Laís Modelli – Tudo começou com uma curiosidade da professora de literatura Amelia Worsley ao ler a teoria das emoções formulada pelo filósofo Willliam James (1842-1910). Segundo ele, o que entendemos sobre emoções e o modo como as experimentamos não é universal, pois varia de geração para geração.
“Estava interessada em conhecer a história das emoções e comecei a pesquisar”, conta a professora da Amherst College, universidade de artes liberais dos EUA. Durante a pesquisa, um sentimento em especial chamou a atenção de Worsley: a solidão.
Ao reunir registros sobre solidão na literatura e nas artes em diferentes períodos históricos, a americana se surpreendeu ao descobrir que o termo teria sido usado pela primeira vez na literatura inglesa somente no século 17.
“É difícil apontar exatamente quando as pessoas começaram a falar em solidão. Mas, se procurarmos pelos registros escritos da língua inglesa, veremos que é um conceito relativamente novo, embora seja muito divulgado atualmente”, conta.
Nos registros localizados, Worsley comparou os significados atribuídos à solidão ao longo do tempo e concluiu que aspectos de diferentes culturas tiveram um impacto particular sobre como a palavra era descrita em determinado lugar. Por isso, “solidão” passou por inúmeras transformações e significados.
Entre as mudanças de significado, a que deu origem à maneira como a palavra é empregada hoje é a mais complexa, segundo a professora. “O que mais me interessa é que, atualmente, solidão pode descrever uma disjunção entre uma experiência física e uma mental: você pode estar no meio de uma multidão e se sentir solitário, mas você também pode viver sozinho e não se sentir solitário.”
“As mudanças de significado de solidão podem nos dizer muito sobre como as pessoas em diferentes momentos entenderam suas experiências mentais, emocionais e físicas, e como se relacionaram umas com as outras”, defende.
No momento, Worsley escreve um livro sobre as mudanças do conceito em culturas ocidentais, explicando como a palavra passou a ser descrita como um sintoma de problema de saúde – e não mais como um sentimento.
No livro, a americana pretende chamar a atenção para a gravidade de se esquecer de que solidão é um sentimento e apontar como os governos têm se concentrado em enfrentar apenas o aspecto de isolamento físico dos solitários.
‘Longe dos vizinhos’
Nos primeiros registros em língua inglesa analisados pela professora – que datam do final do século 16 e início do 17 – a palavra era compreendida como sinônimo dos perigos de estar sozinho, isolado fisicamente da sociedade, preso a um lugar remoto.
“Nessa época, ‘solidão’ e ‘solitário’ aparecem juntas para descrever um lugar deserto, uma região selvagem e a inserção de pessoas neles”, descreve a pesquisadora. “Sair para caminhar em um deserto, em uma floresta e nas montanhas não era uma atividade de lazer, eram espaços de medo e perigo, espaços de solidão.”
Um dos registros dessa época encontrados por Worsley foi um glossário de palavras inglesas pouco usadas, compilado em 1674, pelo lexicógrafo John Ray. Solidão aparece nessa lista com a definição de “longe dos vizinhos”.
O sentimento de solidão estava, assim, associado a um estado físico de isolamento, de vagar fora da sociedade, de não poder contar com a proteção oferecida pelo grupo. Solidão não era um estado mental.
Romantizada
O sentimento foi, aos poucos, se transformando em um estado mental diante do pessimismo e insatisfação com a vida
Uma mudança drástica do conceito de solidão ocorreu, segundo Worsley, no período do Romantismo – movimento cultural e literário que ocorreu entre os séculos 18 e 19, na Europa e nas Américas -, principalmente no Reino Unido, onde os poetas do movimento escreveram obsessivamente sobre o tema.Nessas obras, a solidão aparece como sinônimo de escapismo, como uma escolha pessoal de fugir da angústia que representava a vida em sociedade, uma vida fútil e de relações pessoais superficiais.
Uma das frases mais célebres desse período, escrita pelo poeta inglês Lord Byron, demonstra como o sentimento foi, aos poucos, se transformando em um estado mental diante do pessimismo e insatisfação com a vida: “É na solidão que estamos menos sós”, escreveu o poeta no início do século 19.
“Minhas investigações sobre as origens da solidão mostram que a palavra, mesmo com as várias mudanças que teve, manteve sua essência original de representar algo perigoso”, analisa Worsley.
No Brasil, o Romantismo também abriu espaço para falar sobre o tema. Autores como Álvares de Azevedo publicaram poemas melancólicos, apresentando uma solidão que se relacionava com a depressão, frustração e desilusão com a vida e com as relações pessoais.
‘Pior que fumar 15 cigarros’
Descrições sobre sentimentos despertados pelo fato de estar sozinho existem desde tempos antigos. Nesse sentido, a Bíblia teria sido a primeira obra a representar sentimentos ligados ao exílio e ao isolamento, como a alienação e a melancolia.
“O Antigo Testamento é cheio de representações assombrosas do que hoje poderia ser chamado de solidão”, afirma Worsley. “No entanto, ‘solidão’ não teria sido registrada graficamente até o começo do século 17. E, como diz o crítico literário Christopher Ricks, quando não há uma palavra para descrever tal coisa, tal coisa em si nunca pode ser a mesma até ser nomeada.”
Para encontrar os registros exatos sobre a palavra, Worsley usou como metodologia a pesquisa em bancos de dados que reúnem textos antigos. “O banco de dados digital Early English Books Online, por exemplo, permite mapear uma genealogia detalhada da solidão na literatura britânica moderna”, explica.
Nos últimos dez anos, Worsley destaca que a palavra vem passando por mais uma transformação de sentido, se aproximando agora de um sintoma coletivo, um estado mental que pode desencadear sérios problemas de saúde.
“Na última década, de acordo com as notícias dos meios de comunicação, solidão virou uma crise de saúde pública, uma ‘epidemia’ dos dias atuais”, aponta.
Segundo a professora, é possível perceber em nosso dia a dia a presença de frases como: “solidão mata mais que obesidade”, ou “solidão é pior que fumar 15 cigarros por dia”.
A comparação da solidão com o tabagismo foi feita em janeiro por Mark Robinson, diretor da Age UK, a maior instituição de caridade da Grã-Bretanha que trabalha com idosos. Na ocasião, o diretor se referia ao recém-criado Ministério da Solidão, em vigor no Reino Unido desde o começo do ano para conter a solidão da população britânica.
A interpretação que os governos têm feito da solidão como um problema de saúde pública, contudo, é limitada e remete à ideia simples que o termo representava no século 17: a de ser apenas uma condição física de estar longe de outras pessoas.
“Muitas das medidas dos governos para reduzir a solidão se concentram apenas na redução do isolamento físico, e não no sentimento em si”, explica a professora. “Embora seja verdade que a solidão é frequentemente causada pelo isolamento de morar sozinho, de um processo de divórcio, durante um tratamento de doenças e outras formas de vulnerabilidade, não se pode mais reduzir a solidão a isolamento”.
A atual complexidade do termo reside em compreender, segundo Worsley, o “sentir-se” e não apenas o “estar” solitário.
“Alguém cercado por pessoas, ou acompanhado por amigos ou por um amante, pode reclamar de ‘sentir-se longe'”, exemplifica a americana. “A solidão virou um estado emocional que já se instalou dentro da mente. O deserto está agora dentro de nós.”
https://vivabem.uol.com.br/noticias/bbc/2018/05/12/de-sentimento-a-sintoma-pesquisadora-traca-mudancas-do-conceito-de-solidao.htm
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