Rute Pina – Arquiteta explicou ao Brasil de Fato a relação entre imóveis vazios, capital financeiro e especulação imobiliária.
O Brasil não tem uma política habitacional que centralize todas as complexidades e desafios do tema da moradia. Em vez disso, desde a década de 1960, o Estado promove apenas o financiamento habitacional. Quem faz a avaliação é a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik.
O resultado dessa visão, segundo Rolnik, é que o país não consegue atingir a camada da população que tem mais necessidade e urgência de moradia. “O governo se financeiriza. Todos os cálculos são feitos em cima das expectativas de rentabilidade”, aponta a arquiteta.
Rolnik recebeu a equipe do Brasil de Fato na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo, onde leciona e coordena o projeto do LabCidade. Ela foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia e diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo entre 1989 e 1992.
Na conversa, a arquiteta explicou a centralidade dos imóveis vazios para no circuito do capital financeiro e sua relação com a especulação imobiliária. “Funciona como garantia. É um ativo que mesmo não sendo usado, como está ali construído e não vai desaparecer, é capaz de alavancar empréstimo. Isso significa que, uma parte importante do espaço construído hoje, está servindo só para ser garantia e não para ser usado.”
Abaixo, confira a entrevista da arquiteta na íntegra, em que ela fala também do conceito de déficit habitacional e da segregação social, econômica e racial das cidades.
Brasil de Fato: O desabamento do edifício que abrigava uma ocupação no centro de São Paulo evidencia déficit habitacional na cidade. Você poderia explicar o que significa este conceito?
Raquel Rolnik: Antes mesmo de discutir essa metodologia, está a seguinte pergunta: quantas casas e apartamentos precisam ser construídos para que as pessoas que hoje não têm casa própria possam ter? Essa é a questão que está historicamente por trás da política habitacional utilizada no país, desde do período do BNH [Banco Nacional da Habitação, em 1964], ou mesmo antes, no período getulista.
E, desde que o momento que temos uma política habitacional, ela é a construção de casas acessadas via crédito financeiro hipotecário.
A nossa crítica em relação a esse conceito é o pressuposto dele. Quem disse que as necessidades habitacionais dos brasileiros e brasileiras se resumem ao acesso a casa própria individual nova, construída por uma construtora ou por uma agência público-privada? Fazer isso nos impede de pensar outras alternativas de acesso à moradia.
E mais do que isso: muitas das pessoas hoje moram muito mal. Não exatamente em função das condições específicas da casa, mas dos bairros onde elas vivem. Uma parte importante das necessidades habitacionais dos brasileiros, brasileiras e dos imigrantes estrangeiros é urbanizar ou melhorar as condições de infraestrutura dos bairros existentes.
Esse cálculo me parece que está na raiz de um problema muito mais sério que é uma política de modelo e pensamento únicos. E que, pela natureza de crédito bancário à casa própria, nunca chega em quem precisa — que são as famílias, os indivíduos, as pessoas mais pobres, sem renda ou com renda totalmente informal, e que também acumulam muitas outras vulnerabilidades. Seguramente, um crédito financeiro e hipotecário, mesmo que subsidiado, não é a melhor solução.
No seu livro Guerra dos Lugares você fala de como a gente não conseguiu romper, desde a criação do BNH, essa relação entre desenvolvimento urbano e a financeirização e os bancos — independente do governo que esteja do poder. Por quê?
Nosso modelo histórico, na verdade, não é uma política habitacional, mas de financiamento habitacional. Ou seja, desde o começo, desde a criação do BNH, e principalmente no momento em BNH assume a gestão do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) de todos os trabalhadores, a política habitacional é uma discussão de que condições vão ser utilizadas e como esse fundo vai ser utilizado para emprestar para construtoras ou indivíduos e famílias poderem comprar sua casa própria.
Portanto, não se discute quais as formas de atendimento — quais as necessidades, que tipo de política se faz —, mas se trabalha no sentido do desenho do financiamento. Isso é uma captura total da política habitacional por uma lógica financeira e de um jeito muito perverso, a meu ver.
Se usa o fundo de garantia da aposentadoria dos próprios trabalhadores para financiar habitação no país. Com o seguinte pressuposto: como este fundo paga muito menos juros do que os bancos, então fica muito mais barato. Ou seja, a gente duplamente onera os trabalhadores.
Se a gente for olhar as necessidades habitacionais, quem mais precisa de política pública são faixas de renda que não se encaixam no conceito do financiamento e que só serão atendidas com políticas a fundo perdido — que, a meu ver, não deveriam ser políticas de casa própria.
Essa história atravessou governos petistas, tucanos, governos de todos os tipos. Esse modelo é o que estrutura a política habitacional e de desenvolvimento urbano. Há várias versões disso até chegar no Minha Casa Minha Vida, que é a novíssima versão desse mesmo modelo.
O MCMV conseguiu destravar esse financiamento. Ou seja, mandou os bancos colocarem todos os créditos que eles, em tese e por lei, deveriam usar para empréstimo habitacional. Colocando subsídios públicos do orçamento, junto com o crédito, conseguiu-se fazer com que renda um pouco mais baixa pudesse acessar também esse produto casa própria, ofertado pelo mercado e pelas construtoras privadas.
O problema é que isso significou uma superabundância de crédito habitacional, inclusive, subsidiado em muito pouco tempo. Mais de R$132 bilhões foram disponibilizados em créditos habitacionais.
E como a financeirização se relaciona com a especulação imobiliária?
O efeito disso sobre a cidade e sobre o preço da terra foi tremendo porque, claro, na hora que você tem tanto crédito solto na praça a competição entre os terrenos para ver quem é que vai receber os empreendimentos vai ficar enorme. Então, essa procura das incorporações, das entidades, das pessoas por terra e por imóvel fez subir o preço das terras e dos imóveis tremendamente, muito acima do aumento do preços dos salários que aconteceu também no Brasil, principalmente, entre 2005 e 2013.
Tem mais um elemento que nos ajuda a entender e articula a ideia da especulação imobiliária com a discussão da financeirização. Nesta era de hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, o governo se financeiriza. Todos os cálculos são feitos em cima das expectativas de rentabilidade.
Neste circuito de hegemonia do capital financeiro, o espaço construído, seja o imóvel ou a terra, tem um papel fundamental no circuito financeiro porque funciona como garantia. É um ativo que mesmo não sendo usado, como está ali construído e não vai desaparecer,é capaz de alavancar empréstimo.
Isso significa que, uma parte importante do espaço construído hoje, está servindo só para ser garantia e não para ser usado. Ou seja, sua função e seu uso é muito mais de funcionar dentro do circuito financeiro do que propriamente abrigar usos e pessoas. Com um pequeno detalhe: esses espaços estão ocupando pedaços da cidade e impedindo que quem precisa do espaço para morar, trabalhar, instalar uma empresa.
Isso tem tido um efeito muito desastroso nas cidade e ajuda a gente entender essa coisa absurda de tanto imóvel vazio e tanta gente precisando ter onde morar.
Essa financeirização da política habitacional teve um efeito de segregação econômica e racial?
A desigualdade socioterritorial nas nossas cidades historicamente tem cor. Sempre a moradia dos mais pobres foi auto-produzida pelos próprios trabalhadores nas periferias, favelas, quebradas e ocupações deste país. A gente tem uma matriz da desigualdade socioterritorial, que já foi chamada de exclusão territorial e de espoliação urbana, que sempre foi carregada por uma marca racial.
O que o processo de financeirização hoje ou de hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo acrescenta? Oque é agravado neste processo da financeirização é justamente o fato de que a vacância, ou seja, o edifício, o espaço construído existir sem ser usado, pode ter um uso tão funcional para as finanças que isso vai ficando cada vez maior e mais intenso até para dentro do estado.
O governo do Estado, por exemplo, tem um parceiro privado na construção do metrô da linha amarela. Este parceiro espera ser remunerado com juros de seus investimentos com a entrada do dinheiro da tarifa do metrô. Mas tem um risco: E se não entrar toda essa tarifa no período do cálculo dessa rentabilidade? O setor privado não tem risco nenhum porque o estado criou um fundo garantidor, que são imóveis públicos vazios que estão funcionando ali para garantir o investimento privado em uma eventualidade do dinheiro das tarifas não entrarem. Ou seja, o próprio Estado também passa agir de forma financeirizada.
Tivemos alguns avanços em legislações, como o IPTU progressivo, em São Paulo, e o Estatuto das Cidades, no âmbito nacional. Por que, elas não têm o resultado esperado?
A luta social em torno do direito à cidade construiu uma pauta importante desde a constituição de 1988 e muito marcada pela existência de uma constituinte, de uma nova ordem legal e urbanística — que era uma pauta institucional, legal, regulatória. A ideia era que, aumentando as possibilidades de regulação do processo de desenvolvimento urbano, isso naturalmente poderia se transformar em um processo redistributivo e mais inclusivo
O problema é que essa regulação se confronta todo dia com um processo e um modelo de produção da cidade que não é feito para ser redistributivo. Cada implementação se transforma em um enorme embate e dificuldade de conseguir implementar isso na prática, por mais que exista um marco regulatório.
No fundo, os mesmos bloqueios que impediram historicamente o acesso à terra e à moradia para quem mais precisa operam, na cidade, para impedir que instrumentos que ampliem o acesso à terra e à moradia também sejam implementados.
É absolutamente necessário não apenas implementar esse instrumento mas lutar com todas as forças políticas no sentido de constituir mais força política para uma pauta inclusiva. O que estamos vendo na prática é o contrário. Cada vez mais, nesta destruição de um imaginário social redistributivo como um todo que vivemos no país, essa ideia de que a questão da igualdade, da justiça territorial, da redistribuição não são mais valores que têm que orientar a cidade. O que tem que orientar a cidade é a competição, produção de mais valor, empreendedorismo — valores que estão, na verdade, enfraquecendo cada vez mais essa pauta regulatória, que vai sendo flexibilizada.
Uma das conquistas importantes no campo regulatório, por exemplo, foi ter Zonas Especiais de Interesse Social [ZEIS] demarcadas no território, reconhecendo a existência de territórios populares e declarando que estes têm que fazer parte das cidades.
Ora, o que aconteceu com a pauta das Zonas Especiais de Interesse Social? O próprio governo não respeita e retira e remove pessoas que moram em uma ZEIS para fazer outra coisa lá, sem levar em consideração o próprio marco regulatório. Vou dar dois exemplos: o Templo de Salomão foi construído em um lugar que estava destinado à moradia popular. Outro exemplo é a parceria público-privada do Hospital Pérola Byington, na região dos Campos Elíseos. Quando isso foi contestado, a Procuradoria do Estado disse que isso era uma interpretação da lei.
Estamos falando de um processo grave de constituição e não reconhecimento desta própria regulação que só vai ganhar força se essa regulação tiver legitimidade. Se tivermos por trás dela uma quantidade suficiente de cidadãos e cidadãs que a compreendam e a defendam.
https://www.brasildefato.com.br/2018/05/28/raquel-rolnik-a-captura-da-politica-habitacional-pela-logica-financeira-e-perversa/
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