Luciana Bugni – Em 1999…
Eu tinha 16 anos quando minha melhor amiga me procurou no colégio para me segredar apreensiva: o Gustavo me contou que é gay. Minha primeira reação foi “por que ele não contou para mim?”. Minha segunda reação foi “eu já sabia que estava acontecendo isso”. Minha terceira reação foi um sentimento de apreensão com o que os meninos da sala iriam dizer, o que aconteceria com ele (o que mais tarde foi chamado de bullying, mas naquela época era cotidiano mesmo, sem denominações).
Uns dias depois, as meninas vieram me contar que alguém havia escrito no espelho do banheiro que o Gustavo do 3ºB era bicha. Pronto. Agora todos iriam saber. Em 1999, eu sabia que um amigo poderia ser gay, que isso era possível, mas era básico que ninguém soubesse. Os gays deveriam guardar seu segredo para que ninguém os ofendesse. Era responsabilidade de todos esconder. E agora que o segredo estava estampado no espelho do banheiro de um colégio localizado dentro de um campus de faculdade? Quantas pessoas haviam entrado nesse banheiro? Como iríamos ajudá-lo a esconder isso? Alguém se apressou a apagar a mensagem com álcool e um pano, mas a notícia se espalhou rápido, mesmo que o celular ainda não existisse. Toda a escola já sabia que Gustavo era gay. E agora? Quem fez uma maldade dessas?
Uma semana depois, fomos todos chamados no anfiteatro da escola. Alguns alunos estavam na frente, muito sérios. Gustavo era um deles. O professor de literatura começou a explicar que tínhamos participado de um projeto. 200 adolescentes intrigados reunidos em uma sala, num silêncio incomum para a idade. Nesse dia, a gente descobriu, entre algumas outras coisas, que o Gustavo não era gay.
O projeto
Uma dezena de alunos de 14 a 17 anos de várias salas de aula foi selecionada por um grupo de professores meses antes do dia da revelação. Em reuniões frequentes, cada um deles ganhou um personagem, que deveria introduzir aos poucos entre os colegas. Gustavo seria gay. Paula e Ivi seriam lésbicas. Havia uma moça que tinha resolvido ser freira. Outra garota estava grávida. Havia a gótica, com uma maquiagem bem carregada. Todos fingindo ser alguma minoria para coletar impressões dos colegas, por cerca de um ou dois meses. A ideia dos professores surgiu a partir de um caso de agressão com um aluno, que interpretou uma menina na aula de teatro. Quando ele apareceu machucado por ter se “soltado demais” durante a cena, alguns professores e alunos se uniram para implementar um projeto que provocasse o debate e a reflexão.
Assim, uniu os adolescentes em um segredo que não poderia ser descoberto nem pelos seus melhores amigos. “Gerou efeitos positivos. Marcou uma geração do colégio, deu resultados duradouros, inibiu novos casos por um tempo e a proposta se alinhava ao plano de trabalho do colégio de ser vanguarda nestas questões”, afirma o professor de geografia Ricardo Alvarez, um dos mentores da ideia. Nos alunos envolvidos, houve uma aceleração do desenvolvimento e amadurecimento, ao sentirem na pele as mais variadas formas de preconceito. Nos outros, além do choque inicial ao saberem que estavam sendo enganados, a reflexão do: afinal, o que o torna igual ou diferente de mim? O Gustavo não é gay, o Gustavo está agindo como se fosse gay, me disseram que o Gustavo é gay mesmo, que importância tem o Gustavo ser ou não ser gay, e finalmente, o Gustavo não é gay, mas por que é que estamos ainda falando disso mesmo? Ter acesso a sentimentos tão controversos como esses, aos 16, 17 anos, deve ter moldado minha personalidade para hoje, adulta, nem conseguir entender a cabeça de alguém que discrimina qualquer minoria.
“Eu sentia o maior orgulho de participar e acreditava que estava fazendo uma pequena revolução. Hoje, acho que um projeto desse teria uma cara bem diferente. Já vejo meus alunos lidarem de uma maneira mais saudável com a homofobia, mesmo que tenham aprendido a ser homofóbicos em casa… são menos explícitos. Já vejo adolescentes de 14 anos se assumindo ou mesmo contando uma única experiência gay sem grandes constrangimentos. Acho que nossa época era bem mais tabu, mesmo entre nós”, diz Paula Aviles, professora de educação artística, que era uma lésbica em seu primeiro namoro durante o projeto.
A jornalista Ivi Piotto, que vivia a namorada de Paula, faz outra análise: “depois de um tempo, uma amiga me disse que pra ela foi muito difícil, pois ela teve que lutar para aceitar que a amiga dela era gay e, depois de ter aceitado, ela descobriu que tinha ‘lutado contra seu preconceito à toa’. Isso me faz pensar o seguinte: ela não aceitava gays, não queria lidar com isso, mas devido à nossa amizade, ela foi obrigada a fazê-lo, e depois percebeu que ela poderia ter continuado ‘ignorando’ os gays, já que eu não era gay de verdade. De cara, parece ruim. Mas eu quero focar na força que ela fez pra aceitar alguém de quem ela gostava, mesmo que ela fosse contra (afinal, eram pessoas como ela que deveriam ser transformadas pelo projeto). Acredito que isso possa ter mudado o jeito dela de pensar, sim”.
Em 2016…
Quase duas décadas depois, a história não é assim para todos e o discurso de ódio é, como sabemos, tolerado inclusive entre os políticos que elegemos. “O que me incomoda é saber que, mesmo após tanto tempo, o assunto ainda seja atual, apesar de considerar que houve avanços sociais. Posso dizer que a educação e a discussão se sobrepõe à punição. Hoje, os incomodados utilizam a violência como resposta ao que eles não entendem. Os Bolsonaros e Felicianos contribuem para estas atitudes violentas”, diz Ricardo.
Pensei em tudo isso quando li a frase do pai do atirador na boate gay de Orlando: “ele fez isso motivado pelo ódio que sentia por gays”. Como é que um pai tem coragem de assistir a formação intelectual de um intolerante e não fazer nada a respeito? Em 1999, uma equipe dentro do colégio em que eu estudava no ABC assistiu um caso de violência gerado por homofobia e resolveu ensinar os alunos assim. Como é que um pai aceita que o filho tenha ódio de gays e deixe a situação se estender até o momento em que esse rapaz, aos 29 anos, seja capaz de matar 49 pessoas dentro de uma boate?
A reflexão toda para dizer que a culpa é nossa, enquanto adultos, educadores, esclarecidos. E devemos falar sobre isso com os menores o tempo todo, como fez essa equipe dentro da Fundação Santo André no fim do século passado, por mais 17 anos, até que fique óbvio: não faz diferença. O diferente é (sempre foi) igual a mim. Eu aprendi cedo, porque me ensinaram.
E a gente está fazendo o mesmo?
https://medium.com/@lubugni/o-gustavo-do-3ºb-não-é-bicha-9f1a056664fd#.lp0wt7qg2
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