Henrique Szklo – Nunca foi tão claro para mim que o ser humano evoluiu apenas tecnologicamente, porque na essência continua o mesmo selvagem obtuso de sempre. Vemos todos os dias comportamentos, atitudes e declarações que nos fazem duvidar da existência de uma real distância entre nós e os animais ditos irracionais. Não é difícil nos depararmos com pessoas que fazem e falam coisas que não compreendemos. Que parecem ainda não terem sido convidadas para participar do grande festival da evolução. Que reagem aos conflitos naturais em toda sociedade com indisfarçável boçalidade. Não vou dar exemplos, porque provavelmente você já os tem aos borbotões.
Ao longo dos anos, o processo civilizatório do ser humano se deu eminentemente pela criação e aprimoramento de regras de convivência onde se estabelecem limites individuais e coletivos. Não apenas deveres e direitos, mas principalmente proibições. Estamos falando basicamente do controle dos impulsos selvagens e instintos básicos que ainda guardamos dentro de nós. Nossos apetites atávicos ainda são nossos condutores e, caso não haja ninguém olhando, somos capazes que cair de quatro e sairmos babando e barbarizando por aí. É preciso controlar essa cavalgadura.
A explicação é simples. O Homo sapiens existe há mais ou menos 130 mil anos, mas a primeira civilização avançada conhecida, criadora de linguagem, escrita, arquitetura, artes, astronomia e matemática surgiu aproximadamente há 4.500 anos: os sumérios. Sob a lente da evolução das espécies, 4 ou 5 milênios são quase um pum inofensivo. Este diminuto espaço de tempo, portanto, foi insuficiente para que nosso cérebro pudesse acompanhar a par e passo, do ponto de vista funcional, o extraordinário avanço tecnológico produzido pelo homem. A despeito da existência do iPhone X, ainda somos deveras sumérios.
Moisés, o primeiro constituinte da história
O primeiro passo importante em busca da civilidade foi a criação dos 10 Mandamentos, que nos trouxeram algumas noções básicas de convivência. Não mate, não pegue a vizinha se ela for casada, não passe a mão no que não for seu, respeite os pais e mais algumas leis que servem apenas para amedrontar o rebanho de selvagens fora de controle na tentativa de que aceitem e respeitem as tais regras, conferindo ao divino o papel de corte suprema da época. Mas, como sabemos, as leis da tábua, como costuma acontecer no Brasil em particular, não pegaram. Milhares de anos se passaram e até hoje a única que a maioria segue com disciplina e humildade é aquela que diz para não se trabalhar aos domingos.
Em seguida, alguns luminares preocupados com a horda de bichos do mato caminhando sobre a terra, criaram os 7 pecados capitais. Uma espécie de regulamentação dos 10 Mandamentos. Na época não conseguiram apoio político e o projeto foi arquivado. Foi a Igreja Católica que, a partir do século IV, oficializou os conceitos até hoje conhecidos, mas, principalmente, e, frequentemente, praticados. Os animais ainda estão soltos passeando por aí.
Como a ti mesmo
Depois veio Cristo e todos os ensinamentos e conceitos francamente civilizatórios como respeito, tolerância, igualdade, liberdade e justiça. A despeito de ele ser muito seguido e admirado, muita gente até hoje não entendeu bem o espírito santo da coisa, especializando-se em fazer gol contra.
Basta uma pequena olhada para perceber que a Declaração Universal dos Direitos Humanos em muito tem a ver com o discurso de Jesus. Digamos que é a tentativa de uma evangelização laica, mais uma vez frustrada, de conscientizar o animalzinho de calças de que pode até não existir o céu, mas que nem por isso precisamos viver no inferno.
Mais uma prova de que não somos evoluídos é justamente a necessidade de existir um documento que nos lembre de que as pessoas têm direito de, por exemplo, viver. Mas a Declaração dos Direitos Humanos nunca foi exatamente uma unanimidade. Não dá para entender muito bem o porquê, já que saindo da boca de Cristo é amor ao próximo, mas da boca de um ativista dos direitos humanos é defender bandido.
Shakespeare fez seu nome criando uma dramaturgia densa e complexa, se utilizando basicamente dos pecados capitais como motor do relacionamento humano. Isso no século XVI. Suas peças são festejadas e respeitadas até hoje muito provavelmente porque a carroceria pode até ter ficado bem moderna, mas o motor continua o mesmo. Nossa capacidade e habilidade de fazer alguma pataquada é um componente absolutamente contemporâneo.
A civilidade não é uma roupa, mas uma camisa-de-força
Quando pensamos em países mais civilizados que o nosso, não nos damos conta de que as pessoas que os habitam são como nós, exatamente como nós. O que nos diferencia são as regras e a predisposição em aceitá-las. Eles não são seres mais evoluídos, apenas mais controlados. Têm uma demão a mais de verniz. Basta virem para o Brasil e tomarem uns pares de caipirinha de corote para já saírem por aí passando a mão na bunda de todo mundo. São muitos os casos de empresas de países evoluidíssimos que poluem os rios de países como o nosso, vendem produtos que seus compatriotas não aceitam mais e cometem crimes que jamais sonhariam se fosse em solo pátrio. Educados, mas só na frente da mamãe.
It’s the end of the world as we know it
Numa novela genial do mestre Dias Gomes, “O fim do mundo”, um vidente de uma cidade fictícia afirma que o mundo vai acabar em poucos meses. Por várias razões, as pessoas da cidade passam a acreditar em sua previsão e resolvem realizar seus mais profundos e comprometedores desejos. O tempo passa e a profecia não se realiza, claro. Aí, todo mundo têm de lidar com as consequências das iniquidades cometidas em nome da vontade e dos instintos primais.
Se, ao terminar de ler este artigo, você descobrir que houve uma catástrofe mundial e que não existem mais instituições, como polícia, justiça, poder executivo e legislativo, o que acha que vai acontecer em poucas horas? Certamente a barbárie. Cada um por si. Mortes, estupros, roubos, saques, criação de milícias e tudo o mais. Voltaremos a ser nós mesmos. Sem controle e sem regras. Confirmando nossa condição de feras selvagens que vestem roupas, sabem falar e tomar sorvete.
A civilidade é a negação de nossa natureza
Sejamos honestos. Nossa vontade é sair por aí fazendo o que der na telha sem nos preocuparmos com as consequências. Mas aí seremos classificados de malucos, criminosos, psicopatas. Ou seja: o homem só é considerado civilizado quando desenvolve a capacidade de negar sua essência, de controlar seus impulsos, enfim, de não ser quem ele é. Por isso lembre-se: na hora de comentar este artigo, não seja você. Seja envernizado.
https://henriqueszklo.blogosfera.uol.com.br/2018/04/03/o-ser-humano-nao-e-evoluido-apenas-envernizado/
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