesquita e não tinha tempo pra produzir porque o meu tempo era gasto no transporte público”, conta.
A principal questão sempre foi o dinheiro, apesar de estar isento da mensalidade. “O material é absurdamente caro, as canetas são muito caras… No último período, eu e minha dupla de projeto tivemos que passar o cartão e parcelar uns 500 reais em maquete e prancha. E isso é o valor para um período e uma só matéria”, conta Clementino. Ele explica que alguns professores compreendem e tentam ajudar, enquanto outros já dizem no primeiro dia de aula que é melhor “os alunos bolsistas desistirem se não se adequarem, porque a matéria é de tal jeito e não tem como mudar“. Ele até propôs que alguns trabalhos fossem apresentados em slides ao invés das caras impressões, mas diz que alguns docentes ainda relutam por causa de “preciosismos”. A solução passa por fazer menos matérias e atrasar sua formatura. “Existe uma exclusão por classe. Muitas pessoas que não conseguem pagar e não conseguem fazer o curso acabam desistindo, porque ele é pensado de tal jeito para determinado tipo de gente”.
Otavio Leonidio, professor e diretor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, conta que, desde que assumiu o cargo, em março deste ano, está aplicando mudanças para contemplar as demandas dos alunos negros ou bolsistas. Após fazer uma plenária com os estudantes, a primeira questão que apareceu foi a dos custos mencionados por Clementino. “Todos os desenhos coloridos podem agora ser projetados no projetor. E isso diminuiu em 80% os custos de plotagem [um tipo de impressão]. Só vamos pedir plotagem para o desenho técnico, mas estamos comprando uma impressora plotter de uso exclusivo dos alunos. O preço, super subsidiado, vai ser revertido para o centro acadêmico e para a manutenção da máquina”, explica. “Estamos também fazendo um banco reserva de material de maquete que antes não era reaproveitado. E vamos também começar a subsidiar as viagens de estudo, que não terão os mesmos preços para quem pode e não pode pagar”, acrescenta.
Também se diz pessoalmente sensível a questão dos longos deslocamentos feitos em transporte público e que, apesar de não poder interferir diretamente em cada aula, tenta que todos os demais professores também sejam compreensíveis. Garante, por fim, que a PUC-Rio como instituição está aberta e empenhada em fazer mudanças, sob a batuta do vice-reitor comunitário Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio. “Temos que dar boas vindas a essas mudanças, temos uma dívida tremenda que está na hora de saldarmos. E essa ideia de que vamos fazer uma conciliação muito apaziguada é ainda uma expectativa do mundo branco. É ainda a ideia de dominação. Claro que vai haver mal-estar, uma reação forte de quem perde privilégios”, diz ele, que também defende incorporar nas bibliografias dos cursos autores e conhecimentos negros.
Os coletivos se fortalecem
Em momento crucial para um ensino superior brasileiro em crise, cujo financiamento e viabilidade entrou na rota dos candidatos a presidente neste ano de eleições, soma-se um desafio que vai além da democratização de seu acesso: como mudar mais rapidamente uma estrutura ainda considerada opressora de instituições públicas e privadas, que absorveram nos últimos anos um imenso contingente de pessoas a partir de políticas afirmativas, como os sistemas de cotas raciais e para alunos de escolas públicas, o programa de financiamento estudantil FIES e o sistema de bolsas de estudo PROUNI. Após esse choque de mistura racial e de classe, os campus tornaram-se palco de disputas por espaço.
“As universidades não eram vistas como um lugar em que negros pudessem normalmente estar. Quando você começa a mudar isso, muito por conta da luta do movimento negro e de democratização do acesso a educação, você tem um aumento dessa disputa. Ela fica mais evidente”, explica Silvio Almeida, professor de filosofia do Direito da FGV e Mackenzie. Estudioso das questões raciais, Almeida argumenta que os coletivos negros universitários, mais visíveis também por conta das redes sociais, já não são apenas movimentos de resistência, mas que também demandam transformações na dinâmica universitária. “O fato de que a sociedade seja racista faz com que as instituições reproduzam essa dinâmica, mas não quer dizer que não possam se colocar numa postura contraria a isso. Senão, a gente não responsabiliza tanto as instituições como os indivíduos”.
Lucas Clementino, por exemplo, cofundou em 2016 o coletivo Bastardos da PUC, uma referência a “Filhos da PUC”, expressão normalmente usada por aqueles que estudam na instituição. O grupo, que reúne alunos bolsistas, negros ou não, começou como um grupo de WhatsApp em que os estudantes trocavam informações sobre lugares mais baratos para comer ou tirar xerox e se tornou uma grande rede de apoio entre eles. Em uma página no Facebook com 14.000 curtidas estão os vários relatos de situações e dificuldades cotidianas pelas quais acabam passando. “Existe uma discussão entre os alunos bolsistas sobre esse espaço da universidade, não só sobre o acesso a ele, mas também sobre permanência. Percebemos claramente que esse espaço não é pensado para nós e, apesar de existirem professores e funcionários sensíveis as nossas discussões, há uma estrutura muito grande que se organiza para se manter e perpetuar essa exclusão dentro do ambiente universitário”.
O rapaz, assim como Juliana Costa e outros alunos e ex-alunos da graduação e da pós-graduação, também participa de atividades do Nuvem Negra. “É um espaço de acolhimento e fortalecimento dos negros na universidade, construído por pessoas negras para pessoas negras”, explica Ana Carolina Mattoso, 28 anos e doutoranda em Direito. “É uma questão de articulação política no ambiente universitário, no sentido de pautar e reivindicar uma luta antirracista na universidade”, acrescenta Mattoso. Seu colega, Lucas Obalera de Deus, ex-aluno de Ciências Sociais de 27 anos, argumenta que o racismo está institucionalizado “na ausência de disciplinas e de professores negros”, assim como na “naturalização de você chegar na sala de aula e ser o único aluno negro”. O resultado disso, ele diz, é o acúmulo de “uma série de violências, de microagressões”.
O coletivo faz reuniões semanais, publica um jornal semestral, desenvolve várias atividades abertas e, principalmente, centra sua luta em conseguir mudanças efetivas na estrutura da universidade. “Queremos mexer no currículo, no plano pedagógico, acrescentando disciplinas que tratam das relações étnico-raciais, que apresentem uma epistemologia negra, um conhecimento negro. Estamos propondo aos departamentos disciplinas e emendas de disciplinas, para que haja uma transversalidade do tema racial”, explica Mattoso. Não há dados sobre a proporção de alunos autodeclarados negros na universidade. No caso dos professores, são apenas 86 entre um total de 1.985, 4,3%. “É preciso que a universidade passe a ser uma pluriversidade. Isso impacta diretamente na formação de profissionais que vão atuar no mercado de trabalho. A ausência de uma reflexão de um estudante de Direito faz com que um juiz haja para manter a população negra encarcerada, que faça com que Rafaéis Braga se proliferem“, exemplifica Obalera de Deus.
Mattoso fez sua graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um ambiente menos elitizado por ser uma instituição pública. Mas ainda assim hostil, em sua percepção. “Sempre fui confiante como estudante, mas nas relações você percebe por que não faz amizade com determinados grupos, ou não é incluído perto de determinadas pessoas. As turmas na UFRJ são enormes e divididas em guetos. Eu sempre ficava nos guetos dos pobres”, diz ela. É o que conta também Aline Araújo Sampaio Conceição, ex-aluna de Direito da UNIRIO até 2012 — época em que ainda não possuía cotas raciais. “Éramos apenas quatro negros na turma, totalmente invisíveis. Aliás, uma turma que foi apelidada de senzala, o que soube por acaso”, conta ela, hoje com 34 anos e mestranda na França. Além disso, ela diz que comentários racistas sempre aparecia nas conversas. “Coisas do tipo ‘você é negra, mas…’. Depois desse ‘mas’ vem ‘é inteligente, é esforçada, não é preguiçosa’. Mas no Jogos Jurídicos as coisas ficavam bem as claras”, acrescenta.
Entre as situações mais constrangedoras que vivenciou está o dia em que uma professora ofereceu uma vaga de estágio na Defensoria Pública para seus alunos e colocou várias exigências. “O aluno tinha que ser oriundo de escola de ponta, como o Colégio Cruzeiro, Escola Britânica, São Bento e Santo Inácio. Segundo ela, alunos que vem desses colégios são aptos a escrever em língua portuguesa, outros não”, conta Conceição. “Ou seja, eu me formei com nota 9,3, mas não estaria apta para ser estagiária dela. Esse é o tipo de coisa que remarca bem o lugar de cada um na sociedade da meritocracia”.
O professor Almeida dá outro exemplo: “Ainda hoje, em sala de aula, os professores de Direito dão exemplos racistas para explicar casos, associando pessoas que cometem crimes com pessoas negras, como se isso fosse algo normal”. Ele também explica que professores negros, como ele, possuem pouco espaço para discutir problemas do Brasil e do mundo. “Uma coisa que muito me incomoda é que o fato de que ser professor negro não significa que você apenas possa falar de racismo. Isso é um ponto central pra mim. Quando se é um professor negro, você acaba pautado pela questão racial. E tenho dito que eu pauto a questão racial, mas ela não me pauta”. Assim, um ponto fundamental é que as universidades formem “intelectuais negros e negras que possam pensar em grandes questões nacionais e internacionais, independentemente de tratar diretamente da questão racial ou não”. “O que eu entendo”, ele prossegue, “é que não se pode tratar nenhuma dessas questões sem tratar da questão racial, que é um elemento analítico, um objeto científico”.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/03/politica/1530632060_600428.html
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