Carl Zimmer – Os cientistas descobriram os segredos do povo Bajau, famoso por sua capacidade de prender a respiração por períodos extraordinários de tempo.
Nós somos produtos da evolução e não apenas da evolução que ocorreu há bilhões de anos. Na medida em que os cientistas aprofundam os conhecimentos sobre nossos genes, desvendam casos da evolução humana que ocorreram apenas nos últimos mil anos. Habitantes dos planaltos tibetanos e etíopes se adaptaram para viver a grandes altitudes, por exemplo. Grupos de pastores de gado na África Oriental e do norte da Europa tiveram uma mutação que os ajuda a digerir o leite depois de adultos.
Na semana passada na revista “Cell”, uma equipe de pesquisadores relatou um novo tipo de adaptação –não em função do ar ou da comida, mas do oceano. Um grupo natural do mar no sudeste asiático evoluiu de maneira que seus membros os tornassem ótimos mergulhadores.
Os bajau, como são conhecidos, compõem um grupo de centenas de milhares de indivíduos, espalhados por comunidades na Indonésia, Malásia e Filipinas. Tradicionalmente, vivem em casas flutuantes; nos últimos tempos, vêm construindo também casas com palafitas em águas costeiras.
“Eles são simplesmente estranhos à terra”, disse Rodney C. Jubilado, antropólogo da Universidade do Havaí que estuda os bajau, mas que não esteve envolvido no novo estudo.Jubilado encontrou o grupo pela primeira vez na ilha de Samal, nas Filipinas, onde cresceu. Eles ganhavam a vida como mergulhadores, com caça submarina ou coleta de frutos do mar. “Éramos tão fascinados com o fato de que conseguiam ficar por muito mais tempo debaixo da água do que nós ilhéus. Eu conseguia vê-los literalmente caminhando dentro do mar”, disse ele.
Conforme os antropólogos iam estudando a cultura bajau, biólogos começaram a se interessar mais por eles também. Já tinham observado seus mergulhadores chegarem a 60 metros de profundidade, sendo que a única proteção que usavam era um par de óculos de natação de madeira –uma maravilha fisiológica.
Em 2015, Melissa Ilardo, que na época era estudante da pós-graduação em Genética na Universidade de Copenhague, ouviu falar sobre os bajau. Ela se perguntou se séculos de mergulho poderiam ter levado à evolução de características que facilitaram esta tarefa para eles.
“Parecia a oportunidade perfeita para a seleção natural agir sobre uma população”, disse Ilardo.
Seu primeiro passo foi viajar para Sulawesi, na Indonésia e depois para uma ilha de recifes de corais, onde visitou uma aldeia bajau. Depois que propôs seu estudo, eles concordaram com o plano. Ela voltou alguns meses mais tarde, desta vez com uma máquina de ultrassom portátil para medir o tamanho do baço da população.
Quando as pessoas mergulham na água, respondem com o chamado reflexo de mergulho: o ritmo cardíaco diminui e os vasos sanguíneos se contraem como uma forma de desviar o sangue para os órgãos vitais. O baço também se contrai, inundando a circulação com um suprimento de células vermelhas do sangue ricas em oxigênio.
Todos os mamíferos têm esse reflexo de mergulho, mas nos marinhos, como as focas, ele é particularmente forte. Os cientistas suspeitam que o reflexo ajude a ir mais fundo no mergulho – no final das contas, as focas com os maiores baços são aquelas capazes de ir mais fundo. O baço aumentado parece funcionar como um tanque de mergulho maior.
Ilardo examinou os abdomes dos aldeões bajau e em seguida viajou cerca de 25 quilômetros para o interior até uma aldeia ocupada por agricultores, conhecidos como saluan, e os examinou também. Quando comparou os exames das duas vilas, encontrou uma diferença gritante.
Ainda assim, essa diferença notável pode não ser o resultado da evolução. O próprio mergulho pode de alguma forma aumentar o baço. Há uma abundância de exemplos de experiências que modificam o corpo, desde pés calejados a bíceps protuberantes.
Apenas alguns bajau são mergulhadores em tempo integral. Outros, como professores e lojistas, nunca mergulharam. Mas Ilardo descobriu que eles também tinham baços grandes. Era provável que tivessem nascido assim, graças a seus genes.
Em sua visita à Sulawesi, Ilardo também levou instrumentos para coleta de DNA dos bajau e dos saluan. Ela examinou as variações genéticas de cada aldeia e as comparou com as de pessoas de países vizinhos, como Nova Guiné e China.
Ela descobriu que muitas variantes genéticas se tornaram extraordinariamente comum entre os bajau. A única maneira plausível de isso ocorrer seria pela seleção natural: aqueles com essas variantes tiveram mais descendentes do que os que não as apresentavam.Uma variante do gene chamado PDE10A influencia o tamanho dos baços dos bajau. Pessoas com uma cópia do gene mutante tinham baços maiores do que as outras. Indivíduos com duas cópias dele tinham baços ainda maiores.
Os cientistas nunca haviam encontrado uma função especial para o PDE10A no baço. “Esta conexão era um pouco bizarra”, disse Ilardo.
Mas há uma possível ligação. Já foi demonstrado que o PDE10A controla o nível de hormônios da tireoide no organismo. E os cientistas descobriram que injetar esses hormônios nos ratos com baços atrofiados fazia com que estes órgãos se desenvolvessem.
Ainda assim, isso não seria suficiente para entender como o PDE10A se tornou tão comum nos bajau. “É a pergunta mais difícil”, disse Rasmus Nielsen, geneticista da Universidade da Califórnia, Berkeley, que colaborou na pesquisa.
Ilardo suspeita que a seleção natural favoreceu a variante de PDE10A dos bajau, já que o mergulho profundo é tão arriscado. “Eu pensaria, por mais mórbido que seja, que se eles não tivessem isso, não sobreviveriam”, ela disse.
François-Xavier Ricaut, antropólogo na Universidade de Toulouse, que não esteve envolvido no estudo, disse que a rapidez dessa mudança evolutiva ainda não está clara.
Alguns pesquisadores sugerem que os bajau só começaram a mergulhar em grandes profundidades, quando foi criado um mercado para os pepinos do mar pela China em 1600. Ou talvez a adaptação tenha começado milhares de anos antes, no final da era do gelo, quando a subida do nível do mar transformou a região em torno da Indonésia em ilhas.
“Esse estudo é uma base importante para perguntas interessantes que devem se seguir”, afirmou Ricaut.
Ilardo disse que provavelmente há vários outros genes que ajudam o povo bajau na arte do mergulho. Ela e seus colegas também encontraram provas de seleção natural em um gene chamado BDKRB2.
Em um estudo publicado no ano passado, cientistas russos descobriram que ele exerce alguma função no reflexo do mergulho. Em pessoas com variantes de BDKRB2, os vasos sanguíneos se tornam mais rigidamente contraídos quando o rosto mergulha na água fria.
Para analisar se esse é o caso com os bajau, Ilardo precisará fazer outra viagem para a bela Sulawesi. “Eu ficaria muito feliz fazendo isso para sempre”, disse ela.
https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/the-new-york-times/2018/04/30/ciencia-desvenda-misterio-sobre-pescadores-que-mergulham-60-metros-sem-oxigenio.htm
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