AMANDA TAUB – As consequências econômicas do voto britânico por deixar a União Europeia foram súbitas e sombrias. A libra caiu à sua mais baixa cotação em três décadas. Quando a bolsa de valores de Londres abriu, na manhã seguinte, seu principal índice de ações imediatamente caiu em mais de 8%, a maior queda diária desde a crise financeira de 2008.
Foi mais ou o menos o que os analistas financeiros previram. E fica claro pelos dados das pesquisas e entrevistas com eleitores que as pessoas que votaram pela saída (“Brexit”) estavam bem cientes dos riscos econômicos. Mas se incomodam mais com outra coisa: a imigração.
A maior parte das pesquisas aponta que a imigração beneficiou a economia britânica. Mas os eleitores que apoiaram a campanha pela saída ou não se deixaram convencer pelas provas, não sentiam que ela os havia beneficiado pessoalmente, ou acreditavam que os efeitos negativos superavam os positivos.
O Brexit não é apenas um abalo para a economia britânica, mas também um abalo para uma suposição central da moderna ordem liberal: a de que os eleitores agirão de acordo com seus melhores interesses.
O progresso dos últimos 50 anos, especialmente na Europa, tornou fácil acatar a ideia de que as forças do nacionalismo, xenofobia e preconceito são simples irracionalidades, distorções de mercado que desaparecerão naturalmente, no grande arco da História.
O referendo da semana passada revelou –não pela primeira vez, mas com clareza incomum– os furos dessa teoria. Para muita gente, a identidade importa mais que a economia. Essas pessoas se dispõem a pagar preço alto (no caso, literalmente) a fim de preservar uma ordem social que as faça sentir seguras e poderosas.
A dinâmica não se limita ao Reino Unido, ou a este referendo. Está se fazendo sentir em democracias de todo o mundo, e a imigração se tornou seu ponto focal.
Muitos cidadãos, especialmente aqueles que sofreram por conta das pressões econômicas da globalização, expressaram ansiedade sobre essas mudanças ao tomar por foco outra forma de mudança: a presença de estrangeiros entre eles. Bloquear a imigração, mesmo que o efeito concreto seja piorar sua situação econômica, parece um jeito de evitar essas mudanças ainda maiores.
Os governos democráticos vêm demonstrando repetidamente que não têm resposta a essa ansiedade, e há cada vez mais em jogo, na Europa e no resto do mundo.
FATOS NÃO COMPETEM COM SENTIMENTOS
O economista Michael Clemens definiu a imigração como “a nota de um trilhão de dólares caída na calçada”: um imenso avanço na riqueza à espera de ser apanhado por qualquer país que seja atraente para os imigrantes e esteja disposto a acolhê-los. Relaxar a restrições ao fluxo mundial de mão de obra, ele argumenta, ofereceria mais estímulo às economias do planeta do que abandonar todas as restrições ao comércio e movimento de capitais.
Mas dados não votam –são as pessoas que o fazem. E a realidade é que os ganhos da imigração muitas vezes parecem difíceis de distinguir, enquanto os custos são percebidos como mais pesados do que são na realidade.
Uma pesquisa de opinião divulgada em 20 de junho pelo instituto Ipsos/MORI mostrava que 47% dos eleitores que planejavam votar pelo Brexit afirmavam que a imigração havia prejudicado a economia do Reino Unido. Pouco importa que um estudo do Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social britânico tenha constatado que a imigração elevou o Produto Interno Bruto (PIB) do país e reduziu o custo de serviços governamentais como a saúde e as aposentadorias, o que por sua vez ajudou a reduzir os impostos.
É certo que, apenas por a imigração oferecer resultado líquido positivo para o país como um todo, não quer dizer que ela beneficie todas as pessoas. A divisão geográfica dos resultados da quinta-feira (23) mostra que as regiões nas quais a campanha pela saída se saiu melhor são aquelas que tendem a abrigar poucos imigrantes mas nas quais os salários também são mais baixos, de acordo com uma análise conduzida por Torsten Bell, diretor da Resolution Foundation, uma organização de pesquisa britânica.
Isso sugere que a ansiedade econômica pode ser expressa na forma de sentimentos contrários à imigração mesmo que britânicos não tenham concretamente perdido seus empregos para estrangeiros.
“Tende-se a ver sentimentos contrários à imigração em áreas atingidas pela mudança nas circunstâncias econômicas ou pelas crises mundiais”, disse Alexandra Cirone, pesquisadora na London School of Economics. “Enquadrar como imigração esse problema associado à globalização também apela emocionalmente aos potenciais eleitores, não importa quais sejam os fatos concretos”.
PRESSÕES ECONÔMICA E MUDANÇAS DEMOGRÁFICAS
Mas por que as pessoas escolhem descontar suas ansiedades econômicas em estrangeiros sem rosto? A resposta correta provavelmente é a mais simples: os imigrantes mudam seus novos países de um milhão de maneiras pequenas mas perceptíveis, mesmo que roubar empregos locais não seja uma delas. Essas mudanças podem ser perturbadoras ainda que muitas delas sejam inegavelmente positivas.
Para pessoas que já se sentem desestabilizadas por desgastes econômicos, essas mudanças sociais contribuem para um sentimento de que algo de precioso está sendo perdido, de que seu país está deixando para trás coisas que as pessoas apreciam e se encaminhando a um futuro novo e desconhecido.
A campanha pela saída falava a essas ansiedades ao argumentar que a imigração (a qual, a campanha dava a entender algumas vezes, seria não branca) havia levado o Reino Unido a um “ponto de ruptura”. Os jornais sensacionalistas britânicos cobrem em detalhes sanguinolentos os crimes de refugiados que estão no país em busca de asilo, e alertam que eles são um “enxame” capaz de “devorar” o país.
O fenômeno dificilmente está limitado ao Reino Unido. Nos Estados Unidos,a imigração mexicana vem sendo zero em termos líquidos desde 2010, mas os eleitores das primárias republicanas mesmo assim aplaudiam a promessa de Trump de construir uma muralha na fronteira sul do país como se isso pudesse resolver o que quer que seja que os está incomodando.
HOSTILIDADE AOS IMIGRANTES NAS URNAS
A reação hostil aos imigrantes pode se expressar de diversas maneiras. Imigrantes podem sofrer ataques xenófobos, ou viver o perigo de uma situação legal incerta. Mas as consequências também podem ser muito mais amplas.
O Brexit, claro, demonstrou que pode haver riscos econômicos sérios. Mas há riscos políticos, igualmente. Na Hungria, por exemplo, o sentimento de hostilidade aos imigrantes sustentou a popularidade do presidente Viktor Orban e a do partido Jobbik, de extrema direita. Orban foi criticado por restringir a liberdade de imprensa e a independência do Judiciário.
Na Grécia, uma plataforma de hostilidade aberta aos estrangeiros e lemas como “a Grécia pertence aos gregos” tornaram o partido neofascista Aurora Dourada o terceiro maior do Parlamento. O partido conquistou meio milhão de votos na eleição de setembro de 2015 mesmo com seus principais líderes sendo julgados por homicídio durante a campanha.
Trabalhos relativamente novos de ciência social retratam um grupo de “autoritários” que se dispersam pelas faixas etárias mas desejam conformidade, ordem e normas sociais. Eles podem ser “ativados”, como os sociólogos descrevem, quando se sentem ameaçados por mudanças sociais, e nesse caso buscarão políticas severas e punitivas que tomem por alvo os forasteiros e restaurem o status quo.
Como Jonathan Haidt, psicólogo social e professor na Escola Stern de Administração de Empresas, na Universidade de Nova York, descreve, “é como se houvesse na testa dessas pessoas um botão que diz ‘em caso de ameaça moral, bloqueie as fronteiras, expulse os diferentes e puna aqueles que se desviam da normal moral'”.
A globalização não desaparecerá, nem tampouco as mudanças que ela propicia, entre as quais a alta nas migrações e a divisão das sociedades em vencedores e derrotados economicamente. O tumulto criado pelo Brexit pode ele mesmo se tornar causa de maiores mudanças, mais desgaste e mais instabilidade.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/06/1786064-brexit-mostra-que-fatos-sao-ignorados-em-debate-sobre-imigracao.shtml
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